Thursday 30 December 2021

Revolução

Havia uma palavra fundamental.
Dissemo-la uma noite perto da mulher
que soluçava junto do cadáver
do filho morto a tiro.
Dissemo-la uma tarde quando os sicários
lançaram sobre o cais o afogado,
porque estava nas pálpebras
e no vazio da boca.
Repetimo-la quando o sangue dos nossos camaradas
corria sobre os ladrilhos de San Lorenzo
arrastando pequenos fragmentos encefálicos,
filamentos de vísceras fugazes
urina e rum e alentos rancorosos.
Fomo-la repetindo nas enfermarias,
nos prostíbulos com ébrios e marujos,
nos cinemas e nas fábricas.
Dissemo-la um dia entre estampidos e clarins
à hora de uma das vitórias,
gritámo-la à porta dos escritórios,
das embaixadas e das escolas
até que vimos uma coluna de gente
erguida pela palavra persistente.
À nossa volta reinava o silêncio
que cerceia todo o som,
o silêncio sem parques,
sem escolas, sem fábricas,
o silêncio sem rotativas,
sem carabinas, sem crianças,
o silêncio sem recordações
sem quandos nem mais tardes,
em que começámos a repetir
a esclarecer a esgrimir a acariciar
essa ardente palavra.

Aldo Menéndez

Monday 27 December 2021

Antes que seja tarde

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca

Friday 24 December 2021

A existência alheia....

A existência alheia,
a alheia dignidade,
os direitos alheios pouco são
para os orgulhosos governantes
de hoje, como de sempre.
Por isso,
toda a ordem que de um mando provém,
toda a autoridade que alguém exerça,
e, em consequência, toda a dominação,
são um abuso e um esbulho.
Na sociedade de classes é a lei
a grande prostituta.

Armindo Rodrigues

Tuesday 21 December 2021

Sentença

 Quem pense e não aja
conforme ao que pensa
faz aos mais ofensa
e a si próprio ultraja.

Bem haja, bem haja
quem o medo vença.

Armindo Rodrigues

Saturday 18 December 2021

NA FÁBRICA ONDE EU TRABALHAVA

na fábrica onde eu trabalhava havia muito frio
mas os meus camaradas sorriam e contávamos histórias uns aos outros
de vez em quando encandeávamo-nos e esfregávamos os olhos
depois olhávamos admirados a perfeição da soldadura

medíamos dobrávamos batíamos o ferro
e era como se pouco a pouco algo dentro de nós se construísse
tínhamos ali as nossas entranhas e o nosso jardim

e aquilo era como a nossa horta ou a nossa casa à hora do almoço

José Vultos Sequeira

Wednesday 15 December 2021

Aviso

A noite que precedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que estava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos punhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
que o seu rosto num sorriso se lhe abriu
Não tinha apenas um único camarada
mas sim milhões e milhões de camaradas
para o vingarem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a alvorada

Paul Éluard

Sunday 12 December 2021

Gorila

 O gorila é um animal
quase inteiramente humano.
Não tem patas quase pés,
não tem garras quase mãos.
Estou-lhes a falar
do gorila do bosque africano.

O animal que aqui se mostra,
por pouco
é inteiramente um gorila.
Patas em lugar de pés
e quase garras em lugar das mãos.
Estou-lhes a mostrar
o gorila americano.

Adquiriu-o
num quartel o nosso agente
para o Grande Zoo.

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Thursday 9 December 2021

Poema

Anda, vá, conta uma história
conta uma história qualquer,
conta lá, mamana Elisa

«Uma vêgi uma muilher
ficou triste, triste, triste
qui nunca mais tinha filho...»
(Mamana: a tristeza existe?
existe, mamana? existe?)
«Homi não qu'ria mais ela
porqui filho não nascia...»
(Que história!... Não gosto dela,
não era essa que eu queria...)
«Está bem, eu vai contar
aquela... da flor de rosa
qui vinha à noite dançar...

Mas óia, minino, óia
qui tu já tem muita idade...
Porque é qui tu nunca gosta
da história qui são virdade?...»

Guilherme de Melo
(In Poetas de Moçambique)

Monday 6 December 2021

Linc(h)e

Linc(h)e do Alabama.
Rabo em forma de chicote
e garras terciárias.
Costuma manifestar-se
com uma grande cruz em chamas.
Alimenta-se de negros, cilhas,
fogo, sangue, cravos,
alcatrão.

Capturado
junto a uma forca. Macho.
Castrado.

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Friday 3 December 2021

O Caraíba

No aquário do Grande Zoo,
nada o Caraíba.

Este animal
marítimo e enigmático
tem uma crista de cristal,
lombo azul, cauda verde
ventre em coral compacto,
barbatanas cinzentas de ciclone.

No aquário, esta inscrição:
«Cuidado: morde».

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Wednesday 1 December 2021

Necrologia

A poesia está aí, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...

Para exemplo
de pura ocasião
a poesia está, todos os dias
na necrologia dos jornais:
é crianças e mais crianças...
na relação dos feridos
nas catacumbas das prisões
e nos bancos dos hospitais:
«acometido de doença súbita
no Musseque da Lixeira,
foi transportado na ambulância,
Domingos João, que morreu
hoje, quinta-feira»

A poesia está aí, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...

E, até por ironia,
está escondida nas necrologias dos jornais!...


António Cardoso
(In Economia Política Poética)