Wednesday 30 April 2014

Tríptico do Trabalho



1 - A Terra


É da terra sangrenta. Terra braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
uma vezes o petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante.

Porque a terra não é de quem trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia.

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas de um cavalo à solta

quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpera dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão-de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução.
José Carlos Ary dos Santos

2 - A Fábrica

Da alavanca ao tear   da roda ao torno
da linha de montagem ao cadinho
do aço incandescente a entrar no forno
à agulha a trabalhar devagarinho.


Da prensa que se fez para esmagar
à tupia no corpo da madeira
do formão que nasceu a golpear
à força bruta duma britadeira.


Do ferro e do cimento até ao molde
que é quase um esgar de plástico sereno
do maçarico humano que nos solde
à luz da luta e não do acetileno


nasce este canto imenso e universal
sincopado  enérgico  fabril
sereia que soou em Portugal
à hora de pegarmos por Abril.


Transformar a matéria é transformar
a própria sociedade que nós fomos
ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos.


Um braço é muito mas por si só não chega
por trás da nossa mão há uma razão
que faz de cada gesto sempre a entrega
de um pouco mais de força. De mais pão.


Estamos todos num único universo
e não há uns abaixo outros acima
pois se um poema é uma obra em verso
um parafuso é uma obra-prima.


Operários das palavras ou do aço
da terra  do minério  do cimento
em cada um de nós há um pedaço
da força que só tem o sofrimento.


Vamos cavá-la com a pá das mãos
provar que em cada um nós somos mil
é tempo de alegria meus irmãos
é tempo de pegarmos por Abril.


José Carlos Ary dos Santos

3 - O Futuro

Isto vai meus amigos... isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente.

Isto vai meus amigos... isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente.

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos... isto vai.


 José Carlos Ary dos Santos

Sunday 27 April 2014

PROPÓSITO


Far-me-ei cada dia mais amigo dos loucos,
mas sem gritos; ou seja daqueles
que escondem e queimam o amor
no fogo secreto do cachimbo da vida
e o dão com o fumo e o ar que respiram,
em qualquer lugar;
ou seja (ou, por exemplo, se querem agora):
quando voltam a casa do trabalho,
ou vão pela rua,
ou sobem ao eléctrico, ou entram na igreja
que é talvez onde menos se gasta
deste santo Incenso,
ou quando... etcétera, etcétera, etcétera.
Deixemo-nos de palavras: sei que me entendem.

Josep Grau

Thursday 24 April 2014

Três retratos à la minuta


O BURGUÊS

A gravata de fibra como corda
amarrada à camisa mal suada
um estômago senil que só engorda
arrotando riqueza acumulada.

Uma espécie de polvo com açorda
de comida cem vezes mastigada
de cadeira de braços baixa e gorda
de cómoda com perna torneada.

Um baú de tolice. Uma chatice
com sorriso passado a purpurina
e olhos de pargo olhando de revés.

Para dizer quem é basta o que disse
é uma besta humana que rumina
é um filho da puta   é um burguês.

O BOMBISTA

Flamejante auriflama incendiada
patriótica face entumecida
com dentes de coroa cariada
e alma nacional - apodrecida.

Galões de oficial. Na face armada
um sorriso de arcanjo genocida
mais os comendadores da comendada
comandita que nos comanda a vida.

Olhar alarve mas não inocente
na mão aberta a palma democrata
na mão escondida a saudação fascista.

É fácil perceber que nem é gente
é um simples piolho que se cata
é um filho da puta   é um bombista.

A BRUXA

As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas torturadas
pelo próprio veneno das entranhas.

As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas tal como as aranhas.

Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.

Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espalhadas pela pele
é filha de si própria.   É uma bruxa.

Monday 21 April 2014

POETAS IMORTAIS


Há poetas
que se dizem imortais
porque nada os afecta.
Penteados e engomados
têm suaves estalos
e fazem o seu papel
de poetas de bem.

Há poetas
que se dizem intemporais
e só os cativa
a rosa,
a andorinha
ou uma palavra viva.
E se falo disto
é porque há poetas
que se dizem imortais
porque tocam timbales e trombetas.

Conheci-os
quando era rapaz.
Uma tarde,
armados dos instrumentos,
vieram-me buscar
e fomos todos juntos
à casa grande da vila.
Recordo bem o falsete,
e as rosas na parede,
e a música do soneto,
e o vinho azedo e os pastelinhos,
e o sorriso da presidenta.

Não voltei lá mais.
Deve ser por isso
que, quando me encontram pela rua,
não me falam
certos poetas imortais.

Juan Vergés

Friday 18 April 2014

O rumor de tantas águas


Inclino-me levemente sobre a nudeza devassada pelos anos. Um rio suspende a corrente em meus lábios rodeados pelo rumor de tantas águas. Quero que a linguagem simbolize um templo de absolvição e reza nas palavras em fuga pelos olhos. Deponho sobre o altar o naufrágio que começa em muitas bocas.
Graça Pires

Tuesday 15 April 2014

FIANÇA


Como uma só cara tenho,
tenho uma palavra só.
Quem tem duas faz-me dó,
ou, pior, dele desdenho.
Sabedor de donde venho,
certo de para onde vou,
embora cego de pó,
em me encontrar me entretenho.
Sou senhor de algum engenho
e tenaz também o sou.
E àqueles a quem me dou
em dar-me inteiro me empenho.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 April 2014

Cadeiras vazias


Em cardume
nos olhos dos peixes
lá estavam os pescadores

Na véspera dos relâmpagos
e outros afectos
dulcíssimos corações
clareavam as noites
e nós só podíamos fazer
o que fizémos

sentámos à mesa
os ausentes
levitámos em voz alta
o sussurro das marés
recolhemos metáforas
e algumas estrelas
no chão das águas

soltámos um grito

celebrámos as cadeiras vazias

Eufrázio Filipe

Wednesday 9 April 2014

E o vento trouxe este coro de presos do Aljube


«Houve, Noite:
só nós, os que não acreditamos no céu,
tivemos coragem de gritar a esta carcaça a fingir de vida: NÃO!

Nós, sem morte nem mundo,
para aqui a apodrecer nas tumbas do sol secreto
e a sonhar com um céu para os outros na Terra
que só o ódio vê.

E é esta a nossa guerra.
E é esta a nossa fé.»

José Gomes Ferreira

Sunday 6 April 2014

No princípio dos pássaros


Nunca foi importante
salvar o mundo
construir poemas
com palavras inintelegíveis

saber se és vento
barco relâmpago
mulher incerta
metáfora
escarpa
ou flor de estação

importante é quando passas
corpo de seara
sem magoar os cravos

e dulcíssima te desfolhas

Sempre me apaixonei
por esta desordem de cores
quando passas

não pelos teus passos
mas pela sua leveza
como no princípio dos pássaros

Eufrázio Filipe

Thursday 3 April 2014

NA VARANDA DE FLORBELA


Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste os olhos a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

Aqui vieram bailar as estações
e com elas tu bailaste.
Aqui mordeste os seios por abrir,
fechaste o corpo à sede das searas
e no lume de ti própria te queimaste.

Eugénio de Andrade

Tuesday 1 April 2014

Cometes o erro


Cometes o erro de não querer
cometer erros. Se tu pensas a dúvida, o erro pensa-te.
A alegria do erro está na tua perfeição,
uma ironia que é também o contrário,
vive nos teus gestos, nos teus olhos, no olhar
por detrás dos teus olhos, no que dizes
para não errar. Que sabes tu de ti,
que sabes tu dos outros que não seja
que em todos aconteces, que estás em tudo
e tudo está em ti ainda antes
de em ti permanecer. A tua força
está no que aconteceu, no que há-de acontecer,
mesmo que não saibas que o que não aconteceu,
aconteceu sem que o soubesses.

E que sei eu, mais do que tu?


Joaquim Pessoa
in O POUCO É PARA ONTEM