Monday 30 January 2012

DUAL




Dois cavalos a par eu conduzia
Não me guiava a mim mas meus cavalos

E no país de espanto e de tumulto
em mim se desuniu o que eu unia


Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 27 January 2012

TRADUZIDO DE KLEIST

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante
e brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
são olhos apodrecidos


Sophia de Mello Breyner Andresen

Tuesday 24 January 2012

Notícia para colar na parede


Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente


Egito Gonçalves

Saturday 21 January 2012

Os vegetantes


Continuam aqui
roendo as unhas!

Substituem as unhas por poemas
(ou cafés, futebol, anedotário)
e estilhaçam espelhos que na luz
ao seu devolvem a cruel imagem.

Vidrado limo o rosto
de rugas sem memória
assistem à vida como um filme:
disparar sobre a tela é proibido
e além do mais inútil.

Curvam ao solo os ombros
escorjados; curvam-nos para
duradoiras urtigas, seixos
sem horizonte, epitáfios
de lama, dezembros, poeira fria.

Se chovem as esperanças não acorrem
a apanhá-las na boca ao ar aberto.
Tijolo articulado a língua balbucia
«É a vida!», Sementes violadas
não germinam.

Em vão os bombardeiam os oráculos
com agulhas de sangue. Nada tentam
para dar vida à fala que utilizam,
ao país do cansaço que entre dentes
ressacam.

E fazem do amor essa triste humidade,
um delíquio formal logo amortalhado.

São dóceis, cibernéticos,
dia a dia premiados
de alguns gramas a mais
no chumbo do pescoço.


Egito Gonçalves

Wednesday 18 January 2012

Também aqui Vietnam


Cada manhã
recebemos no telégrafo o pão que nos impõem,
o que em agonia mastigamos vigiando
a dolorosa digestão: passará
nas tripas?

Leveda negro este pão da morte
a que não escaparemosNegrito
sem destruir esse forno de sombras
onde coze
a incurável ferida que rasgará as entranhas da terra.

Que outra coisa comer se é este o pão
que nos fere a gargaNegritonta a cada fome
onde quer que estejamos?

O tempo morde-nos os ossos. A tenaz
aperta-nos a voz sob os detritos.
Que casulo protege da farinha
assassina? Saiamos para a luz, Façamos
de toda a pedra bala
antes que o relâmpago irrompa e a música
seja o leve tombar da poeira radioactiva.


Egito Gonçalves

Sunday 15 January 2012

APONTAMENTOS PARA UMA CANÇÃO, MAIS TARDE


Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
para os que aprendem geografia nos comunicados de guerra,
nas notícias dos jornais,
nos telegramas do estrangeiro...
para os jovens que aprendem nomes complicados
de pronúncia estranha
com o coração
com a esperança
com o desalento...
para os que, como eu,
e outros mais novos
sabem com os nervos onde fica Adis-Abeba e Guadalajara,
Guadalcanal, o golfo de Akaba, Birkenau e Dien-Bien-Puh...
para os que sabem tudo da mistificação de Munique
da destruição de Oradour
da configuração de Seul
da conspiração de Caracas
da reconstrução de Coventry
da punição de Nuremberga...

Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
terrível como um campo de trigo incendiado,
ardente como os povos que resistem,
para os que sabem
o essencial de Granada - o nome de Federico,
de Istambul - o nome de Nazim Hikmet,
de Buchenwald, Drancy, Auschwitz, os nomes de Desnos
Max Jacob
Fondane
etc., etc.
centenas de etceteras
cada um correspondendo a um nome válido,
a um pássaro morto.

Uma canção sanguinária como a religião dos Tughs,
insólita como a erecção dos enforcados,
para os que ligam o nome dos generais ao número de cadáveres,
sabem os locais onde operam os construtores de ruínas,
sofrem cólicas diante dos placards
e regressam a casa, solitários,
para comer a sopa de mais uma derrota
em que não intervieram.

Uma canção selvagem como os caçadores de escalpes,
destruidora como um terramoto japonês,
para os que sabem de cada crime o ponto certo no mapa
e aprendem, cada manhã, novos nomes invulgares
que lhes rebentam os ouvidos
como se deflagrassem bombas dentro da «paz» que habitam.
(Nomes que os turistas não encontram nos roteiros de viagens
que as Agências lhes fornecem com o prazer enlatado.)

Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
firme como as flechas da Morte,
para os jovens eruditos da Geografia
que sabem tudo sobre Hiroshima
e respiram - até quando? - ao ritmo de Oak Ridge.


Egito Gonçalves

Thursday 12 January 2012

A um espantalho


Estás aqui a quê, espanta-pássaros? Ridícula
a tua pretensão, tu, tão frágil, grotesco,
armado de olhos mortos e cabeça empalhada.
Que podes tu fazer às pobres aves,
tão inútil que és - jornais e velhas roupas -
espeto solitário no meio da seara?
Mas é verdade, sim! Espantas, é bem certo!
Oh, vinde ver, incréus! Maravilha! As aves
afastam-se, voam longe, miram-no de lado,
buscam outras paragens. O trigo está guardado,
intocável... Que impotência (dos pássaros)
justifica tal coisa, que jeito em seu aspecto,
que truque alimenta esse receio? Que possui
para dar de fiador a um tal respeito? Paro
na margem deste campo; olho-te, espantalho. Nada
sei de ti e nada posso ler em teu perfil.
Surpreso assisto a desafiares a vida, hirto
papão, de olhos cegos ao mundo. (Serão olhos
os botões cosidos ao pano do teu rosto?)
Verifico daqui que o vivo te repele;
que as aves temem a tua maligna sombra
e somente longe engordam, nidificam,
procriam. Produzes apenas o silêncio
que eu em vão interrogo. Que mortalha sugeres?
Que horror te colaram ao dar-te forma humana?


Egito Gonçalves

Monday 9 January 2012

Campo de batalha


O poeta caminha, sem destino, desesperado,
vagando o olhar sobre as pilhas de cadáveres
- homens que partiram das suas terras para virem
apodrecer aqui, adubo amontoado.

O poeta escreve sobre os mortos! Recorda
as infâncias tão próximas, as lágrimas na estação,
os beijos da família, o abraço dos amigos,
o comboio enfeitado de flores e de bandeiras.

Estendidos na planície revolvida
nem moscas nem traições os incomodam.
Uma bomba transformou-os em quietude,
as mãos vazias, os amores parados...

Livres da angústia pela morte,
não sofrerão doenças ou velhice.
Haverá missas pela sua alma
e trigo semeado, em breve, neste solo.

Cada um deles esta rígido e perfeito
com direito a um crepe no retrato.
Imperfeita, no conjunto, só a bomba,
mas trabalha-se nela com afinco.


Egito Gonçalves

Friday 6 January 2012

Creio termos sido feitos para amar


Creio termos sido feitos para amar
tranquilos. Creio sermos velhos
e termos já sofrido o necessário
para comer em paz e ver o sol
cada manhã subir um novo dia
sem angústia alicerçada no nascente.
Creio termos gritado já bastante
em todos estes séculos - estes duros
anos que passaram - Navegámos
em círculo, morremos, renascemos...
Fugazes as tangentes que traçámos
e falharam a alegria.Tanto tempo
e nova morte espreita. A mão
habitual nos comprime as artérias,
Sempre os beijos longos nos escapam.
Não é então para nós? Não é ainda
o tempo de sorrir?


Egito Gonçalves

Tuesday 3 January 2012

INVENTÁRIO

E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,
um bípede com fala e sentimentos!
Ao cabo de misérias e tormentos,
continua
a ser a minha imagem que flutua
na podridão dos charcos luarentos!

Sou eu ainda a grande maravilha
que se mostra ao mundo!
O negro abismo que tem lá no fundo
um regato a correr:
uma risca de céu e de frescura
que murmura
a ver se alguma boca quer beber.

Quanto o grave silêncio da paisagem
me renega e protesta,
pouco importa na festa
deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Satanás,
eu é que fui capaz
de fazer o que fiz!

Podia ser melhor o meu destino,
ter o sol mais aberto em cada mão...
Mas, Adão,
dei o que a argila deu.
E, corpo e alma da degradação,
o milagre é que o Homem não morreu!

Não! Não me queiram na cova que não tenho,
porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
no meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
me levanto!

Miguel Torga

Sunday 1 January 2012

Minuto de silêncio em Buchenwald


Este minuto não é da minha morte!

Respiro normalmente
mas vejo num relance anos desfeitos
na ferrugem de ciclos,
na corrosão da juventude; anos
passados em furor, no estremecer da teia;
longo itinerário de textos cifrados onde
as atropelam imagens
que transportam um tempo calcinado
em amargura. Dois camaradas avançam,
colocam
no solo
a homenagem dos poetas. Distingo
o ruído de botas
no ar cinzento que conduz à morte,
o zumbido em atalho de angústia
que partilhei, imaginando. Concentro-me
pois sei que um sorriso então me salvará
da obsessão. Não se tolera
esta descida; mantém-se
em só lamento, invocação
de palavras no rastro das algemas
que se sabem abertas. A memória da dor
não é a dor; assim a reconheço
no decepar do grito mais claro
que a esperança criou há trinta anos
ao renascer as ruas num rio de alegria.
Em torno da torre,
ondas de névoa rasgadas de fantasmas
simulam o mármore do isolamento. Penso
em Abril - um ano; e pude
estar aqui! - um ano; e pude
estar aqui! Ter vivido! Chegado
ao solene minuto
numa linha de bétulas,
para verter a emoção que deixo
- neste instante de silêncio -
livremente rolar no chão sagrado
se Buchenwald.

(1975)


Egito Gonçalves