Monday 27 February 2012

Massa



No final da batalha,
e morto o combatente, aproximou-se dele um homem
e disse-lhe: «Não morras, amo-te tanto!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Aproximaram-se dele dois e repetiram-lhe:
«Não nos deixes! Coragem! Volta à vida!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Acudiram-lhe vinte, cem, mil, quinhentos mil,
clamando: «Tanto amor, e não poder nada contra a morte!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Milhões de indivíduos o rodearam,
num pedido comum: «Não nos deixes, irmão!»
Mas o cadáver, ai!, continuou a morrer.

Então, todo os homens que há na terra
o rodearam; viu-os o cadáver triste, emocionado;
soergueu-se lentamente,
abraçou o primeiro homem. E começou a andar...


César Vallejo

Friday 24 February 2012

A um Papa



Poucos dias antes que morresses, a morte
tinha posto os olhos num teu coetâneo:
aos vinte anos, eras estudante, ele servente,
tu, nobre, rico, ele um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma que se tornava assim nova.

Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Girava de noite, bêbedo, em volta dos Mercados,
e o eléctrico de São Paulo atropelou-o
e arrastou uma parte pelas linhas entre os plátanos:
algum tempo ali ficou, sob as rodas:
alguma gente se reuniu em torno a olhá-lo
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque tu existes,
um velho polícia, desleixado como um «guapo»,
gritava a quem se encostava muito: «Larguem-lhe a braguilha!»
Depois veio o automóvel dum hospital a carregá-lo:
a gente dispersou, ficou qualquer frangalho aqui e ali,
e a dona de um bar nocturno, mais à frente,
que o conhecia, disse a um recém chegado
que Zucchetto acabara sob o eléctrico, finara-se.

Poucos dias depois acabavas tu: Zucchetto era um
da tua grande grei romana e humana,
um pobre bebedolas, sem família e sem leito,
que girava de noite, vivendo quem sabe como.
Tu não sabias nada: como não sabias nada
de outros tantos e tantos cristos como ele.
Talvez seja feroz ao perguntar-me por que razão
a gente como Zucchetto era indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem numa poeira antiga, em lama de outra época.
Precisamente não longo donde viveste,
à vista da bela cúpula de S. Pedro,
há um destes lugares, o Gelsomino...
Um monte talhado ao meio por uma mina e, em baixo,
entre pedras e uma fila de novos prédios,
um grupo de míseras construções, não casas mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto teu, uma palavra tua,
para que aqueles teus filhos tivessem uma casa:
tu não fizeste um gesto, não disseste uma palavra.
Não te pedíamos que perdoasses a Marx! Uma onda
imensa que se refracta por milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas na tua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
perante os teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu o sabias, pecar não significa fazer mal:
não fazer bem, isso é que significa pecar.
Quanto bem podias fazer! E não o fizeste:
não houve um pecador maior do que tu.


Pier Paolo Pasolini

Tuesday 21 February 2012

EL CRIMEN FUE EN GRANADA: A FEDERICO GARCIA LORCA

1 - El crimen

Se le vio, caminando entre fusiles,
por una calle larga,
salir al campo frio,
aún con estrellas de la madrugada.
Mataron a Federico
quando la luz asomaba.
El pelotón de verdugos
no osó mirarle la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ni Dios te salva!
Muerto cayó Federico
- sangre en la frente y ploma en las entrañas.
... Que fue en Granda el crimen
sabed - pobre Granada! - en su Granada.


2 - El poeta y la muerte

Se le vio caminar solo con Ella
sin miedo a su gadaña.
- Ya el sol en torre y torre, los martillos
en yunque - yunque y yunque de las fraguas.
Hablaba Federico,
requebrando a la muerte. Ella escuchaba:
«Porque ayer en mi verso, compañera,
sonaba el golpe de tus secas palmas,
y liste el hielo a mi cantar, y el filo
a mi tragedia de tu hoz de plata,
te cantaré la carne que no tienes,
los ojos que te faltan,
tus cabellos que el viento sacudia,
los rojos labios donde te besaban...
Hoy como ayer, gitana, muerte mia,
qué bien contigo a solas,
por estos aires de Granada, mi Granada!»


3 - Se le vio caminar...

Labrad, amigos,
de piedra e sueño en el Alhambra,
un túmulo al poeta,
sobre una fuente donde llhore al agua,
y eternamente diga:
el crimen fue en Granada, en su Granada!


António Machado

Saturday 18 February 2012

PROGRAMA

Esta ânsia de indagar,
de analisar, de propor,
de discutir, de negar,
de afirmar só duvidando,
para a cada dúvida erguida
sempre outras razões opor,
de por igual estar presente
onde estou e onde não estou,
é o caminho mais puro
que vale a pena trilhar.

Este prazer de arrasar,
para de novo construir,
de imaginar que sou aço,
sem me esquecer de que sou,
irremediavelmente,
mísero, frágil, comum,
de pele, músculos, ossos,
sangue, nervos, desatinos,
é o destino mais claro
que vale a pena sonhar.

Este orgulho de não querer
nada para mim apenas,
para ter os braços mais livres,
para mais livre pensar,
para ser mais de direito
dono do que necessito,
para a quanto me rodeia
não o achar nunca estreito,
é a riqueza maior
que vale a pena ganhar.

Armindo Rodrigues

Wednesday 15 February 2012

QUANDO INVENTARAM DEUS


Quando inventaram Deus, a palavra
voava a pouca altura, o alfabeto
estava por nascer. Isto foi ao princípio.
Quando se fizeram os primeiros livros,
encheram-nos de metafísica (sempre
mal estudada) e do terrorismo do além.

É uma triste façanha essa de arremeter
contra a gasta ciência dos antigos,
não é a táctica adequada. Ponhamos
os anjos no seu lugar, os hálitos celestiais
no olvido, as bíblicas sentenças no centro
da luta de classes. Nós, os materialistas,
sentimos pena dos crentes saídos de Oxford,
dos agentes da bolsa que inventaram a fraude
e nem por isso deixam de cumprir os ritos, suas
encomendas ao Senhor dos espaços.

Quando inventaram Deus, as condições eram outras.
Agora, trata-se de pôr em ordem as nossas coisas.
A princípio foi a matéria e só depois é que
se mesclaram os céus e a terra.

Luis Suardíaz

Sunday 12 February 2012

Catarina Eufémia

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
e eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
porque a lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti
e não ficaste em casa a cozinhar intrigas
segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
nem usaste de manobra ou de calúnia
e não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
em que era preciso que alguém não recuasse
e a terra bebeu um sangue duas vezes puro

Porque eras a mulher e não somente a fêmea
eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da justiça continua


Sophia de Mello Breyner Andresen

Thursday 9 February 2012

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA



Para que ela tivesse um pescoço tão fino
para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
para que a sua espinha fosse tão direita
e ela usasse a cabeça tão erguida
com uma tão simples claridade sobre a testa
foram necessárias sucessivas gerações de escravos
de corpo dobrado e grossas mãos pacientes
servindo sucessivas gerações de príncipes
ainda um pouco toscos e grosseiros
ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdício de gente
para que ela fosse aquela perfeição
solitária exilada sem destino


Sophia de Mello Breyner Andresen

Monday 6 February 2012

CAMÕES E A TENÇA

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram
calúnias desamor inveja ardente
e sempre os inimigos sobejaram
a quem ousou mais ser que a outra gente

E aqueles que invocaste não te viram
porque estavam curvados e dobrados
pela paciência cuja mão de cinza
tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao paço pacientemente
pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente


Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 3 February 2012

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL

Minúcia é o labirinto Muro por muro
pedra contra pedra livro sobre livro
rua após rua escada após escada
se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
se multiplicam as salas e cintilam
os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
e do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
biblioteca rede inventário colmeia -
Itinerário é o labirinto
como o subir de um astro inelutável -
Mas aquele que o percorre não encontra
toiro nenhum solar nem sol nem lua
mas só o vidro sucessivo do vazio
e um brilho de azulejos íman frio
onde os espelhos devoram as imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamos
na minúcia da busca na atenção da busca
na luz mutável: de quadrado em quadro
encontramos desvios redes e castelos
torres de vidro corredores de espanto

Mas um dia emergiremos e as cidades
da equidade mostrarão seu branco
sua cal sua aurora seu prodígio


Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday 1 February 2012

Caxias 68

Luz recortada nesta manhã fria
muros e portões chave após chave
O meu amor por ti é fundo e grave
confirmado nas grades deste dia


Sophia de Mello Breyner Andresen