Saturday 30 October 2021

Um dia virá...

Um dia virá, como uma borboleta,
em que através dos campos um hálito benigno,
caricioso e doce, tudo fecundará.
Então, pedras, ou nuvens, ou rios, ou estrelas
obedecerão aos homens, nunca mais divididos
em senhores e escravos, em ambiciosos e humildes.
Será a era fácil de uma felicidade
feita de farto pão, de paz, de amor fraterno,
dificilmente obtida por uma luta tenaz.
Deixarão de existir a cobiça, a inveja,
o gosto de domínio, a intriga, a traição,
a petulância, o espanto, o desalento, a ira.
Mas quando é que virá esse dia final?

Armindo Rodrigues

Wednesday 27 October 2021

Poema

Neste ano de 1962
primeiro de Maio
ao começo da noite
podemos finalmente olhar no espelho a nossa imagem
sem temor nem vergonha

Na solidão do quarto meu Amor
podemos pela primeira vez
deixar de recear futuros julgamentos
e as perguntas silenciosas nos olhos dos vindouros
esquecer a humilhação o insulto sem resposta
que foi o nosso pão quotidiano e áspero

Agora podemos ser de novo homens
livres ainda que presos
mastigando a comida sem o sabor a lágrimas
antes com o sal da esperança
merecido tempero paga justa da luta

Renegamos o passado maculado de angústias
esquecemos as pequenas diárias covardias
os negócios onde tudo se perde e até a honra

Neste primeiro de Maio de 1962
podemos finalmente sorrir sem amargura

Daniel Filipe
(«Pátria, lugar de exílio»)

Sunday 24 October 2021

Uma vez eu tive um cravo

Uma vez eu tive um cravo
cravado no coração,
e eu não me acordo já se aquele cravo era
de ouro, de ferro ou de amor.
Só sei que ele me fez um mal tão fundo,
que tanto me atormentou,
que eu dia e noite sem cessar chorava
qual chorou Madalena na Paixão.

«Senhor, Vós que podeis tudo -
pedi a Deus numa ocasião -
dai-me valor para arrancar de um golpe
cravo de tal condição».
E deu-mo Deus e arranquei-mo.
Mas... quem pensara?... depois
já não senti mais tormentos
nem mais soube o que era dor;
soube só que não sei quê me faltava
onde o cravo me faltou,
e até penso que tive saudades
ai, meu Deus! da antiga dor.

Este barro mortal que envolve o espírito
quem o entenderá, Senhor!...

Rosalia de Castro

Thursday 21 October 2021

Caçando gambozinos

Vem caçar gambozinos
jovem d'olhar brilhante
e eterno coração
vem sem nada trazer na mão
e esperes não
que eu t'empreste
meu alçapão
vem
e aprende à tua custa
que a vida não é senão
uma eterna caçada
aos gambozinos
esse animal feito de sonho
e ilusão
e que assim mesmo
vala a pena a perseguição.

João Melo
(Angola)

Monday 18 October 2021

O novo mandamento

Está criado
o novo mandamento. Aos pássaros
dirás: não cantareis; às flores:
não florireis. E florirão
as bombas. E ao sangue
dirás: rio
serás. E sobre
os escombros erguerás
o homem novo, o seu cadáver, desenharás
a ferro e fogo o mapa
do luto e das lágrimas. E imporás,
enfim,
a liberdade. A liberdade
do terror das armas. A liberdade
para matar.

Albano Martins 

Friday 15 October 2021

Perguntas

Onde estavas tu quando fiz vinte anos
e tinha uma boca de anjo pálido?
Em que sítio estavas quando o Che foi estampado
nas camisolas das teen-agers de todos os estados da América?
Em que covil ou gruta esconderam as suas armas
para com elas fazer posters cinzentos e emblemas?
Onde te encontravas quando lançaram mão a isto?
E atrás de quê te ocultavas quando
mataram Luther King para justificar sei lá que agressões
ao mesmo tempo que víamos Música no Coração
mastigando chiclets numa matinée do cinema Condes?
Por onde andavas que não viste os corações brancos
retalhados na Coreia e no Vietname
nem ouviste nenhuma das canções do Bob Dylan
virando também as costas quando arrasaram Wiriamu e
enterraram vivas
mulheres e crianças em nome
de uma pátria una e indivisível?
Que caminho escolheram os teus passos
no momento em que foram enforcados
os guerrilheiros negros da África do Sul
ou Allende terminou o seu último discurso?
Ainda estavas presente quando Victor Jara
pronunciou as suas últimas palavras?
E nem uma vez por acaso assististe
às chacinas dos Esquadrões da Morte?
Fugiste de Dachau e Estalinegrado?
Não puseste os pés em Auschwitz?
Que diabo andaste a fazer o tempo todo
que ninguém te encontrou em lugar algum?

Joaquim Pessoa

Tuesday 12 October 2021

vertigem


a vertigem
é um ponto de fuga
um nadir desimpedido
de espaço nenhum 
entre nós e a mais distante parede do universo
a vertigem 
é um ponto bem debaixo dos teus pés
quando não há chão que pises
a vertigem 
é a expiração 
que não se segue de inspiração.
 
Miguel Tiago
 

Saturday 9 October 2021

estética do domínio II

toda a pobreza é bela aos olhos do homem que negoceia peles, ossos, braços e cérebros de outros homens.

Miguel Tiago

Wednesday 6 October 2021

sem título

apesar dos olhos fechados
pulverizei de estrelas a escuridão.

Miguel Tiago

Sunday 3 October 2021

sem título

há um barco que nos leva
através da vaga.
sob a maresia há portos de abrigo.
ao longe. após as fragas. 

Miguel Tiago

Friday 1 October 2021

acordo ortográfico

bem sei que a escrita não faz parte da Língua
ainda bem.
escrever ato não escrevo
persisto no acto
não gosto de ser lambido por uma língua morta.

Miguel Tiago