Monday 30 April 2018

Recurso


Apenas quando as lágrimas me dão
um sentido mais fundo ao teu segredo
é que eu me sinto puro e me concedo
a graça de escutar o coração.

Logo a seguir (porquê?), vem a suspeita
de que em nós dois tudo é premeditado.
E as lágrimas então seguem o fado
de tudo quanto o nosso amor rejeita.

Não mais queremos saber do coração,
nem nos importa o que ele nos concede,
regressando, febris, àquela sede
onde só vale o que os sentidos dão.

David Mourão-Ferreira

Friday 27 April 2018

O meu é teu


O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.

O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é nosso.
E tudo o mais que aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.

Dizem que sou. Dizem que faço.
Que tenho braços e pescoço
- que é da cabeça que desfaço,
que é dos poemas que eu não ouço?

O meu é teu. O teu é meu.
E o nosso, nosso quando posso
olhar de frente para o céu
e sem o ver galgar o fosso.

Mas tu és tu e eu sou eu
Não vejo o fundo ao nosso poço,
o meu é meu dá-me o que é teu
depois veremos o que é nosso.

Ary dos Santos

Tuesday 24 April 2018

Creio


Creio nos anjos
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamantes
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,

Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta ao muro
Creio na carne
que enfeitiça o além

Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor
tem asas de ouro.

Amén.

Natália Correia

Saturday 21 April 2018

Sempre que tu vens é Primavera


Aqui, em Portugal, donde partiste
No tempo da coragem de lutar
Em cada terra os ventos te murmuram
E as cartas da ausência te procuram
Para que venhas ver o teu lugar

Há um banco debaixo da videira
Que espreita a sombra que outra sombra dera
E há um rio a contar á sua margem
Que te chama do longe da viagem
Pois sempre que tu vens é Primavera

Ficou no cais do céu um lenço branco
Ou numa estrada a curva do horizonte
E uns olhos de mulher contam as horas
Nos pinheiros que sentem que demoras
Nas silvas do caminho ao pé da fonte

Vem ter aquela estrela que deixaste
E essa roseira no jardim que espera
E traz os filhos que te são raíz
Para que sintam o sol do seu país
Pois sempre que tu vens é Primavera.

Vem guardar o tempo na cidade que te espera
Guardar o sol e o mar no vento da amizade
Pois sempre que tu vens é Primavera.


Vasco de Lima Couto

Wednesday 18 April 2018

Começar de novo


Esta gaivota que vai
Seguindo o navio
Este céu que despreza a morte
Esta luz, este rio

Tudo num sonho que apenas
Foi desenhado
Para eu aprender de novo
A viver a teu lado

Dentro de nós temos nós
De seguir a lição
Desta luz que a manhã
Nos oferece novamente

Dentro de nós vai o mundo
Tornar-se canção
É preciso que tudo
Comece novamente

Vento no rosto
E tanto sol nos meus braços
Tanto sol que depois te cerca
A travar os teus passos

Tudo num sonho
Que foi assim desenhado
Para tu começares de novo
A viver a meu lado.

David Mourão-Ferreira

Sunday 15 April 2018

Fogo preso


Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando

Essa luz repentina
Até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento,
Tão violento e brando

Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando

E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento

A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento.

Vasco Graça Moura

Thursday 12 April 2018

Gritava contra o silêncio


Gritava como se estivesse só no mundo,
como se tivesse ultrapassado
toda a companhia e toda a razão
e tivesse encontrado a pura solidão.
Gritava contra as paredes, contra as pedras,
contra a sombra da noite.

Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão,
como se o seu desespero e a sua dor
brotassem do próprio chão que a suportava.
Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela
os confins do universo e aí,
tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a
responder.
Gritava contra o silêncio.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Monday 9 April 2018

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

Friday 6 April 2018

Lírio Roxo


Viajei por toda a terra
Desde o norte até ao sul;
Em toda a parte do mundo
Vi mar verde e céu azul

Em toda a parte vi flores
Romperem do pó do chão
Universais, como as dores do mundo
Que em toda a parte se dão

Vi sempre estrelas serenas
E as ondas morrendo em espuma
Todo o sol, um sol apenas,
E a lua sempre só uma

Diferente de quanto existe
Só a dor que me reparte
Enquanto em mim morro triste
Nasço alegre em toda a parte.

António Gedeão

Tuesday 3 April 2018

Era a noite que caía


Era a noite que caía
E na sombra recolhia
O voo das andorinhas.
Era a voz que se calava,
Era a dor de ver que estava
Sem as tuas mãos nas minhas

Eram passos que escutei,
Que eram teus ainda pensei,
Iludiu-me o coração.
Foram pela rua escura
Longe da minha amargura
E acompanhei-os em vão

Fiquei perto da janela,
Pus-me a abri-la com cautela,
Fiz disfarce da cortina.
Vi então na luz incerta
Que a rua estava deserta
E deserta estava a esquina.

Era só eu na escuridão,
Era no peito um rasgão,
Era já no céu a lua,
Que me importa?, á minha porta
A sombra que se recorta
Bem pode ainda ser a tua.

Vasco Graça Moura

Sunday 1 April 2018

Soneto


Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer os olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arredeio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.


António Gedeão