Tuesday 30 July 2019

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Tudo o que é ingénuo, simples e espontâneo
se entrega por inteiro à terra prometida,
como verso puro, magnânimo,
onde se enlaça apaixonada a vida

e onde a morte não liberta
os seres do corpo duro da lembrança.
Onde tudo é ingénuo, há esperança
no imaginário oculto que desperta.

E as almas são a porta aberta
ao fundo princípio da incerteza
do rasto luminoso da beleza

que nos guia ao lugar fecundo
onde cada ser é o mundo
e sua promessa de grandeza.

Carlos Carranca

Saturday 27 July 2019

Memória Ausente


O que me aflige é esta inconsciência em que vivo de mim próprio,
esta infinita distância em que me acho e a que chamo eu.
Eu, memória de mim que não vivi.
Eu, eternidade sem tempo.
Eu, filho de mim próprio de tanto imaginar.
Eu, vontade de ser identidade que se assombra.
Eu, fealdade e beleza.
Eu, filho pródigo do Homem.


Carlos Carranca

Wednesday 24 July 2019

MAR


É deste mar iniciático e limpo
que alcanço outra lonjura.
Acho - me nas ondas onde brinco
infante, no dorso da aventura.


Sempre fui assim
dum tempo inominado,
sem princípio nem fim,
nem futuro, nem passado.

Só meu, como um brinquedo
que se guarda e esconde
p'ra que ninguém o veja,

dentro de mim, o medo.
Esse lugar onde
não há uma força maior que o proteja.

Carlos Carranca

Sunday 21 July 2019

DEUS NO SEU LUGAR


Eu moro num lugar
remoto, primitivo,
onde algumas casas
lembram rústicos palácios
e outras casebres roídos pela fome.


É Deus o ponto de partida,
o cenário, a voz, a própria vida,
a sua não - existência consentida
apregoando um cepticismo inquieto,
cansado de dogmas e de ritos.

Inútil e perfeito
vive na ausência
de ser único,
colectivo
testemunho da fé elementar.

Carlos Carranca

Thursday 18 July 2019

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Dormi num duplo sonho
que me observa e se dilata,
tomando po inteiro esse cenário
fantasioso e consentido

de palavras segredadas ao ouvido
de modo vário,
onde a alma se arrebata
ante um céu brando e medonho.

Mas nada dessa cor
é uma cantata
de luz, uma oração.

Onde sangrei eu o coração,
nessa bravata
de redobrado amor?

Carlos Carranca

Monday 15 July 2019

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Em mim afirmação ou negação vão juntas.
Sou quem se nega ou se confirma
em si mesmo juiz e condenado,
creio no absurdo,
no contrário profético
no verso meticuloso e calculado.


O pensamento ocorre e não discorre
e se expande e derrama pelo mundo.
Por isso tudo existe
quando somos e transcendemos,
espaço negro,
singularidade nua.

Carlos Carranca

Friday 12 July 2019

EPIGRAMA

O país tem de ter juízo
poupar mais, menos gastar.
Aí está o que é preciso.
Por isso os salários devem baixar.

A economia manda aviso.
Emprego tem de aumentar.
Aí está o que é preciso.
Por isso os salários devem baixar.

A inflação é prejuízo.
Há que mandá-la ao ar.
Aí está o que é preciso.
Por isso os salários devem baixar.

«Dói-me a queixada direita,
doutor, o que faço a isto?
(diz Cavaco), o que receita?
- «Baixar os salários, está visto»

Mário Castrim

Tuesday 9 July 2019

MANIFESTO


Quem nos vem salvar dos livros gigantes que emolduram as janelas dos quartos dos hospitais?
Quem nos vem salvar da mentira?
Quem nos vem salvar do falso?
Quem nos vem salvar do mal?

Cumpramos os verdadeiros.

Que só nos resta o papel de parede
a dizer, façamos por merecer
esses amigos onde o tempo escreve.
Cumpramos a liberdade que nos resta.

Faz por não esquecer!

Carlos Carranca

Saturday 6 July 2019

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Quando chegar o dia de assombrar a casa
dos versos que deixei por escrever,
todos dirão algo de belo e inconsistente :
contarão estórias aos filhos e aos netos
a propósito duma árvore, duma erva de cheiro,
duma flor - aquela! Da mansidão do meu pinheiro gigante, das três oliveiras irmãs,
do gato vadio que me pulava para o colo
e se sentava entre os livros e sussurrava poemas
e eu a tentar decifrá-los sem que ninguém suspeitasse.
E falarão da tília que cinge de paz e de mel
os odores do mês de de Junho.
E desta magia do sol filtrado
pelos bagos negros das uvas pintando na latada
onde crescem como testículos, os kiwis.
E talvez de poesia e sua natureza.


Carlos Carranca

Wednesday 3 July 2019

A UM LIMOEIRO


Na casa há um limoeiro sensual.
Esfrega-se na parede, de tetas rijas, luminosas,
entre as cores subtis dumas orquídeas,
e a presença solitária dumas rosas.

É um caso de sexo vegetal
onde cumpre original o seu destino,
de parecer um animal
em êxtase e ser também citrino.

Carlos Carranca

Monday 1 July 2019

A noite gosta de mim


Sei que estás ao pé de mim
Quando o tempo se repete
E o dia chega ao fim
Sem que a noite se inquiete

Nos instantes repetidos
Em que escuto o teu cansaço
Sou igual aos meus sentidos
E o Tempo igual ao Espaço

Mas se o tempo é infinito
Quando o dia chega ao fim
Fecho os olhos e repito:
A noite gosta de mim

E peço ao Tempo e ao Mundo
Que me seja permitido
Viver um breve segundo
Que tu já tenhas vivido

Mas se o tempo é infinito
Quando o dia chega ao fim
Fecho os olhos e repito:
A noite gosta de mim.

Tiago Torres da Silva