Tuesday 30 July 2013

SALMO 57


Senhores defensores da Ordem e da Lei:
porventura o vosso Direito não é de classe?
o Civil para proteger a propriedade privada
o Penal para aplicá-lo às classes dominadas

A liberdade de que falam é a do capital
o seu «mundo livre» é a livre exploração
Sua lei é a das armas, sua ordem a dos gorilas
vossa é a polícia
são vossos os juízes
Na prisão não há latifundiários nem banqueiros

Extraviam-se os burgueses já no seio materno
têm preconceitos de classe desde que nasceram
como a cascavel nasce com venenosas glândulas
como nasce o tubarão devorador de gente

Oh Deus acaba com o statu quo
arranca os colmilhos aos oligarcas
Que se precipitem como a água dos autoclismos
e sequem como as ervas sob o herbicida

Eles são os «gusanos» quando chega a Revolução
não são células do corpo mas somente micróbios
Abortos do homem novo que é preciso atirar
Antes que lancem espinhos que o tractor os arranque
O povo irá divertir-se nos clubes privativos
entrará na posse das empresas privadas
o justo há-de alegrar-se com os Tribunais do Povo
Festejaremos em grande praças o aniversário da Revolução

O Deus que existe é o dos proletários


Ernesto Cardenal

Saturday 27 July 2013

O REGINO


O Regino era um homem sem trabalho;
de tanto padecer fez-se mendigo
e levava já de ofício vinte anos.
De cór sabia o bater das portas,
os degraus das catedrais
e as pedras de todos os caminhos;
polia com as costas as esquinas,
aquecia ao sol suas sardinhas.
Tinha calos de pedir esmola,
a mão curtida pelos ventos
e uma ferida no centro da palma
por onde já caíam as moedas.

Fora seu ofício o de mineiro
porém tossia quando ia à mina
e o médico aconselhou «mudança de ares»;
mendiga desde então
pelas aldeias da serra.


Glória Fuertes

Wednesday 24 July 2013

CANÇÃO DO SEMEADOR


Eu estou semeando,
a terra da minha amada ser-me-á fecunda.

Eu estou semeando,
eu estou possuindo o corpo suave da minha amada,
eu tomei o arado, abri as leivas, lancei as sementes,
milhões de homens, milhões de palavras, milhões de searas
tudo será novíssimo.

Eu estou semeando,
milhões de sementes nesta hora lanço à terra da minha amada,
benéficas me serão as chuvas,
as colheitas virão em breve no seu tempo
e todas as dores terão sido necessárias,
tudo estará saldado.

Eu estou semeando,
eu estou semeando milhões como NÓS,
eu estou semeando as novas searas abundantes,
eu estou semeando as novas palavras humanas,
eu estou semeando na terra da minha amada.

Eu estou semeando,
o ventre da minha amada eu o perfumei
de rosmaninho silvestre,
a terra da minha amada é vermelha e fecunda,
eu lanço as sementes e estou vendo o futuro,
vejo as searas e as vinhas e os homens em flor.

Papiniano Carlos
(In A ave sobre a cidade)

Sunday 21 July 2013

CORO DOS ÓRFÃOS



NÓS ÓRFÃOS
queixamo-nos ao mundo:
Cortaram-nos o nosso ramo
e atiraram-no ao fogo -
lenha de queimar fizeram dos nossos protectores -
nós órfãos jazemos nos campos da solidão.
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Na noite os nossos pais jogam connosco às escondidas -
por trás das dobras negras da noite
as suas faces nos olham,
falam as suas bocas:
Lenha seca fomos nós na mão de um lenhador -
mas os nossos olhos fizeram-se olhos de anjos
e olham para vós,
através das dobras negras da noite
eles olham -
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
das pedras fizemos os nossos brinquedos,
pedras têm caras, caras de pai e mãe
não murcham como flores, não mordem como bichos -
e não ardem como lenha seca quando as metem no forno -
Nós órfãos
queixamo-nos ao mundo:
Mundo porque nos tiraste as nossas mães tenras
e os pais que dizem: Meu filho és parecido comigo!
Nós órfãos não somos parecidos com ninguém mais no mundo!
Ó Mundo
queixamo-nos de ti!

Nelly Sachs

Thursday 18 July 2013

COMO OS TECELÕES DE TAPETES DE KUJAN-BULAK HONRARAM A MEMÓRIA DE LÉNINE


1

Muitas vezes e à farta foi honrado
o Camarada Lénine. Há bustos dele e estátuas.
Puseram o nome dele a cidades e crianças.
Fazem-se discursos em muitas línguas
há assembleias e demonstrações
desde Xangai a Chicago em honra de Lénine.
Mas foi assim que o honraram os tecelões de tapetes
de Kujan-Bulak, pequena povoação no Sul do Turquestão:
Vinte tecelões de tapetes levantam-se ali ao anoitecer
do miserável tear, sacudidos pela febre.
Anda febre por lá: a estação de caminho-de-ferro
está cheia do zumbir dos mosquitos, nuvem espessa
que se ergue do pântano por detrás do velho cemitério dos camelos.
Mas o comboio
que de quinze em quinze dias traz água e fumo, traz
também um belo dia a notícia
que vem aí o dia da homenagem ao Camarada Lénine.
E as gentes de Kujan-Bulak, gente
pobre, tecelões de tapetes, decidem
que também na sua povoação
se erga o busto de gesso ao Camarada Lénine.
Mas quando se vai juntar o dinheiro para o busto
ei-los todos sacudidos de febre a pagar
os copeques penosamente ganhos com mãos a adejar.
E Stepa Gamalev, do Exército Vermelho, que vai contando
e vendo com cuidado e precisão.
vê a prontidão deles em honrar Lénine, e fica contente,
mas vê também as mãos vacilantes,
e faz de repente a proposta
de comprar, com o dinheiro para o busto, petróleo
para derramar no pântano atrás do cemitério dos camelos
donde vêm os mosquitos
que causam febres.
Para assim combater as febres em Kujan-Bulak, e em verdade
em honra do falecido, mas
não esquecido
Camarada Lénine.

Assim o resolveram. No dia da homenagem levaram
os seus baldes amolgados cheios de petróleo negro
um após outro, para lá,
e regaram o pântano com ele.
Assim tiraram proveito para si mesmos ao honrarem Lénine e
honraram-no, com proveito para si mesmos, e assim
o tinham entendido.

2

Ouvimos pois como as gentes de Kujan-Bulak
honraram Lénine. Mas à noitinha,
comprado e espalhado o petróleo sobre o pântano,
eis se levantou um homem na assembleia e exigiu
que se colocasse uma placa na estação do comboio
com o relato do acontecido, contendo
também exactamente a alteração do plano e a troca
do busto de Lénine pela tonelada de petróleo que acabou com as febres.
E tudo isto em honra de Lénine.
E assim fizeram também isto
e puseram a placa.

Brecht

Monday 15 July 2013

SOLIDARIEDADE



Vamos, dêem as mãos.

Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo, essa raiva?
Porquê essa imensa barreira
entre o Eu e o Nós na natural conjugação do verbo ser?

Vamos, dêem as mãos.

Para quê esses bons-dias, boas-noites,
se é um grunhido apenas e não uma saudação?
Para quê esse sorriso
se é um simples contrair de pele e nada mais?

Vamos, dêem as mãos.

Já que a nossa amargura é a mesma amargura,
já que a miséria para nós tem as mesmas sete letras,
já que o sangrar dos nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,
fiquemos juntos,
sejamos juntos.
Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo, essa raiva?

Vamos, dêem as mãos.


Mário Dionísio

Friday 12 July 2013

ARTE POÉTICA



A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida.
Nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos, de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica
e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vai-vem de milhões de pessoas ou falando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
- e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas dos comboios a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos rasgados abertos para amanhã.


Mário Dionísio

Tuesday 9 July 2013

Utilidade



Só as mãos que se estendem para a frente interessam.
Só os olhos que vêem para além do que se vê,
só o que vai para o que vem depois,
só o sacrifício por uma realidade que ainda não existe,
só o amor por qualquer coisa que ainda não se vê e ainda, nem nunca, será nossa,
interessa.


Mário Dionísio

Saturday 6 July 2013

O OUTONO DOS TIRANOS


Tirano vem, tirano vai,
no vai-e-vem sempre cai,
não há tirano que não caia.
Vive no cai-que-não-cai
com sua lei, sua laia
temendo o homem que vai,
o homem que vai
e vaia.

Sidónio Muralha

Wednesday 3 July 2013

Poema


(Morreu Picasso, que não se limitou a
mostrar com génio nos seus quadros as coisas e
os homens destruídos pelo sistema capitalista...)

Mais nos ensinou Picasso:
que não se é jovem apenas biologicamente,
em virtude
da força com que se luta, o vigor do passo,
o sangue ardente,
nenhuma ruga na face,
o punho agreste e rude.

Na opinião dele
a juventude
nada tem a ver com a pele.
É um sonho mais profundo.
Constrói-se, faz-se
hora a hora, dia a dia,
segundo a segundo.

Sobretudo quando se é comunista
como ele era,
e se ambiciona um Novo Mundo
em que exista
a imaginação, a alegria
e a dupla primavera
nos homens e na Terra.

José Gomes Ferreira

Monday 1 July 2013

AO MORRER...



Ao morrer, nada mais me importará.
Por antecipação, nem já me importa.
Com consciência, pois, do paradoxo,
é que ouso dizer com bonomia
que até quem se incomode a acompanhar-me
o corpo hirto, inerte, a apodrecer,
ao cemitério sossegado e claro,
o fará com desgosto meu actual.
Nunca gostei de incomodar ninguém.
Mas quem não quero lá, fique isto assente,
são padres, charlatães, capitalistas,
para nem morto suportar ofensas.

Armindo Rodrigues