Saturday 30 January 2016

AVÔ



O avô estava a olhar para longe
longe
para tão longe daqui

- Para onde estás a olhar, avô?

- Estou a olhar para ti.


Mário Castrim

Wednesday 27 January 2016

GREEN GOD

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.

Eugénio de Andrade

Sunday 24 January 2016

Canção do mestiço


Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando côr
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei...
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro

Pois é...

Francisco José Tenreiro
(in Ilha de Nome Santo)

Thursday 21 January 2016

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

Monday 18 January 2016

Caridade


As senhoras da sociedade
deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu.

Depois das contas bem feitas
bem tiradas as despesas,
arranjou um namorado
a mais nova das Fonsecas;
esteve bem a viscondessa,
veio o nome e o retrato
da comissão nos jornais,
e o Doutor, o Menezes,
e o senhor desembargador,
estiveram muito engraçados,
dançaram o tiro-liro
já meio tombados...

Parece que ainda sobrou
algum dinheiro para a chita
para vestir a pobreza
numa festa comovente
com discursos de homenagem
e uma missa...
a que assistiu toda a gente.

Joaquim Namorado

Friday 15 January 2016

VEGETAL E SÓ

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
febril de tantos lábios,
sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como um rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Eugénio de Andrade

Tuesday 12 January 2016

Até amanhã


agachados na cova da noite
pequeninos e enormes
esperávamos o homem da bicicleta

embrulhados em papel de jornal
ele transportava uma foicinha
e um martelo

mal chegado
um minuto de silêncio conspirativo
e logo o trabalho

sobre o chão húmido e rugoso
ensinava a construir
e a semear
na inteligência dos homens
no coração dos homens
na coragem dos homens

quando partia
e montava a tosca e fiel bicicleta
sabia
que na próxima vez
vinha encontrar a terra semeada de esperanças
e mais uma telha
e mais uma trave
na casa da construção

foi ontem
e amanhã se for preciso

Francisco Gonçalves de Oliveira
(In Os Tempos do Tempo)

Saturday 9 January 2016

CANÇÃO

Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.

Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.

Eugénio de Andrade

Wednesday 6 January 2016

Federico Garcia Lorca


Garcia Lorca, irmão:
Sou eu, mais uma vez...
Venho negar à humana condição
a humana pequenez
da ingratidão...

Venho e virei enquanto houver poesia,
povo e sonho na Ibéria.
Venho e virei à tua romaria
oferecer-te a miséria
duma oração lusíada e sombria.

Venho, talefe branco da Nevada,
filho novo de Espanha!
Venho, e não digas nada;
deixa um pobre poeta da montanha
trazer torgas à rosa de Granada!

Indomável cigano
dos caminhos do tempo e da aventura,
sensual e profano,
o teu génio floresce cada ano...
Venho ver-te crescer da sepultura!

Bruxo das trevas onde alguém te quis,
nelas arde a paixão do que escreveste!
Sete palmos de terra, e nenhum diz
que secou a raiz,
que partiste ou morreste!

Uma luz que é o aceno da verdade
abre-se onde os teus versos vão abrindo...
a eternidade,
na pureza da sua claridade,
sobre o teu nome universal, caindo...

E o peregrino vem,
reza devotamente.
Põe no altar o que tem.
E regressa mais livre e mais contente...
Assim faço, também!

Miguel Torga

Sunday 3 January 2016

Dies Irae

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.


Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Miguel Torga,
Cântico do Homem

Friday 1 January 2016

ÁRVORE QUE NÃO CANSA


Sabes o que é a luta? Embora pises
areias ardendo e cimentos
aflorando pontas de lança?
- É a ÁRVORE QUE NÃO SE CANSA
de dar folhas, frutos, rebentos,
com lanhos no tronco e nas raízes.

Luta em ti, fora de ti, na rua,
porque lutando
a ÁRVORE QUE NÃO SE CANSA será TUA.

E enquanto a vida queira e possa,
lura sempre, porque lutando
a ÁRVORE QUE NÃO SE CANSA será NOSSA!

Luís Veiga Leitão