fazia
calor e ainda era por causa do buraco do ozono, esfolávamo-nos nos
joelhos até ver a nossa própria carne e não conheço ninguém que tenha
morrido de sepsis na adolescência.
vencíamos por amor a enquistante vergonha de ter de ligar para um centro de pagers e dizer amo-te muito.
a
conta da luz era mais baixa apesar de não haver LED nem
electrodomésticos classe A porque a luz nascia das entranhas dos nossos
rios e agora os rios não são nossos.
e na
escola não precisávamos ainda dizer se éramos ricos ou pobres, não havia
ensino vocacional que é como quem diz à medida do capital, nem havia
ensino para prosseguir estudos que é como quem diz filho de quem pode.
era tudo mais à filme mas na vida real.
no
tempo das lâmpadas incandescentes as moscas ainda morriam
electrocutadas nos restaurantes e todos podiam entrar sem máscaras até
num hospital.
nós tínhamos bolas e jogávamos com elas na rua enquanto vivíamos, ainda, nas cidades que éramos, mas dentro delas.
as
nossas avós não recebiam cartas de despejo com o selo branco da troika,
e nós recebíamos, no natal, uma prenda da empresa em vez de um assalto
ao décimo terceiro mês.
e no verão, ah, no verão, os filhos
dos trabalhadores também iam conhecer o país em vez de fazer um estágio
não pago para ter... currículo... não era preciso ter experiência antes
do primeiro trabalho porque talvez nesse tempo as contradições não
fossem ainda tão gritantes. talvez porque se gritasse ainda bem alto de
cravo florido no punho cerrado.
nós somos a primeira geração de filhos e filhas cuja vida será mais dura que a de suas mães e pais.
felizmente não é esse o sentido da nossa história e, por isso, não é preciso ter saudades de lâmpadas incandescentes.
Miguel Tiago