Sunday 30 April 2023

sem título

nós viemos
e já ninguém sabe de onde
tu que sabes
tudo da minha vida
nem sabes se vim de caetobriga
ou de gwadybelas
e o pior
deixo-te uma pista

podes beber um café fora o fim do mundo
(já ninguém joga no ajax)
e há sempre
entre maio e setembro
caracóis.

diz quando chegares à esplanada
não queremos marmelada branca, obrigado. 
 
Miguel Tiago

Thursday 27 April 2023

sem título

não saberemos do sabor das nêsperas
enquanto não formos de novo crianças
e descalços treparmos a rugueza dos troncos
no fim da tarde
no início do verão.
 
Miguel Tiago

Monday 24 April 2023

sem título

eu
nem uma légua submarina
mas vinte mil monstros.
 
Miguel Tiago

Friday 21 April 2023

sem título

 o mestre
não pode continuar
mestre.
 
Miguel Tiago

Tuesday 18 April 2023

NUNCA FUI RICO...


Nunca fui rico, nem tive
pena de nunca ser rico.
O que tenho o adquiri
pela tarefa cumprida.
Isto o aceitei por destino.
Este é o meu código estrito.

Armindo Rodrigues

Saturday 15 April 2023

kuzushi

a demolição do equilíbrio
uma implosão
de vários eus.
 
Miguel Tiago

Wednesday 12 April 2023

vinte vinte


os dias estão a chegar em vagões cheios de gente esquálida

por vezes, na estação, duvido da data


Miguel Tiago

 

 

Sunday 9 April 2023

sem título

lavra docemente uma cova no meu peito
deita-te dentro em aconchego e lá
morre tranquilamente por favor. 

Miguel Tiago

Thursday 6 April 2023

versos do tempo das lâmpadas incandescentes


é de casa da Rita, pode chamá-la, por favor?

fazia calor e ainda era por causa do buraco do ozono, esfolávamo-nos nos joelhos até ver a nossa própria carne e não conheço ninguém que tenha morrido de sepsis na adolescência. 
vencíamos por amor a enquistante vergonha de ter de ligar para um centro de pagers e dizer amo-te muito.

a conta da luz era mais baixa apesar de não haver LED nem electrodomésticos classe A porque a luz nascia das entranhas dos nossos rios e agora os rios não são nossos.

e na escola não precisávamos ainda dizer se éramos ricos ou pobres, não havia ensino vocacional que é como quem diz à medida do capital, nem havia ensino para prosseguir estudos que é como quem diz filho de quem pode.

era tudo mais à filme mas na vida real.

no tempo das lâmpadas incandescentes as moscas ainda morriam electrocutadas nos restaurantes e todos podiam entrar sem máscaras até num hospital.

nós tínhamos bolas e jogávamos com elas na rua enquanto vivíamos, ainda, nas  cidades que éramos, mas dentro delas. 
as nossas avós não recebiam cartas de despejo com o selo branco da troika, e nós recebíamos, no natal, uma prenda da empresa em vez de um assalto ao décimo terceiro mês. 
e no verão, ah, no verão, os filhos dos trabalhadores também iam conhecer o país em vez de fazer um estágio não pago para ter... currículo... não era preciso ter experiência antes do primeiro trabalho porque talvez nesse tempo as contradições não fossem ainda tão gritantes. talvez porque se gritasse ainda bem alto de cravo florido no punho cerrado. 

nós somos a primeira geração de filhos e filhas cuja vida será mais dura que a de suas mães e pais.
felizmente não é esse o sentido da nossa história e, por isso, não é preciso ter saudades de lâmpadas incandescentes.

Miguel Tiago

Monday 3 April 2023

sem título

eu
se fosse poeta 
o que mais gostava era de morrer
nunca um poeta é tão lido como no dia 
de sua morte. 

Miguel Tiago

Saturday 1 April 2023

sem título

nunca só um momento
tão breve tempo
de rio
encheria um mar
não fora estes olhos
terem visto tamanha precipitação. 

Miguel Tiago