Sunday 30 October 2016

O MEU PREÇO


Eu cidadão anónimo
do País que mais amo sem dizer o nome
se é para me dar de corpo e alma
dou-me todo como daquela vez em Chaimite.
Dou-me em troca de mil crianças felizes
nenhum velho a pedir esmola
uma escola em cada bairro
salário justo nas oficinas
filas de camiões carregados de hortaliças
um exército de operários todos com serviço
um tesouro de belas raparigas maravilhando as praias
e ao vento da minha terra uma grande bandeira sem quinas.

Se é para me dar
dou-me de graça por conta disso.

Mas se é para me vender
vendo-me mas vendo-me muito caro.

Ao preço incondicional
de quanto me pode custar este poema.


José Craveirinha

Thursday 27 October 2016

ACTUALIDADE COLOMBIANA


Dez frades
excomungados pela igreja
foram submetidos a torturas
e condenados por conspiração.
Um deles,
a ponto de sucumbir,
rezava sem parar:
Oh Pitecantropus Pai meu!

Minerva Salado
(In Poesia Cubana da Revolução)

Monday 24 October 2016

CONSENSO



Amiga:
No febril conluio dos mútuos póros
nossos lábios sussurram-se
as respectivas músicas
de Amor
e só!

Mas
nos ofegantes muros das penitenciárias
nem uma Sofia Loren
nem uma Gina Lolobrígida
nem uma tal Ava Gardner
e nem tu minha amiga
com todas as vossas ferramentas de prazer
nos boicotam o irredutível consenso deste sofrimento
habitando sem pagar renda esta moradia
de quatro paredes
uma porta de ferro
e uma espécie de janela com persianas de varões.

E no sofrimento deste prédio
nós os presos e os que não foram presos
conseguimos o seguinte consenso:
- Voz de prisão aos carcereiros!


José Craveirinha

Friday 21 October 2016

REZA, MARIA!


Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem à míngua de pão
vermes nas ruas estendem a mão à caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Bichos espreitam nas cercas de arame farpado
curvam cansados dorsos ao peso das cangas
e também não são bichos, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança.

Ah, Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

José Craveirinha

Tuesday 18 October 2016

INCLANDESTINIDADE



Eu jamais movi um dedo na clandestinidade.
Mas militante de facto sou.

Por acaso até nasci
numa grande e próspera colónia.

Depus flores na estátua do sr. António Enes
recitei versos de Camões num tal «dia da raça»
e cheguei a cantar uma marcha chamada «A Portuguesa».

Cresci.
Minhas raízes também cresceram
e tornei-me um subversivo na genuína ilegalidade.

Foi assim que eu subversivamente
clandestinizei o governo
ultramarino português.

Foi assim!


José Craveirinha

Saturday 15 October 2016

XICUEMBO


eu bebeu suruma
dos teus ólho Ana Maria
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco
agora eu quere dormir quere comer
mas não pode mais dormir
mas não pode mais comer

suruma dos teus ólho Ana Maria
matou sossego no meu coração
oh matou sossego no meu coração

eu bebeu suruma oh suruma suruma
dos teus ólho Ana Maria
com meu todo vontade
com meu todo coração

e agora Ana Maria minhamor
eu não pode mais viver
eu não pode mais saber
que meu Ana Maria minhamor
é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
todo gente todo gente

menos meu minhamor

Rui Nogar
(In Poetas de Moçambique)

Wednesday 12 October 2016

DESOBEDIÊNCIA


Sou feita de muitos
nós
desobediência e meio-dia

Sou aquela que negou
aquilo
que os outros queriam

Disse não à minha sina
de destino preparado

Recusei as ordens escusas
preferi a liberdade
e vivo deste meu lado

Maria Teresa Horta

Sunday 9 October 2016

PERGUNTA A PAUL ROBESON


Que rios te correm na voz
Paul Robeson?
Que marulhantes graves e longos
rios é o teu canto
Paul Robeson?
É o Congo ou é o Mississipi
com manchas de sangue indissoluto?
Ou são os afrontosos rios
da humilhação impotente
Paul Robeson?
Ou é o Nilo ou o Missouri
cavando às cegas o leito
nas terras da hostilidade?
Ou será a mágoa sem fundo nem tempo
náufraga sem morte dos barcos de negreiros
soluçando nos campos de algodão
dos diversos estados da Carolina do Sul
Paul Robeson?
Ou será a incomparável curva doida do Niger
rompendo a caminho do mar?
Ou será apenas o lento pesado arrastar de pés
dos teus irmãos de raça
Paul Robeson
rompendo a caminho do mar?

Fernando Couto
(In Poetas de Moçambique)

Thursday 6 October 2016

O comum da terra


Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Na margem
vento areias mastros lábios, tudo ardia.


Eugénio de Andrade

Monday 3 October 2016

CANTO DE UM PRISIONEIRO


Prisioneiro sem algemas nem grades
sem uniforme e sem arames farpados
privo-me de chorar durante o dia
por maiores que sejam o vexame e a dor
Ansioso cultivo a flor do orgulho
e enveneno de fel as lágrimas que bebo
Também não grito que não mo consinto
nem o consentem neste ordeiro campo
E espero a noite para cantar em surdina
junto as palavras astuciosas e de rosto inocente
atiro-as ao escuro fecundas de rancor
e ainda humedecidas de um suor de sangue
e no íntimo escondendo limas de esperança

Neste universo pacato e sem algemas
nem grades visíveis e todavia existentes
adivinho tímpanos feridos pelo meu canto
e lábios com sede de limas de esperança
e ventres vazios à espera que os fecunde
o cálido e surdo rancor do meu canto

Por isso canto poemas algo inesperados
opacos sussurrantes e gratuitos como ventos
que todavia transportam invisíveis esporos
de sentido fechado como ouriços do mar
de agudos espinhos para mãos inábeis
e escondendo por dentro limas de esperanças

Fernando Couto
(In Poetas de Moçambique)

Saturday 1 October 2016

Resistir


Dobrar na boca o frio da espora
Calcar o passo sobre lume
Abrir o pão a golpes de machado
Soltar pelo flanco os cavalos do espanto
Fazer do corpo um barco e navegar a pedra
Regressar devagar ao corpo morno
Beber um outro vinho pisado por um astro


Possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor.

Joaquim Pessoa