Sunday 30 April 2017

Caminharemos de olhos deslumbrados


Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
O gosto a sol e a sangue dos sentidos.


Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.

No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!

Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.

Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.

Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
E coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.

Ary dos Santos
in 'Liturgia do Sangue'

Thursday 27 April 2017

HERANÇA

Lá onde o ser tarde ou cedo
é um jogo de claridades,
vivem a ignorância e o medo,
criadores das divindades.
E, acocorado no chão,
um velho negro selvagem,
vai desenhando a carvão
para deixar como herança
um deus, feito à sua imagem
e perfeita semelhança.

Sidónio Muralha

Monday 24 April 2017

JURO NUNCA ME RENDER


Pela minha terra clara
e o povo que nela habita
e fala a língua que eu falo,
juro nunca me render.

Pelo menino que fui
e o sossego que desejo
para o velho que serei,
juro nunca me render.

Pelas árvores fecundas
que nos dão frutos gostosos
e as aves que nelas cantam,
juro nunca me render.

Pelo céu que não tem margens
e as suas nuvens boiando
sem remorso nem receio,
juro nunca me render.

Pelas montanhas e rios
e mares que os rios buscam,
com o seu murmúrio fundo,
juro nunca me render.

Pelo sol e pela chuva
e pelo vento disperso
e pela plácida lua,
juro nunca me render.

Pelas flores delicadas
e as borboletas irmãs
que nos livros espalmei,
juro nunca me render.

Pelo riso que me alegra,
com a sua nitidez
de guizos e de alvorada,
juro nunca me render.

Pela verdade que afirmo,
dos que a verdade demandam
até à contradição,
juro nunca me render.

Pela exaltação que estua
nos protestos que não escondo
e a justiça que os provoca,
juro nunca me render.

Pelas lágrimas dos pobres
e o pão escasso que comem
e o vinho rude que bebem,
juro nunca me render.

Pelas prisões em que estive
e os gritos que lá esmaguei
contra as mãos enclavinhadas,
juro nunca me render.

Pelos meus pais e meus avós
e os avós dos avós deles,
com o seu suor antigo,
juro nunca me render.

Pelas balas que vararam
tantos peitos de homens justos,
por amarem muito a vida,
juro nunca me render.

Pelas esperanças que tenho,
pelas certezas que traço,
pelos caminhos que piso,
juro nunca me render.

Pelos amigos queridos
e os companheiros de ideias,
que são amigos também,
juro nunca me render.

Pela mulher a quem amo,
pelo amor que me tem,
pela filha que é dos dois,
juro nunca me render.

E até pelos inimigos,
que odeiam a liberdade,
e por isso não são livres,
juro nunca me render.

Armindo Rodrigues

Friday 21 April 2017

COMPATRIOTA

Que todos os meus anseios de poeta
possam cair no teu regaço,
velha lutadora, velha analfabeta
que não sabes dos versos que te faço.

Vejo-te de joelhos,
de joelhos e de mãos postas,
de joelhos e de mãos postas num velho esfregão
lavando, lavando casas...
A tua cabeça branca é uma acusação
- passa um poeta - e a acusação tem asas.

Velha que conheceste algumas gerações
e devias ser tratada como os doentes e as crianças
- atira o teu esfregão contra os nossos corações
e grita nos meus versos agudos como lanças.

Sidónio Muralha

Tuesday 18 April 2017

POEMA DE FINADOS


Amanhã que é dia dos mortos
vai ao cemitério. Vai
e procura entre as sepulturas
a sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas
ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
o filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
é a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.

Manuel Bandeira

Saturday 15 April 2017

EPITÁFIO


A Pátria, de olhos sem fundo como dois buracos,
vela o teu corpo e põe-te uma promessa nas mãos frias...
- tu que foste a força dos fracos,
tu que foste maior que todas as poesias.
Tu, puro e oculto como as cisternas de água,
tu que eras presente e invisível como a aragem,
tu que continuas a ligar-nos pela mágoa
como sempre o fizeste pela coragem.

Por todo o sofrimento, por todas as desgraças,
e em nome das madrugadas que rasgam as vidraças,
a Pátria põe-te uma promessa nas mãos frias.

Largos versos irrompem no teu silêncio de granito,
e tu vives inteiro em cada grito,
tu que foste maior que todas as poesias.

Sidónio Muralha

Wednesday 12 April 2017

Vou-me embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
lá tenho a mulher que eu quero
na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
de tal modo inconsequente
que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
vem a ser contraparente
da nora que nunca tive

E como farei ginástica
andarei de bicicleta
montarei em burro brabo
subirei no pau de sebo
tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
deito na beira do rio
mando chamar a mãe-d'água
pra me contar as histórias
que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
é outra civilização
tem um processo seguro
de impedir a concepção
tem telefone automático
tem alcalóide à vontade
tem prostitutas bonitas
para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
mais triste de não ter jeito
Quando de noite me der
vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
terei a mulher que eu quero
na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira

Sunday 9 April 2017

SERENIDADE

Serenidade podre como um peixe a boiar.
Paisagem de papel azul esconde a paisagem humana.
As árvores tormentadas são pintadas de luar
e os frutos são de cera, e os ninhos de porcelana.

Serenidade da violência mascarada de afago,
serenidade dos gritos camuflados de trilos,

serenidade como o espelho de um lago
infestado de crocodilos.

Sidónio Muralha

Thursday 6 April 2017

CAPOEIRA


Sacudindo subitamente o silêncio e o sono, um galo
anunciou alegremente a madrugada.
E bom será declará-lo:
aquilo não foi um canto, foi um grito
vibrado como um dardo. Um grito
lúcido, largo, límpido como a madrugada.

Na impossibilidade de ser julgado o galo
o dono vai responder pelo delito.

Mais nada.

Sidónio Muralha

Monday 3 April 2017

COMENTÁRIO

Era tão embaladora a sua poesia,
tão vestida de rendas e tão despida de violência,
que ele por vezes adormecia
naquela cadência.

- Coitado.
Trabalhou com tanto afinco
e andou de lá para cá,
de cá para lá,
arrastado
numa tempestade amena...

- Poeta do chá das 5
a poesia dissolveu-se no chá.

Foi pena.

Sidónio Muralha

Saturday 1 April 2017

RENOVAÇÃO


Em cada dia morre um homem em mim.
Em cada dia nasce um homem em mim.
Só o itinerário é o mesmo, e isso decerto basta.
E eu tenho saudade dos homens que fui!
E eu anseio, espero os homens que serei!
Dia após dia, eu me renovo, sigo sempre.
Meus olhos de ontem não são meus olhos de hoje.
Um mundo morre, outro mundo nasce em cada dia.
So o itinerário é o mesmo, e isso decerto basta.


Papiniano Carlos