Monday 30 March 2015

Vem


Vem
Enleia os teus braços
Como o sol das sete da tarde
Desmaia sobre os lilases.
Quem és?
Trazes agarrado à pele
Vestígios peregrinos
De quem busca resposta para a sede.
Já vi muitos morrerem disso
Nesta estepe que habito.
Chegam, abrem o hiato das bocas
Secas
Como se quisessem uivar qualquer injustiça
Antiga
e que lhes corrói a urgência da pele.
Depois
Deixam-se cobrir pelo salitre
Que vai gretando os corpos
Aos montes
Abandonados.
Como despojos de guerra
da minha fome.

Ao certo, sei dizer-te
Nenhumas pernas produziram sémen como as tuas
Quando me devoraram o desejo
Que eram palavras na garganta.
Muda, Eufórica, desnuda
Pelo álcool que a tua ausência obriga.
Não sei de onde venho
Apenas que me findo.
Olho as mãos. Prometem pó.
Se ao menos pudessem alcançar-te ainda...
Recolho os vestígios da fogueira
(o mundo é tão escuro
Visto de dentro)
Aceno um adeus triste ao meu pai
(então, meu querido, essa reforma agrária?)
Arrasto o corpo como cão atropelado
Em dia de calor
Para a sombra do riso.
Escarneço.
Porque entregam os deuses à morte
Os homens nascidos?

Lains de ourém

Friday 27 March 2015

ACERCA DA VIDA


A vida não é uma brincadeira,
deves tomá-la a sério,
como faz, por exemplo, o esquilo,
sem nada esperar
nem fora nem para além da vida.
Quer dizer: a tua única preocupação será viver.

A vida não é uma brincadeira,
deves tomá-la a sério
e a tal ponto a sério
que de mãos atadas, por exemplo, de costas para a parede,
ou num laboratório
de bata branca e óculos enormes,
morrerás para que os homens vivam,
os homens a quem nem sequer viste a cara.
Morrerás sabendo
que nada é mais belo, nada é mais verdadeiro do que a vida.

Deves tomá-la a sério
e a tal ponto a sério
que aos setenta anos, por exemplo, plantarás oliveiras,
não para herança dos teus filhos, não,
mas porque não acreditarás na morte,
temendo-a embora,
mas porque a vida pesará mais na balança.

Nazim Hikmet

Tuesday 24 March 2015

Corpo de Mulher...


Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.


Fui só como um túnel. De mim fugiam os pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.

Pablo Neruda

Saturday 21 March 2015

POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amante silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
sim,
a ratos

Alexandre O'Neill

Wednesday 18 March 2015

4ª CANÇÃO


Roga por nós, ó pátria, ó sonho sem fronteira!,
por nós a quem recusam a alegria,
a liberdade, o pão de cada dia,
a vida verdadeira!


Ó pátria, canta! Do teu presepe imaginário
ergue a voz dulcíssima, magoada,
e estilhaça de esperança as paredes do aquário,
ó pacifica pomba engaiolada!

Contigo iremos pela noite fora,
cantando «Erguendo rútilas bandeiras
por sobre aldeias, campos, sementeiras,
como os arcanjos portadores da aurora».

Daniel Filipe

Sunday 15 March 2015

POEMA DO FECHO ÉCLAIR


Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro
olho de perdiz.

Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal da rocha
do mais transparente.

Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.

Na mesa do canto,
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardava num frasco.

Foi dono da Terra,
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha outro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha
era um fecho éclair.


António Gedeão

Thursday 12 March 2015

El viento en la isla


El viento es un caballo:
óyelo cómo corre
por el mar, por el cielo.

Quiere llevarme: escucha
cómo recorre el mundo
para llevarme lejos.

Escóndeme en tus brazos
por esta noche sola,
mientras la lluvia rompe
contra el mar y la tierra
su boca innumerable.

Escucha como el viento
me llama galopando
para llevarme lejos.

Con tu frente en mi frente,
con tu boca en mi boca,
atados nuestros cuerpos
al amor que nos quema,
deja que el viento pase
sin que pueda llevarme.

Deja que el viento corra
coronado de espuma,
que me llame y me busque
galopando en la sombra,
mientras yo, sumergido
bajo tus grandes ojos,
por esta noche sola
descansaré, amor mío.

Pablo Neruda


Monday 9 March 2015

DIZE TU, DIREI EU


Dize tu: já começou, porém,
a racionalização do trabalho.

Direi eu: Todavia,
o manguito será
por muito tempo
o mais económico dos gestos.

Alexandre O'Neill

Friday 6 March 2015

Ternura


Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...


Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira,
in "Infinito Pessoal"

Tuesday 3 March 2015

HÁ «INDIGNADOS» EM CUBA?

Palavras do Embaixador de Cuba em Portugal, Eduardo González Lerner:

Perguntam-me se em Cuba há muitos «indignados».
Há. Em Cuba há milhões de indignados.
Milhões de indignados com o embargo que o imperialismo norte-americano impõe há mais de meio século.
Milhões de indignados com o facto de cinco cidadãos cubanos estarem injustamente presos nos cárceres do império há mais de treze anos.
Milhões de indignados com o capitalismo opressor e explorador que domina quase todo o mundo.
Sim, em Cuba há milhões de indignados.

Sem comentários.

Sunday 1 March 2015

A Secreta Viagem


No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!


Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

David Mourão-Ferreira