Friday 30 December 2011

Inventário


Há os que gravam no vento e sonham
para se iludir apenas. Sonham
que finalmente tudo corre bem,
que uma manhã arrancam os pregos
que os pregam ao muro, que por fim
podem mover as pernas livremente...

Tísicos do sonho tossem imaginação.
Parece que isso os ajuda a passar
a noite, a imaginar o pão barato,
os dentes menos cariados, o almoço
mais rico em calorias.

Há os que não sabem sonhar. Esses
bebem às vezes arsénico, penhoram
o último alento, deixam-se frigir
panados de escórias e amargura.

O ópio grava no vento. Valem
apenas os sonhos que na pedra gravam.


Egito Gonçalves

Tuesday 27 December 2011

O amor, a poesia...


O tempo rola; os vossos rostos crescem
no sulco das lágrimas; vossos longos cabelos
cobrem, na noites difíceis, o nosso frio.

Sopram os ventos na planície, fecundando
hectare a hectare um solo adubado
pelas nossas esperanças.

As pupilas da liberdade boiam em grandes olhos
desmedidos
abertos ao futuro.

Entre a noite e a tempestade
um barco de milagres busca um porto seguro:
um rosto de abrigo.


Egito Gonçalves

Saturday 24 December 2011

A propósito do Natal


Após o bem conhecido episódio da Estrela do Oriente
o colérico Herodes gritou aos seus sicários:
«Matem as crianças;
matem todas as criancinhas!»
Redigiu uma proclamação bilingue: judeu e latim,
e como gostava muito de provérbios, declamou:
«Mais vale prevenir do que remediar!»

Os sicários dispersaram em todas as direcções;
contrataram auxiliares
e sem perda de tempo iniciaram a matança
de que falam os livros da especialidade.

Várias espadas partiram com o uso excessivo;
durante algum tempo os cofres dos armeiros
receberam o sorriso das fortunas.

Apesar disso
nada serviu a Herodes o saber de ofício:
como bem se recordam a Criança escapou.
..........................................................................

Hoje Herodes empregaria armas modernas:
radar, cães-robots, espiões magnéticos,
aviões de pesquisa meteorológica...
E por certo a Criança uma vez mais
cresceria saudável e robusta.

Herodes voltaria a não compreender nada.
Mas estaria seguro de si aos microfones
e os directores de cemitérios enviariam
belas mensagens e flores de parabéns.


Egito Gonçalves

Wednesday 21 December 2011

Variações da política


Foi preso pela Bauxite
interrogado pelo Aço
condenado pelo Petróleo
fuzilado pelo Urânio.

No dia seguinte caíu o governo!

A Bauxite, o Aço, o Petróleo, o Urânio
fuzilaram os fuziladores
e passaram a tomar comboios na direcção oposta.


Egito Gonçalves

Sunday 18 December 2011

Vietnam


Haverá, meu amor, ainda pássaros no céu
entre aviões e aviões,
crianças com o sorriso ao ombro
entre bombas e bombas?

Tão longe,
podes imaginar, amor, desta ponta
da Europa
aquela morgue
onde morremos indefesos,
aquela invasão de bactérias, uma
putrefacção armada,
tentando impor a lei,
a destruição à sua imagem?

Cai a tarde. O vento
anula o peso dos teus pés na areia
mas na tua cabeça
mantém-se a raiva, a pedra
em que ameaças transformar-te
de impotência.
O ódio que marca a tua cinta
é o único remédio. Alimenta-o
em cada colher de sopa se não queres
ser apenas o gato, a rã, o mineral
cibernético
que querem modelar no espaço do teu corpo.


Poderás, sem isso,
imaginar a paz de que precisam
os filhos que te esperam?


Egito Gonçalves

Thursday 15 December 2011

O ponto de vista do espectador


Pensa ele que mereceu
de algum modo a cadeira,
ou pagando ou de borla,
de algum modo adquiriu,
pensa ele, um direito.

Parece-lhe que, sentado,
o que no palco vê apenas
é um espectáculo. Num minuto
sairá, poderá historiar
aquilo que fixou, outros
verão através dele, até
talvez o invejem, afinal
foi ele que viu, sim, foi ele
quem esteve lá.

No entanto não sai, algo
o perturba, um dos actores
aponta, e é para ele,
e é a ele que já levam
de rastos pela coxia,
- que rede o envolveu?,
temia todo o gesto, era
um simples espectador -
estava tão quieto, vai
agora para onde, para
o cárcere, para a morgue,
para o segredo que não é dos deuses...?


Egito Gonçalves

Monday 12 December 2011

Morte no interrogatório


Às três da madrugada eu dormia sem sonhos.
Minha mulher dormia a meu lado. Eu tinha
uma da mãos pousada sobre a sua coxa.

Uma lua de outono brilhava sobre as ruas;
um ar agreste preparava as noites para o inverno.

Às três da madrugada os companheiros
dormiam quase todos. Um deles, porém,
regressava, fatigado, de um trabalho nocturno.

Era a hora dos fogos-fátuos sobre as campas;
a hora em que os exilados buscam o sono em comprimidos.

Às três da madrugada sua mulher ainda velava.
Embrulhada num xaile tinha um livro entre as mãos;
insone, acendera a luz havia meia hora.

Na sala o interrogatório atravessava o tempo;
lâmpadas de mil vátios tornavam a vida irrespirável.

Às três da madrugada o coração fraquejou
e os dois comissários ficaram perante um homem morto
e dois cinzeiros com trinta pontas de cigarros.


Egito Gonçalves

Friday 9 December 2011

De que falo!


Falo das ruas e do amor,
do teu ventre sobre os lençóis,
falo da cidade que amo
onde a conjura amadurece.

Falo dos papéis que se rasgam
na hora do primeiro alarme,
da mão aberta para a esmola
onde germinará a vingança.

Falo do sangue de desejo
que abre em mim quando sorris,
e do carvão e da lareira
onde o combate aquece as mão.

Falo dos motores que já vibram
na expedição contra o anátema
e dos dentes com que mordisco
os intervalos do teu riso.


Egito Gonçalves

Tuesday 6 December 2011

PRIMEIRO RETRATO DO NATURAL


Ela queria perceber o que se passa.
Queria?

Passa a rua às risadas.
«Uscumunistas?»

Gritam flores da jarra.
Estão inocentes?

O telefone terrinta.
É o destino?

Na bandeja de prata, o sedativo.
Por tomar?

Na sala das porcelanas, a senhora.
Por viver.

*

De sentinela à porcelana
está Inês ou Teresa ou Ana
(Maria, deixa-se ver).
Tem à mão uma bengala
para o que der ou vier:
«Se os bolchevistas entrarem,
vão ver, vão ver!
As porcelanas inteiras
é que eles não hão-de ter!»

*

Porcelana implora
Senhora insiste.
Até que a levam prà cama,
pauzinho em riste, zangada.

É uma terrina vazia
que em sonhos se suicida
à bengalada.

Alexandre O'Neill

Saturday 3 December 2011

E onde param os desaparecidos?


E onde param os desaparecidos,
os mortos enterrados sem ritos,
em silêncio, no escuro?

Que madeira tiveram para os seus caixões?
Que rezas amigas, que flores de homenagem?

Onde pára a sua seiva, a fonte de energia
que levou a noite a suprimi-los?

Terão eles a resposta?

É preciso encontrá-los, esses mortos.


Egito Gonçalves

Thursday 1 December 2011

A solução religiosa


Muitos anos bissextos se passaram
em que adoraram o abutre negro
como se fosse do verdadeiros Deus
o seu criado-mudo.

Quando se iluminaram os estuques
do falso altar no qual se prosternavam
fulminou-os o espanto: «Impossível!
Tão longo erro, como acontecera?»

A fé remove cordilheiras. Agora
acreditam possuírem a verdade
e em Seu Nome a terem descoberto.

O passado? Partidas do Diabo!
Esquecem com água benta e «Tarrenegos!»


Egito Gonçalves