Thursday 30 March 2017

PRESENÇA


Quem virá salvar o mundo?

Os deuses faliram,
todas as súplicas resultaram inúteis.
Mesmo a grande esperança que Jesus nos trouxe
foi ultrajada.
E Jesus não volta mais.
Os vendilhões abriram tendas inumeráveis
e Judas multiplicou por milhões os 30 dinheiros.
Por isso as cidades foram abrasadas
e os heróis moços tombaram
entre as papoilas rubras da planície.
E a angústia suprema alagou os campos e as cidades
e se fechou a maior noite dos tempos.

Agora só NÓS salvaremos o mundo.


Papiniano Carlos

Monday 27 March 2017

ORDEM DO DIA

Homens novos temperados pela guerra,
das fábricas enormes e cinzentas
- rasgai poema na terra
com as vossas ferramentas!

Homens das oficinas e dos cais,
dos campos e da faina sobre o mar
- porque não ensinais
os poetas a cantar?

Algemados - não importa por que leis -
seja qual for a vossa raça e a vossa casta,
vinde dizer o que sabeis!
- Por agora é quanto basta.

Vinde das minas, dos fornos, das caldeiras,
vergados da descarga do carvão!
Vinde! Porque chegou enfim o dia
de apressar a tarefa inconcluída!

- E a poesia, esta poesia,
é um facho que vai de mão em mão
pelos caminhos da vida.

Sidónio Muralha
(«Companheira dos Homens» - 1950)

Friday 24 March 2017

SPARTACUS


Em cada hora
Em cada dia
Século após século
os homens arremessam o teu nome ao vento
e dele saem dardos, punhais, espadas
e dele saem pombas e flores ensanguentadas
De cada letra um filho
De cada som um eco

Teu nome-profecia
Teu nome vinho-novo
que ao terceiro dia há-de ressuscitar
nas veias do meu povo

Teu nome
que mil vezes tem sido agrilhoado
Teu nome sangue-mel
nos lábios do carrasco uma esponja de fel

Teu nome-escravo
Teu nome-espectro
fantasma de terror na noite de algozes
temido como as vozes que clamam no deserto

Teu nome-salmo
escrito em cada corpo morto
em cada cruz erguida

Teu nome-espiga
que se transforma em pão
Teu nome-pedra
da construção do mundo
que será o fruto do teu gesto

Teu nome
em cada gesto do esvoaçar das asas
da gaivota presa

Teu nome
vela-acesa na catedral da esperança
do altar-homem

Teu nome
em cada grito
em cada mão

Teu nome-sinfonia
que há-de explodir com a alegria
de um átomo liberto

Spartacus!
Teu nome-irmão.


Maria Eugénia Cunhal

Tuesday 21 March 2017

PEQUENOS DEUSES CASEIROS

Pequenos deuses caseiros que brincais aos temporais,
passam-se os dias, as semanas, os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.

Pequenos deuses caseiros, cantai cantigas macias,
tomai vossa morfina, perdulai vossos dinheiros,
derramai a vossa raiva, gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros.

Erguei vossos castelos, elegei vossos senhores,
espancai vossos criados, violai vossas criadas,
e bebei, bebei o vinho dos traidores
servido em taças roubadas.

Dormi em colchões de penas, dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem, e alteai vossas janelas,
e trancai vossas portas, pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.

Que é sempre um dia a menos este dia que passa,
e cada dia a mais aumenta o preço da traição,
e cada dia a mais aumenta o preço da desgraça,
e a nossa moeda não é piedade nem perdão
porque foi temperada com todas as lágrimas da raça.
Não, pequenos deuses caseiros, não!

Sidónio Muralha
(«Companheira dos Homens» - 1950)

Saturday 18 March 2017

PAPO


Lá vem o quarto administrador
pôr o ponto final na administração.

É muito sério este senhor:

Ai, meu Deus...
(Refiro-me ao poeta João da Cartilha)
«O dinheiro é tão bonito...
Tlim...)

Que bonita quadrilha!

Francisco Viana

Wednesday 15 March 2017

OS INDESEJÁVEIS

Cinco meninos na espelunca
olham com olhos de bicho
as cinco letras da palavra nunca
e o convite do camião do lixo.

Entrelaçados como correntes,
letras ligadas da palavra nunca,
torcem as mãos, batem os dentes,
os cinco meninos da espelunca.

Vivem apavorados, seminus,
chafurdando nas coisas impossíveis
à procura de um gesto de amizade.

- e um dia crescem, como bambus,
e como juncos flexíveis
fustigam o rosto da cidade.

Sidónio Muralha

Sunday 12 March 2017

QUE PESSOA PERDOE...


Digo:
Vamos olhar para longe?
Insinuas
- Não vale a pena...

Murmuro:
Vamos saber o que existe?
Amuas
- Não vale a pena...

Balbucio:
Vamos ser o que não fomos?
Lamentas-te
- Não vale a pena...

Grito:
Vamos dizer a verdade?
Abespinhas-te
- Não vale a pena...

Chiça,
que mesquinhez de alma tão pequena!

Francisco Viana

Thursday 9 March 2017

JACKSON, JUNHO 63

A caça foi aberta esta semana.
Que seja ou que não seja autorizado
é branco o caçador, negro o caçado,
lá onde ninguém sana a luta insana.

Sobe no ar um ódio electrizado
e sobre cada prédio paira e plana.
Lincoln que quis a vida mais humana
quantas vezes será assassinado.

A caça foi aberta, só a cor
faz distinguir caçado e caçador,
e é cor de noite a cor que vai fugindo.

Chove cinza nas ruas da cidade,
levanta as mãos tremendo a liberdade
e cobre de vergonha o rosto lindo.

Sidónio Muralha

Monday 6 March 2017

PERSPECTIVA


Um dia,
quando eu sair do meu emprego,
hei-de encontrar
logo ali, à esquina,
o meu bravo cavalo de batalha
e irei cavalgando por aí fora.

Na minha grande lança
ficarão naturalmente espetados todos os capitalismos
- levemente torcidos como um colar de chouriços -
Não havendo, enfim, logo a seguir mais lutas a travar,
darei liberdade ao meu cavalo de batalha
e ficarei quieto
sossegado
a vê-lo pastar.

Mas se assim não for,
muita coisa me poderá acontecer
nesta minha bela terra.
Perseguições,
vigílias, fomes, calabouços,

e os meus filhos pequeninos a mendigar.

Francisco Viana

Friday 3 March 2017

CORDIALIDADE SEM CORES

Homens divididos. Brancos e pretos,
mulatos, vermelhos e amarelos,
divindades, crenças, amuletos,
choupanas e castelos.

Como se a condição e a cor da tez
fossem deste momento supersónico
que vai estourar o muro da estupidez

- eu sou daltónico.

Sidónio Muralha
(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

Wednesday 1 March 2017

SENTENÇA


Quem pense e não aja
conforme ao que pensa
faz aos mais ofensa
e a si próprio ultraja.
Bem haja, bem haja
quem o medo vença.


Armindo Rodrigues