Sunday 30 March 2014

DESAVINDA


Desordenada comigo
oponho o corpo ao destino
como quem veste o vestido
e o despe em desatino
*
Desavinda com o sossego
ponho a nudez onde acendo
o grito do meu prazer
que ora prendo ora desvendo

Maria Teresa Horta

Thursday 27 March 2014

E AGORA O NOSSO COMENTÁRIO EDITORIAL


A Revolução está aqui.
É como um projéctil
como uma maçã
como uma árvore que cresce.
Tudo acaba de começar
agora não temos tempo
- perdão -
um dia nos reuniremos
para comemorar
o canto dos heróis.

Minerva Salado

Monday 24 March 2014

O sorriso


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


Eugénio de Andrade

Friday 21 March 2014

A CAMARADA


És a minha camarada
e antes de ti só ponho
a Revolução;
te afanas e afadigas,
compreendo,
pelas crianças,
pelos bairros de cartão,
lata e lixo,
pelos doentes e mortes prematuras.

Hoje estás aqui,
junto aos meus olhos que te seguem;
amanhã em Santiago
ou Pinar del Rio
ou no meio da madrugada
organizando rectificações,
tentando pôr de pé
o que caiu,
cerceando o apodrecido.
Assim, jardineira, construtora,
ser do vento, semeando e indo...

A ti não te destrói
Praia Girón,
novos mercenários ou fuzileiros,
em ti falha o terror;
tu pensas, tu trabalhas,
para que as coisas sejam
como devem ser.

Alcides Iznaga

Tuesday 18 March 2014

SONETO DO TRABALHO


Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.


Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.

Ary dos Santos

Saturday 15 March 2014

POR ESTA LIBERDADE


Por esta liberdade de cantar à chuva
temos que dar tudo

Por esta liberdade de estarmos estreitamente unidos
ao firme e eterno cerne do povo
temos que dar tudo

Por esta liberdade de girassol aberto na aurora das fábricas
acesas e escolas iluminadas
e de terra que range e criança que acorda
temos que dar tudo

Não há alternativa senão a liberdade
Não há outro caminho senão a liberdade
Não há outra pátria senão a liberdade
Não haverá poema sem a violenta música da liberdade

Por esta liberdade que é o terror
dos que sempre a violaram
em nome de faustosas misérias
Por esta liberdade que é a noite dos opressores
e a definitiva aurora de todo o povo já invencível
Por esta liberdade que ilumina as pupilas afundadas
os pés descalços
os telhados remendados
e os olhos das crianças que rebolam na poeira
Por esta liberdade que é o reino da juventude
Por esta liberdade
bela como a vida
temos que dar tudo
se for necessário
até a própria sombra
e nunca será bastante.

Fayad Jamis

Wednesday 12 March 2014

Meu Camarada e Amigo


Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigo


As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.

É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.

Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.

Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
— mas um poeta só fala
por sofrimento total!

Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde me não revejo
é que eu sofro o meu país.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 9 March 2014

CONVERSA COM JESÚS MENÉNDEZ


Diz quem o conheceu, que trazia no olhar
toda a tristeza da país, e que era sereno e calado
como alguém que procura que a lua não saia do canavial.
Ia pelos campos, com a febre da terra na fronte,
entre discursos e bandeiras, e até uma carroça lhe servia
de tribuna para defender os nossos direitos, cana lançada
ao caminho.

Nessa época o povo ia com a vida vazia
à procura de um rincão onde semear a semente do amor,
duma Primavera onde florescer. Mas todos os sulcos estavam
secos.
A esperança parecia um chapéu de abas largas rio abaixo.

Então viram-no abrir o peito e oferecê-lo como um pedaço
de terra boa. No Tiempo Muerto a fome nublava o campo,
não se ouviam décimas nos portais das cabanas e os
cantos desapareciam misteriosamente e a miséria batia
as palmas.

Diz quem viu cair seu sangue, que sempre recorda a luz.

Agora o seu sacrifício frutifica. Estão abertas as janelas
do país. Já as canas sonham, a fábrica canta, as carroças
são carroças. Estamos a edificar um futuro forte.
E a revolução é uma fonte
derramando-se diante dos nossos olhos.

Jesús Cos Causse

Thursday 6 March 2014

À noite


À noite, tudo se agarrava às pernas e, na escuridão, um velho deus nostálgico e humano movia-se numa esperança vã, aliviado por contemplar os objectos.
Nenhum caminho terminara: era a memória que, cantando, alguma coisa queria ou precisava. No primeiro instante o silêncio era hóspede, depois continuaria a lembrar quanto de nada se sabia, o que a dor pequena ia despindo, comentário irreparável do espelho escuro, arruinado.
Nem sono, nem sonho: tudo branco e separado.
Pelas sete horas, como doença, a casa delirava respirando deslizes, vertigens, agitações. Até ao meio dia estabelecia-se crescentes transparências, recompunham-se sem exageros o tempo e a distância.


Joaquim Pessoa
in FLY
 

Monday 3 March 2014

ESCRITO NA MORTE DE MR. KENNEDY


As vacas pastaram
veneno
As doces cabeças rodaram
envenenadas
E o arroz? O arroz também foi
envenenado
O veneno choveu longamente
sobre o Vietname-do-Sul
Os dentes do napalm morderam
carne e madeira
Carne da mãe
e do filho e a madeira do telhado
e da mesa
O napalm mordeu
tanta coisa no Vietname-do-Sul
(Dos 162 mil mortos
do Vietname-do-Sul quantos
te pertencem?)
Também morreu o meu camarada Ñico
- Ñico Egozcue de la Rosa carpinteiro
e soldado deixou por acabar a mesa
do Círculo Social -
O meu camarada
morreu na estrada Covadonga-Praia Girón
(Hoje compreendemos com espanto que
tu também eras mortal)

Luis Marré

Saturday 1 March 2014

AMA NEGRA


Teu corpo
gordo
redondo
feio
mas belo.

Teu rosto largo
nariz largo
olhos grandes
cabelo lanoso
tudo grande
nasceste assim
feia mas bela.
As crianças gostam de ti
da tua bondade e paciência
Mãe Santa
Ama de muitas crianças.

Aquele menino branco
António
não gosta de mais ninguém.

Tomás Jorge