Monday 30 November 2009

Letreiro

Porque não sei mentir,
não vos engano:
nasci subversivo.
A começar por mim - meu principal motivo
de insatisfação -,
diante de qualquer adoração,
ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
de cada paraíso.

Miguel Torga

Friday 27 November 2009

(«Requiem» de Verdi.)

Verdi
- Garibaldi dos mortos...

... que não deixaram apodrecer as bocas
nem transformá-las em flores,
para poderem cantar o entusiasmo da morte
num coro de vermes
que roem os pulmões dos tenores.


(Muito tempo passado, em Setembro de 1975,
em Leninegrado, ouvi este «Requiem»
tocado e cantado por uma orquestra da Arménia
numa noite que me encheu de glória.)

José Gomes Ferreira

Tuesday 24 November 2009

(Primeiro intervalo no Teatro de S. Carlos. Sorrimos uns para os outros. «Então como está?» «Há muito que não o via!»... Musgo. Teias de aranha nos ou

Disseram-lhes
que estavam vivos
por disciplina de cemitério.

E todos acreditaram
já com os pés em ângulos rectos.

Mas vivos que são?
Mortos incompletos.

José Gomes Ferreira

Saturday 21 November 2009

(«Requiem de Mozart».)

Ímpeto de rasgar o tecto com as mãos
para gritarmos aos astros,
cá de baixo das labaredas do nosso poste:

«O mistério somos nós.

Fomos nós, os homens,
que criámos a morte.»

José Gomes Ferreira

Wednesday 18 November 2009

(Falla.)

Um anjo cigano
inventou um instrumento novo
- viola de sol e nevoeiro
com cordas de nervos de touro.

Para o tocar
é preciso ouvir missa primeiro.

José Gomes Ferreira

Sunday 15 November 2009

(Visão de Mahler. Improviso durante a audição na Rádio da Primeira Sinfonia. Sim, Abelaira: gosto muito do Mahler - que me soa às vezes como uma espécie de Schubert trágico.)

Marcha fúnebre
com os vivos todos em caixões
e o cadáver atrás, a pé, sozinho,
ao som da filarmónica
que marca o passo a fingir vida
na poeira morta
do caminho.

Filarmónica transcendente
que afinal
só toca a valsa banal
da morte nua de toda a gente.

José Gomes Ferreira

Thursday 12 November 2009

(«Sonata a Kreutzer» tocada por Menuhin, no Tivoli.)

Que crime confessa Beethoven
nesta sonata?

Matou talvez em sonhos
a Sempre-Apetecida
com mãos de quem não mata.

E agora confessa o crime
- farto do amor eternamente sublime.

(Beethoven:
ai de quem não ama
como quem morre
- na cama.)

José Gomes Ferreira

Monday 9 November 2009

Romance de Federico

«El crimen fué en Granada: en su Granada!»

António Machado

I
Num pueblo de Espanha
la Barraca se levanta:
num pueblo de Espanha,
numa praça de Castela...

Mas não se ouvem poemas,
nem guitarras, nem canções
- que la Barraca é deserta...
Morreram vozes e risos
(no chão, com as folhas arrancadas,
D. Quijote de Cervantes)
e calaram-se as canções,
geladas no oiro frio
das cordas dos violões
-que la Barraca está deserta,
como uma alma... deserta.

Correi ventos de Espanha!
Chamai vozes de Espanha!
Mirad olhos de Espanha!
- Aonde está Federico?

Chorai corações de Espanha!

- No acampamento cigano
uma virgem desmaiou:
romance da «pena negra»
a feiticeira agoirou.
Romance da «pena negra»,
romance da negra sorte,
como uma bala na fronte
e outra no coração
morto para sempre ficou...
(No veludo dos estojos,
as cordas das guitarras estalaram
com um ai grave e profundo...)
as mãos estendidas, sem raiva,
os olhos cheios de terra,
morto ficou.

Chorai corações de Espanha!

Com os olhos cheios de terra,
sob o céu de su Granada,
morto ficou...

Cavalos negros da noite
encobriram as estrelas.
De Cádis até Navarra,
de Badajoz ao Levante.


II

A noite desceu sobre o corpo da Espanha...
A noite das águias carniceiras
desceu sobre o corpo da Espanha...

Ferem o chão fúrias soltas
- ruínas foram cidades e vilas,
escolas, lares e catedrais;
incêndios foram celeiros e searas;
ódio foi amor,
lágrimas foram riso...
A noite poisou seus dedos de treva
no coração da Espanha...

Espanha,
em teus braços de Mãe,
em teus braços de terra,
apodrecem os corpos
de teus filhos inocentes...
Espanha,
na sombra que desceu
as feridas dos cadáveres abrem-se
como flores roxas de agonia...

Espanha,
noites de serenata,
sob os balcões floridos, nunca mais:
que os corações não batem já para o amor,
só para o aço dos punhais...

Espanha,
Carmen, cigana,
corpo de bronze, olhos de lume,
não mais amante...
Espanha,
na noite das catedrais,
correm lágrimas de marfim
pelas faces dos crucificados
- na tua face
são de sangue, Espanha!
Espanha!,
no silêncio das catedrais
sorrisos seráficos da Virgem
- na tua boca
sangue e fel, Espanha!

Joaquim Namorado

Friday 6 November 2009

Um dia...

Um dia eu vou fazer um romance
com as histórias da minha rua
antes de se chamar Silva Porto
e os pretos irem embora.
Vai entrar a lua e meninos sem cor,
a Domingas quitata, o sô Floriano do talho,
com muita mistura de amor
e muito suor de trabalho.
Vou meter as cabras e os cães vadios da velha Espanhola,
os batuques da Cidrália e dos Invejados,
os batalhões do «Treze» e do «Setenta e Quatro»,
o bêbado Rebocho, o velho Salambió,
a Joana Maluca da garotada.
cajueiros, cubatas, lixeiras,
capim e piteiras,
e mesmo no fim da história,
quando os homens estão desesperados
e as fardas passam em fila,
acendo um sol de Fevereiro,
semeio algumas esperanças
e parto com o meu veleiro
a dar uma volta ao mundo!

António Cardoso

Tuesday 3 November 2009

Espera

Nesta longa e fluctígera espera
se transmudam os dias
de desespero, luta e coerência.
Mas é tão certo a flor
do sonho florir na terra amada,
que já bebo alegrias antecipadas
- exausto de silêncio e de calor!

António Cardoso

Sunday 1 November 2009

Combóio de Malange

Prisioneiro no meu escritório
sonho as distâncias do mato
que me traz o apito do comboio
que arfa
Grande
e Livre
quando passa.

MINHA TERRA, MINHA TERRA, MINHA TERRA
VENHO-DE-LONGE, VOU-PRA-LONGE,
VENHO-DE LONGE, VOU-PRA-LONGE.

Ainda um dia vou partir
nesse comboio do mato
que tem dor no vagão J
e vou ser como ele
que arfa
Grande
e Livre
quando passa.

Depois
todo povo vai dizer:
MINHA TERRA, MINHA TERRA, MINHA TERRA!

António Cardoso