Thursday 30 June 2016
*
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia
Monday 27 June 2016
TEATRO DOS DIAS
Ninguém cheira melhor
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.
Eugénio de Andrade
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.
Eugénio de Andrade
Friday 24 June 2016
Com que voz
Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?
Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.
Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!
De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente
por quem a vida, e bens dele, aventuro.
Luís Vaz de Camões
Tuesday 21 June 2016
OS PEQUENOS PRAZERES
O copo de água fresca
sobre a mesa,
a réstea de luz incendiando
ainda a mão,
as palavras que dão sentido à arte
dos dias a caminho do fim,
"a beleza
é o esplendor da verdade",
o sol
que dos flancos do muro sobe
ao olhar do gato,
o silêncio de ramo em ramo,
a chuva em surdina
na folhagem do jardim
- a chuva e a cumplicidade
de Gieseking e Debussy.
Eugénio de Andrade
sobre a mesa,
a réstea de luz incendiando
ainda a mão,
as palavras que dão sentido à arte
dos dias a caminho do fim,
"a beleza
é o esplendor da verdade",
o sol
que dos flancos do muro sobe
ao olhar do gato,
o silêncio de ramo em ramo,
a chuva em surdina
na folhagem do jardim
- a chuva e a cumplicidade
de Gieseking e Debussy.
Eugénio de Andrade
Saturday 18 June 2016
SEM VASSALAGEM
Nada mais de mim
haverá memória
- sei -
só os poemas darão conta
de minha avidez
da minha passagem
Da minha limpidez
sem vassalagem
Maria Teresa Horta
Wednesday 15 June 2016
MESMO DEPOIS DO DIA...
Mesmo depois do dia em que por fim triunfe,
abolidas as classes, a justiça no mundo,
do pior ao melhor, ascensionalmente,
prosseguirá sem pausa o movimento de sempre.
Apenas, por diferença, fundamental no entanto,
o que antes sucedia por explosões brutais
passará a fazer-se por graduais mudanças.
A luta travar-se-á não já entre interesses,
mas entre simplesmente o moderno e o antigo,
desde o exterior aos homens até a neles próprios,
nos recessos estagnados da sua consciência.
O que era, pois, forçado tornar-se-á voluntário.
O que era, pois, penoso tornar-se-á natural.
Armindo Rodrigues
Sunday 12 June 2016
*
Andámos a distribuir cigarros pelos soldados.
De guarda aos quartéis, espingardas mansas assentes no chão.
E os cravos [tão presentes em nós, ainda].
E a gente... tanta.
Tu aqui, e tu, e tu, também. Afinal...
Os cartazes alinhavados por mãos apaixonadas gritando todas as palavras só conhecidas em letra clandestina.
Todos os abraços, todas as presenças até então atrás de grades, de fronteiras, de casas escondidas.
Todas as lágrimas choradas de alegrias, agora.
- Como cresci, irmão. Como embranqueceram entretanto os teus cabelos.
Esquecer a dor. Soltá-la. Vê-la transformada num imenso rio a caminho do amanhã.
Em cada rosto, em cada olhar, lia-se uma só palavra - Liberdade.
E nas vozes um grito forte que continua ainda hoje a comandar os nossos passos.
Mesmo quando silenciosos, mesmo quando nasce o desencanto.
Nunca mais!
Maria Eugénia Cunhal
Thursday 9 June 2016
DAI-ME UM NOME
Dai-me um nome, um só nome
para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.
Um só nome para o desejo
ser na manhã corola
de cal, cotovia,
chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.
Um só nome para que tudo,
rosa excremento mar,
possa entrar numa canção.
Eugénio de Andrade
para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.
Um só nome para o desejo
ser na manhã corola
de cal, cotovia,
chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.
Um só nome para que tudo,
rosa excremento mar,
possa entrar numa canção.
Eugénio de Andrade
Monday 6 June 2016
POEMA AO CUIDADO
Cuidado de mal amado
meu mal
de mal cuidado
*
novas de dano chorado
ou perjuro do que
afirmo
quando olho o meu cuidado
*
Cuidado meu fruto
cedo
colhido sobre o seu
ramo
*
cuidado de muito engano
quando descanso o cuidado
como a cuidar de quem amo
Maria Teresa Horta
Friday 3 June 2016
À ENTRADA DA NOITE
Fogem agora, os olhos: fogem
da luz latindo.
Estão doentes, ou velhos, coitados,
defendem-se do que mais amam.
Tenho tanto que lhes agradecer:
as nuvens, as areias, as gaivotas,
a cor pueril dos pêssegos,
o peito espreitando entre o linho
da camisa, a friorenta
claridade de abril, o silêncio
branco sem costura, as pequenas
maçãs verdes de Cézanne, o mar.
Olhos onde a luz tinha morada,
agora inseguros, tropeçando
no próprio ar.
Eugénio de Andrade
da luz latindo.
Estão doentes, ou velhos, coitados,
defendem-se do que mais amam.
Tenho tanto que lhes agradecer:
as nuvens, as areias, as gaivotas,
a cor pueril dos pêssegos,
o peito espreitando entre o linho
da camisa, a friorenta
claridade de abril, o silêncio
branco sem costura, as pequenas
maçãs verdes de Cézanne, o mar.
Olhos onde a luz tinha morada,
agora inseguros, tropeçando
no próprio ar.
Eugénio de Andrade
Wednesday 1 June 2016
Havemos de voltar
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar
ÀS nossas terras
vermelhas do café
brancas de algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar
Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar
Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar
À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar
À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar
À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar
Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente
Agostinho Neto
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