Wednesday 30 December 2020

O enforcado


No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado.

Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.

Dele sobra o cajado.

Alexandre O'Neill

Sunday 27 December 2020

VOLTA AO MUNDO


Júlio verme deu a
volta ao mundo em 80 mil dias
e agora que chegou prepara-se para assentar
o rastejantraseiro na presidência do que estiver
vacante de presidentes
é o costume há sempre um júlio ainda por cime verme
que vem ver-me ver-te ver-nos
que saíu longetempo do buraco
da mãe para um feio dia limpar
pública meticulosamente os óculos
pô-los no nariz entalar o arreganho dum sorriso
entre as duas faiscantes vidraças
e dizer doravante quem manda
sou eu pelo menos até ao próximo
verme que a providência já fez partir do seu buraco
e ao qual cederei
o poder dentro de 8o mil dias
quando a situação estiver normalizada
quando o povo encontrar praza a deus a cloaca
onde evacuar os seus filhos espúrios
causa de todo o mal

(e nós a vermos)

Alexandre O'Neill

Thursday 24 December 2020

SALDOS NO VIETNAME


Bombas de esferas:
cachos de bombas nascem de uma só bomba-mãe.
Cada bomba-filha ejecta, à altura do homem,
300 esferas que vão penetrar na carne aos ziguezagues.

Parente deste sanguinário jogo de berlinde
é o jogo das setas: um polegar de tamanho,
aletas que lhe permitem
entrar em parafuso carne dentro,
pontas de arpão,
o que torna a sua extracção muito difícil.

(Agora, as setas, quando já no corpo
- é um melhoramento! - fragmentam-se.)

Também há projécteis de plástico
não detectáveis pelos raios x;
e a bomba dita de nuvem explosiva.

Quando entra em cena o seu papel é este:
introduzir, primeiro, por escâncaras ou frinchas,
no teatro onde está a actuar,
uma expansiva nuvem de etileno.
Só depois explode: então, o fogo
pega-se ao etileno e... cai o pano!

E mais uma invenção: as minas-aranhiços,
que desenrolam patas de 6 metros
quando tocam no chão.

Ai de quem tropeçar numa das patas:
nem a mosca da alma terá tempo
de se evolar!

A TV veio também colaborar
com «directos» bem sofisticados:
realizador-bombista, o pessoal-piloto
a um só tempo fabrica e realiza a própria acção
e faz-vê, em grande plano, o seu desfecho.

Outros sinetes deixou o americano
no texto Vietname.
Um dos mais velhos: a incandescente lepra
à procura de pessoas que se chama napalm;
um dos mais novos: a bomba
devoradora de todo o oxigénio
250 metros em derredor
do ponto onde cair.

E onde o americano espera nunca estar.

Alexandre O'Neill

Monday 21 December 2020

AUTO-RETRATO


O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

Alexandre O'Neill

Friday 18 December 2020

NEM A SETE CHAVES


Nem a sete chaves
de mim separado,
de ti separado,
guardado dos outros,
em mim conseguiram,
no tempo das trevas,
nas trevas das celas,
as trevas murchar
os cravos solares
floridos em mim,
em mim ateados,
do meu pensamento,
da minha certeza,
da minha vontade.

Armindo Rodrigues

Tuesday 15 December 2020

NÃO QUERER NADA...


Não querer nada do que os outros querem,
não fazer nada do que os outros fazem,
não é afirmação de independência,
não é afirmação de liberdade,
mas um capricho apenas de burguês,
birrento, pretensioso, negligente,
mal-educado, ocioso e insensato.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 December 2020

A longa espera


Até onde chegará a nossa
resistência?
Até onde
suportaremos nós,
homens de carne e osso,
a tortura inumana?
Até onde, pacientes,
metódicos,
secretos,
seremos capazes de levar
as nossas palavras
firmes e consoladoras?
Até onde ecoarão elas,
e em que ouvidos?
Até onde teremos de mascarar-nos,
de mentir,
de fingir?
Revolução
porque tardas?
Já escarva o chão,
pronto a investir,
o gigantesco toiro,
de baba espessa,
de olhos chispantes
e frementes músculos.
Já desabrocham cravos
no silêncio contido.
Já as ocultas labaredas
se preparam para desfraldar-se
resgatadoras,
ao vento solto.
Já as multidões,
com a sua ira,
quebram em estilhaços
o lavado cristal do dia atento.
Revolução,
porque tardas?
Desdobra, cotovia amável,
como um harmónio,
a tua alacridade,
sob o frio dos escombros.
Semeia, sol,
a luz e o calor fertilizadores
pelos campos lavrados.
Dai as mãos e anunciai,
trabalhadores de todo o mundo,
o grande recomeço.
Soldados,
quebrai com ímpeto
as vossas armas arrependidas
e pisai-as.
E tu, menino, proclama,
com a tua voz de alvorada,
para além dos teus desejos,
os teus sonhos realizados.


Armindo Rodrigues

Wednesday 9 December 2020

Porque revelam...


Porque revelam,
ainda por cima, tanto ódio
os possuidores da terra
pelos que pedem trabalho,
se estes querem, pelo contrário,
a terra para todos?

Armindo Rodrigues

Sunday 6 December 2020

HOMEM


Homem
que mate um homem não é homem.
Homem
que explore um homem não é homem.
Nem homem é
homem que imponha a um homem
nem falsa exaltação
nem cobardia.

Armindo Rodrigues

Thursday 3 December 2020

Porque havemos de o esquecer?


Por que havemos de o esquecer?
Foi a exemplo secreto dos espectaculares
autos-de-fé piedosos
da por igual maldita abjecção
católica-romana,
que a um punhado de cinza
e fumo pelo espaço,
nauseabundo e sufocante
se reduziram milhões de corpos dolorosos
nos fornos crematórios
dos campos de concentração
de recordação recente.

Armindo Rodrigues

Tuesday 1 December 2020

LIVRE


Livre de todas as servidões me sinto,
livre de todas as servidões me quero,
conquanto acusado
de servir constantemente a liberdade.
E servidor constante da liberdade o sou,
o que é, a par, a libertação possível,
o que é, a par, a libertação total.

Armindo Rodrigues

Monday 30 November 2020

O despertar


Acordaste.
Onde estás?
Na tua casa.

Ainda não ganhaste o hábito
de estar em casa
ao acordar.
É um dos males
resultante de treze anos de prisão.

Quem está deitado ao teu lado?
Não é a solidão.
É a tua mulher.
Dorme como um anjo.
Fica-lhe bem, à minha bela, a gravidez.

Que horas são?
Oito horas.
Isso quer dizer
que até à noite estaremos em segurança.
Segundo o costume,
enquanto for dia
a polícia não faz buscas.

Nazim Hikmet

Friday 27 November 2020

UMA HORA DA MANHÃ


A toalha é de algodão azul
e em cima dela os nossos livros
risonhos, sinceros, corajosos.

Cheguei do cativeiro
minha bela,
do baluarte
do meu inimigo
no meu próprio país.
É uma hora da manhã.
Ainda não apagámos a luz,
a minha mulher está deitada ao meu lado
está no seu quinto mês
e quando lhe toco ao de leve
quando lhe pouso a mão no ventre
o bebé dá voltas e mais voltas,
tal como a folha no ramo
o peixe na água
o filho do homem na matriz
o meu filho.
A primeira camisola do meu filho
em lã cor de rosa,
foi tricotada pela mãe.
O corpo, um palmo da minha mão.
E os braços - assim grandes!
Quero que o meu filho,
se for menina,
seja parecido com a mãe da cabeça aos pés,
se for menino,
que saia a mim em altura,
se for menina,
que olhe com uns olhos cor de avelã,
se for menino,
que o seu olhar seja de um azul imenso.
Ao meu pequenino,
não quero que o matem aos vinte anos,
se for rapaz, com um tiro na fronte,
se for menina,
nos abrigos, em plena noite.
Ao meu pequenino,
seja rapariga seja rapaz,
e qualquer que seja a sua idade,
não quero que o levem para a prisão
por ser a favor da beleza, da justiça e da paz.
Mas não há dúvida
meu filho e minha filha
que se o dia tardar
tu vais ter mesmo
que te bater...

É um duro ofício, no nosso país, nos nossos fias,
ser pai.
É uma hora da manhã.
Ainda não apagámos a luz,
talvez dentro de momentos,
com a aurora, talvez,
vão entrar em casa à força
e prender-me e levar-me
e aos meus livros,
ladeado pelos membros da polícia política.
Vou olhar para trás e tornar a olhar
a minha mulher imóvel na soleira da porta
e no seu ventre cheio e pesado
o bebé dará voltas e mais voltas.

Nazim Hikmet

Tuesday 24 November 2020

Da Vida

No caso de estarmos doentes
e tão gravemente
que seja preciso recorrer ao bisturi,
isso significa que porventura
não vamos mais erguer-nos do bilhar branco.
Então, embora sentindo uma grande tristeza
por ir embora demasiado cedo
vamos rir à mesma
ao ouvir uma anedota,
vamos olhar pela janela
para ver se o tempo está de chuva
ou vamos guardar, ansiosamente,
as notícias da última hora.

No caso de estarmos na frente de batalha
a lutar por uma causa que valha a pena,
logo desde o primeiro dia e desde o primeiro embate
podemos cair de nariz no chão e morrer.
Sabemo-lo, é intensa a nossa amargura,
mas apesar disso
somos ainda ansiosos e apaixonados,
gostávamos de ter uma saída para essa guerra
que ainda pode durar anos.

No caso de estarmos na prisão
prestes a fazer os cinquenta
e devendo ainda esperar dezoito anos
pelo abrir das grades,
mesmo então
não deixaremos de viver com o mundo lá de fora,
com seus homens, seus animais, suas lutas e seus ventos
Com o mundo além-muros.
Assim, onde quer que estejas e sejam quais forem as circunstâncias
deves viver
como se nunca houvesses de morrer.

Nazim Hikmet

Saturday 21 November 2020

Adivinhas sobre Paris

Qual a cidade que se parece com o vinho?
Paris.
Bebes o primeiro copo.
Sabe mal.
Ao segundo,
sobe-te à cabeça.
Ao terceiro,
impossível ires-te embora:
Rapaz, outra garrafa!
A seguir, estejas onde estiveres,
vás onde fores,
estás amarrado a Paris, meu velho.

Qual a cidade
que se mnatém bela mesmo depois de
quarenta dias de chuva?
Paris...

Filho de Hikmet, em que cidade
gostarias de morrer?
Em Istambul,
em Moscovo,
e também em Paris...

Em que momento Paris se torna feia?
Quando as tipografias são saqueadas
e se queimam os livros.
O que é que destoa em Paris?
Os carros pretos de grades nas janelas.

Em que cidade comeste
o pão
mais puro?
Em Paris.
Sobretudo os "croissants" com manteiga.
Nada que se pareça
com os da padaria de Chehzadébachi.

O que mais amaste em Paris?
Foi Paris.

A quem ofereceste flores, camarada?
Aos do Muro dos Federados,
e também a uma bela, esbelta como uma vergôntea.
Entre os teus, quem encontraste em Paris?
Namik Kemal, Ziya Pacha, Mustafa Sufi,
e também a juventude da minha mãe:
faz pintura,
fala francês,
é a mais bela do mundo.
E também encontrei
a juventude de Mimi.

Bom: com quem se parece Paris?
Com o Parisiense...

Acreditas em Paris, filho do homem?
Acredito em Paris.

Nazim Hikmet

Wednesday 18 November 2020

EM PARIS, A 28 DE MAIO DE 1958

Por sorte que vi, por sorte que vi,
por sorte que vi esse dia.
Esse dia, por sorte que o vi em Paris.
Paris correu como um rio.
O verdadeiro Paris,
o grande Paris,
todo azul e vermelho,
e o Reno e o Ródano e o Garona e o Sena correram;
Paris correu como as águas em cascata.
Paris desfilou em 1958
a 28 de Maio.
Por sorte que vi, por sorte que vi
esse dia, por sorte que o vi em Paris.
O homem transpôs as portas.
De um momento para o outro o homem encheu a praça.
Como gaiola aberta para o pássaro sair,
os muros libertaram o homem.
De repente um homem confundiu-se
com quinhentos mil homens.
Quinhentos mil homens
confundiram-se
com um único homem:
Ivry, Saint-Denis, Belleville,
todos os arrabaldes de Paris
chegaram
de bicicleta.
As pedras animaram-se para se transformarem em homens.
Ah este coração! Ah este coração! Ah este coração!
Coração doente, maldito coração!
Este coração que impede que eu me misture com eles:
à cabeça, os deputados, cingidos com as
suas faixas,
à minha direita, Pierre, o torneiro de olhos de água;
à minha esquerda, o professor da Sorbonne,
de barba branca;
à minha direita, um
baixo e moreno,
explosivo;
os seios da rapariga de azul ao meu lado
são bombas,
e os saltos dos sapatos, agulhas.
Ah este coração! Ah este coração!
que me impede de integrar a corrente,
de uma praça para outra.

Escrevo tudo isto
a 29 de Maio de 1958.
Sei que há traidores entre nós,
conheço alguns.
Quem sabe? É talvez um pouco
por nossa causa
que as águas, em sucessivas vagas,
de azul e vermelho,
não conseguem destroçar
o navio negro do corsário.

Nazim Hikmet

Sunday 15 November 2020

OS CANTOS DOS HOMENS

Os cantos dos homens são mais belos que os homens,
mais densos de esperança,
mais tristes,
com uma vida mais longa.

Mais do que os homens eu amei os seus cantos.
Consegui viver sem os homens
nunca sem os cantos;
aconteceu-me ser infiel
à minha bem amada
mas nunca ao canto que para ela cantei;
nunca também os cantos me enganaram.

Qualquer que fosse a sua língua
sempre compreendi os cantos.

Neste mundo,
de tudo o que pude beber e comer,
de todos os países por onde andei,
de tudo o que pude ver e ouvir,
de tudo o que pude compreender,
nada, nada
conseguiu fazer-me tão feliz como os cantos...

Nazim Hikmet

Thursday 12 November 2020

A ESPANHA


Entre nós, uns atingem os sessenta;
outros vão um pouco mais longe,
outros há que são apenas uma mancheia de ossos.

A Espanha, nossa juventude,
a Espanha é uma rosa ensanguentada que desabrochou em nossos peitos.
A Espanha, nossa amizade na penumbra da morte,
a Espanha, nossa amizade à luz da nossa esperança invencível.
E as velhas oliveiras, com talhos, e a terra amarela e a terra vermelha esburacadas.
Entre nós, uns atingem os sessenta;
outros vão um pouco mais além,
outros há muito que são apenas uma mancheia de ossos.

Madrid caiu em 39:
quantas coisas, boas ou amargas, aconteceram aos homens de então!
A Espanha caiu em 39.
Em 62 vem-nos das minas das Astúrias a sua voz colérica e fraterna,
vem-nos do fundo da nossa esperança invencível, de Bilbao.
A Espanha era a nossa juventude,
a Espanha é a vossa juventude.
A Espanha é na palma da mão a linha da vida de todos nós.

Nazim Hikmet

Monday 9 November 2020

Poesia e propaganda


Hei-de mandar arrastar com muito orgulho,
pelo pequeno avião da propaganda
e no céu inocente de Lisboa,
um dos meus versos, um dos meus
mais sonoros e compridos versos:

E será um verso de amor...

Alexandre O'Neill

Friday 6 November 2020

AUTOBIOGRAFIA

Nasci em 1902
não voltei mais à minha cidade natal
não gosto de regressos.
Com a idade de três anos, em Alep fiz profissão de neto de paxá,
com dezanove anos, de estudante na universidade comunista de Moscovo,
com quarenta e nove anos em Moscovo
de convidado do Comité Central,
e desde os catorze anos que exerço a profissão de poeta...
Há pessoas que conhecem todas as espécies de ervas,
outras as de peixes,
eu as das separações.
Há pessoas
que podem citar de cor
os nomes das estrelas,
eu os das nostalgias.

Dormi em prisões e também em grande hotéis.
Conheci a fome e também a greve da fome
e não existe manjar que eu não tenha provado.
Aos trinta anos quiseram enforcar-me.
Aos quarenta e oito anos quseram dar-me o Prémio mundial da PAZ
e deram-mo.
No ano em que fiz trinta e seis anos percorri durante seis meses
quatro metros quadrados de betão.
Aos cinquenta e nove anos voei de Praga até Havana em dezoito horas.
Nunca vi Lenine mas montei guarda junto do seu catafalco em 1924.
Em 1961 o mausoléu que visito são os livros.
Tentaram separar-me do meu Partido
não conseguiram.
Não fiquei esmagado sob os ídolos caídos
em 1951 no mar em companhia de um camarada
caminhei para a morte.
Em 1912, com o coração destroçado, esperei a morte
durante quatro meses deitado de costas.
Tive um ciúme louco das mulheres que amei.
Nem Charlot eu invejei.
Enganei as minhas mulheres
mas nunca murmurei nas costas dos meus amigos.

Bebi sem me tornar um bêbado,
por felicidade, sempre ganhei o pão com o suor do meu rosto.
Se menti foi por ter sentido vergonha por outrem,
menti para não prejudicar terceiros,
mas também menti sem razão.

Tomei o comboio, o avião, o automóvel,
a maior parte das pessoas não pode tomá-los.
Fui à Ópera
a maior parte das pessoas não pode lá ir e até ignora o nome.
Mas onde vai a maior parte das pessoas, desde 1921 que lá não vou:
à mesquita, à igreja, à sinagoga, ao templo, ao feiticeiro,
mas li algumas vezes nas borras do café.

Estou traduzido em trinta ou quarenta línguas
mas na Turquia estou proibido na minha própria língua.

Não tive cancro até à presente data,
também não era obrigatório.
Não serei primeiro-ministro et
cétera
nem tenho prazer nenhum nesse tipo de trabalho.
Também não estive na guerra
não corri noite cerrada para dentro dos abrigos
nem me vi
pelos caminhos
sob aviões a descerem a pique
mas quase aos sessenta anos enamorei-me.

Para ser breve, camaradas,
hoje aqui em Berlim, embora morrendo de tristeza,
posso dizer que vivi como um homem
mas o tempo que me resta para viver
e aquilo que pode acontecer-me
quem sabe?

Nazim Hikmet

Tuesday 3 November 2020

AO ROSTO VULGAR DOS DIAS


Monstros e homens lado a lado,
não à margem, mas na própria vida.

Absurdos monstros que circulam
quase honestamente.

Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

*
Ao rosto vulgar dos dias,
à vida cada vez mais corrente,
as imagens regressam já experimentadas,
quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

*
Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.

Alexandre O'Neill

Sunday 1 November 2020

SE...


Se é possível conservar a juventude
respitando abraçado a um marco do correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora
e a mordeu deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
pôs marfim a sorrir;
Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
veio de longe ver o Presidente
a cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
e a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
e a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se, reentrante, protuberante, perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge (o «ponto do Jorge!) tentou beber naquela noite
o presunto de Chaves por uma palhinha
e o Eduardo não lhe ficou atrás
ao sair com a lagosta pela trela;
Se «ninguém me ama porque tenho mau hálito
e reviro os olhos como uma parva»;
Se a Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
cantar com o Alberto...

... Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?

Alexandre O'Neill

Friday 30 October 2020

Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill

Tuesday 27 October 2020

Uma lição de poesia, uma lição de moral

À memória de Paul Éluard

Estudaste a bondade aprendeste a alegria
iluminaste a noite com a estrela
e o desejo com a necessidade

Comunicativo bom inteligente
soubeste sofrer sem destruir a vida
sem chamar pela morte

Soubeste vencer o íntimo lazer
as absurdas manias que a solidão instala
no coração virado na cabeça perdida

Soubeste mostrar o mais secreto amor
numa alegria feroz perfeita pública
capaz de provocar o ódio e a ternura

Em todas as frentes que por ti passavam
contra-atacaste repelindo o mal
com pesadas perdas para o inimigo

E na miséria que subia aos rostos
puseste a nu a resistência a esperança
e um futuro sorriso

Enquanto velhas feridas se fechavam
tua poesia abriu-se e hoje é comum
e transparente como os olhos das crianças

Hoje é o pão o sangue e o direito à esperança
à esperança que é «um boi a lavrar um campo»
e que é «um facho a lavrar o olhar»

Andaste triste mas não foste a tristeza
sofreste muito mas não foste a dor
amaste imenso e eras o amor

Cantaste a beleza proferiste a verdade
enconstraste não uma mas a razão de ser
compreendeste a palavra felicidade

E numa extrema juventude e sob o peso
precioso da simplicidade
tudo disseste

Disseste o que devias dizer.

Alexandre O'Neill

Saturday 24 October 2020

PORTUGAL


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

* 
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill

Wednesday 21 October 2020

A PATA SOBRE A ESFERA


A propriedade privada
ameaça para a estrada
com dois leões de pedra
postos à entrada.

Preferível decerto...
Arrogância na pedra...
o leão da Metro!
desmazelo na terra...

Mas agora já estou longe,
a um tiro de espingarda...

Alexandre O'Neill

Sunday 18 October 2020

DOMINGO

Hoje é domingo.
Pela primeira vez, hoje
deixaram-me sair ao sol,
e eu,
pela primeira vez na vida,
espantado de o ver tão longe
tão azul
tão vasto,
imóvel olhei o céu.
A seguir sentei-me na terra, com respeito,
encostei-me à parede branca.
Nesse instante, nada de ideias.
Nesse instante, nem luta, nem liberdade, nem mulher.
A terra, o sol e eu.
Sou feliz.

Nazim Hikmet
(Poemas da Prisão e do Exílio)

Thursday 15 October 2020

ELES

Eles que são inúmeros
como as formigas na terra,
os peixes na água,
as aves no céu,
eles que são poltrões,
corajosos,
ignorantes
e sábios,
eles que são crianças,
eles que fazem tábua rasa
e eles que criam,
serão, com as suas aventuras, o objecto único deste livro.

Eles que, deixando-se enredar nas teias do traidor,
atiram com o chapéu
e, abandonando a arena ao inimigo,
correm a fechar-se em casa,
e eles ainda que trespassam o traidor à punhalada,
eles que riem como a árvore jovem,
eles que choram prematuramente,
eles que injuriam pai e mãe,
serão, com as suas aventuras, o objecto único deste livro.

E o ferro
e o carvão
e o açúcar
e o cobre vermelho
e os tecidos
e cada um dos ramos da indústria
e o amor
e a tirania
e a vida
e o céu
e a planície
e o oceano azul
e as melancólicas vias fluviais
e a terra lavrada e as cidades,
um dia tudo muda de feição,
quando manhã cedo, nos confins das trevas,
apoiando no chão as mãos calosas e pesadas
eles se levantarem.

São eles que reflectem
nos espelhos mais sábios
as imagens mais coloridas.
No nosso século, eles venceram,
eles foram vencidos.
Deles muita coisa se disse
e para eles foi dito
que não tinham nada a perder
a não ser as grilhetas.

Nazim Hikmet

Monday 12 October 2020

Da Morte

Entrem lá, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.
Já sei, entraram pela janela da cela enquanto eu dormia
não deixaram cair nem a garrafa de gargalo fino
nem a caixa vermelha de medicamentos.
Aí estão todos de mãos dadas à minha cabeceira
com uma palidez de estrela nos rostos.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
e como não creio em Deus nem no além
lamentava não lhes ter ainda
oferecido uma pitada de tabaco.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
Venham pois, meus amigos, sentem-se
sejam benvindos, trazem-me alegria.

Hachim, filho de Osman,
porque me olhas com ar de caso?
Hachim, filho de Osman,
como é estranho
não tinhas morrido, meu irmão,
em Istambul, no porto,
durante um carregamento de carvão para um barco estrangeiro?
Caíste com o balde no fundo do porão
foi o cabrestante do cargueiro a içar-te
e antes de ires repousar para sempre
o teu sangue, muito vermelho, lavou a tua cabeça negra.
Quem sabe aquilo que sofreste.

Não fiquem de pé, sentem-se,
pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
com uma palidez de estrela nos rostos
Sejam benvindos, trazem-me alegria.

Yakup, da aldeia de Kayalar,
olá, velhote,
não estavas morto, também tu?
Não tinhas ido para o cemitério sem árvores
deixando aos filhos a malária e a fome?
Fazia um calor horrível nesse dia
Então, não estavas morto?

E tu Ahmed Djemil, o Escritor?
Vi com os meus próprios olhos
o teu caixão descer à terra
creio mesmo estar lembrado
que o teu caixão era pequeno demais para o teu tamanho.
Deixa, Ahmed Djemil,
vejo que ainda conservas o velho hábito,
uma garrafa de medicamento, não de raki,
bebias dessa maneira
para poderes fazer cinquenta piastras por dia
e para poderes esquecer o mundo na tua solidão.

Pensava que estavam mortos, meus amigos,
afinal estão à minha cabeceira de mãos dadas
Sentem-se, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.

A morte é justa, diz um poeta persa,
ceifa o pobre e o xá com igual majestade.
Hachim, porque te espantas?
nunca ouviste falar de um xá
morto no porão de um navio com um balde na mão?
A morte é justa, diz um poeta persa.

Yakup,
como ficas belo quando ris, querido velho,
nunca te vi rir assim
quando estavas vivo...
Mas espera que eu acabe
A morte é justa, diz um poeta persa...

Deixa essa garrafa, Ahmed Djemil,
não vale a pena zangares-te, eu compreendo-te
Para que a morte seja justa
é preciso que a vida seja justa.

O poeta persa...

Porquê, meus amigos, porque me deixam assim sozinho?
Onde vão vocês?

Nazim Hikmet

Friday 9 October 2020

A PROPÓSITO DO MONTE ULUDAG

Faz sete anos que nos olhamos
olhos nos olhos
esta montanha e eu
e ninguém arreda pé
nem ela nem eu.
Contudo, já nos conhecemos bem.
Ela sabe rir e zangar-se
como tudo o que leva a vida a sério.

Porém
sobretudo no Inverno
sobretudo à noite
sobretudo quando o vento sopra do sul
com os picos nevados
as florestas de pinheiros
as pastagens
os lagos gelados,
ela move-se ao de leve no sono
e o eremita que vive lá no cimo
com a barba comprida e descuidada
e a túnica ao vento
desce até à planície a ulular
a ulular à frente do vento.

E às vezes
sobretudo em Maio, de manhã cedo
toda azul, sem quaisquer limites,
imensa, feliz livre
ela eleva-se, semelhante a um mundo novo.

E há dias em que por vezes
se assemelha à sua imagem nas garrafas de limonada...

E calculo que num hotel que nunca vi
as esquiadoras passam bons momentos
a beber conhaque com os esquiadores.

E há dias
em que um desses serranos de sobrancelhas negras
e calças de burel, amarelas e largas,
por ter sacrificado o vizinho no altar da sacrossanta propriedade
vem, como nosso hóspede,
passar quinze anos na cela colectiva número dezassete...

Nazim Hikmet

Tuesday 6 October 2020

ANGINA DE PEITO

Se metade do meu coração está aqui, doutor,
a outra metade está na China,
no exército que desce em direcção ao Rio Amarelo.

E depois, todas as manhãs, doutor,
o meu coração é fuzilado na Grécia.

E depois, quando os prisioneiros mergulham no sono,
quando a calma regressa à enfermaria,
o meu coração parte, doutor,
todas as noites
parte para uma casa
velha de madeira em Tchamlidja.

E depois, faz dez anos, doutor,
que nada tenho nas mãos para oferecer ao meu pobre povo,
só uma maçã,
uma maçã vermelha: o meu coração.

É por isso, doutor,
e não por causa da arteriosclerose, da nicotina, da prisão,
que tenho esta angina de peito.

Olho à noite por entre as grades
e apesar de todas as paredes que me pesam no peito,
o meu coração bate ao ritmo da estrela mais longínqua.

Nazim Hikmet

Saturday 3 October 2020

Abro o aparelho de rádio e ouço a emissão de Moscovo, muito abafada, por causa dos vizinhos

A voz quente
na boca desta mulher, húmida de bandeiras,
entoa na rádio a apoteose do Futuro
para além do letargo da lucidez dos dias...

Mas tudo em redor
nos brilhos concretos
do cansaço da noite
me insinua um futuro sem esplendor
onde nunca se chega por estradas rectas,
mas só por atalhos
pardacentos de cardos e desvios
a ocultarem-nos a beleza directa do destino...

José Gomes Ferreira

Thursday 1 October 2020

Estalinegrado. Juramentos colectivos: «Desde este momento juramos não recuar um passo»

I 
E dos corações dos soldados
saíram raízes de pedra
para cumprir os juramentos dados
que os prenderam ao chão.

Só é difícil morrer
em imaginação.

II 
Entretanto
no fundo da treva
da Noite dos Escombros
um Homem e uma Mulher
continuam de mãos dadas,
no rancor de prolongar a vida,
de pele em pele,
de sangue em sangue,
de saliva em saliva,
de estertor em estertor.

E que importa ver o mundo a arder
com ódio, com frio, com monstro!

Arde, mundo! Arde,
coração de amor.

José Gomes Ferreira

Wednesday 30 September 2020

Guerrilheiros torturados pelos esbirros de Hitler na planície dos lobos.


Amarraram-no a uma árvore
florida de vermelho...

(Que lhe falta para cruz?)

Rasgaram-lhe as carnes
com chicotes de unhas...

(Até já tem chagas.)

Sangraram-lhe a fronte
com arame farpado...

(... e coroa de espinhos.)

E agora vai morrer
na planície dos lobos...

(Nem lhe falta o Calvário.)

Mas não é um Deus, ouviram?

É um homem
que vai morrer pelos outros homens
sem ressurreição nem céu.

Um homem apenas
sem a alegria dum destino na Morte.

Um homem apenas
com um Momento Terrível
de suor e nuvens.

Um homem apenas
com deuses fuzilados nos olhos.

José Gomes Ferreira

Monday 28 September 2020

sem título

deixei-te na praia um poema de dez homens a remar cortando a rebentação.

Miguel Tiago

Sunday 27 September 2020

peça para uma criança que não morre

 
do canto da escuridão, uma criança surge correndo, com uma certa pressa como se fugisse de alguém. a cor do seu vestido quase não se distingue do fundo negro, mas vemos do seu rosto um olhar de quem corre fugindo mas sem medo. não a apanharão, pensará ela enquanto corre, percorrendo o vazio escuro de um palco. atravessa-o e mesmo junto a nós vem, algo apressada, plantar uma pequena flor vermelha num montinho de terra feito à pressa com a que estava à mão. erguida do chão a pequena flor, a criança, olha em redor, passa o pé de roda da terra para a calcar e dar segurança às ainda frágeis raízes, e deixamos rapidamente de a ver.
dois homens surgem no escuro, com uma luz forte a iluminar-lhes o caminho. espingarda às costas, olham a flor, entreolham-se pouco tempo porque, como para autómatos, a existência do outro é um facto estranho, ao qual toda a importância dada é demasiada. já muito perto da flor, apontam-lhe as espingardas. um deles, ante a resistência inusitada da flor à voz de prisão e de joelhos no chão, mãos na cabeça, arranca-a do chão sem piedade, tira-lhe duas pétalas para análise posterior em laboratório e deixa abandonado o cadáver que ora jaz pelo monte de terra desfeito.
tudo é escuridão. os homens diluem-se nela. uma fresta de luz rente ao chão vem do nascente e ouvem-se os passos mais apressados de uma criança. vem com o mesmo vestido, porém mais apressada, a respiração mais difícil, os passos mais trementes. nas mãos traz uma flor e desajeitada mas cuidadosa, volta ao mesmo local, arranja de novo a terra, ergue de novo a flor, olha em redor, calca a terra, some no escuro.
dois homens surgem destacando-se do escuro. como é possível que a flor tenha de novo surgido? talvez tenha deitado sementes, talvez sejam necessárias medidas mais duras, uma pulverização do terreno com herbicidas, uma praga de gafanhotos, uma vigilância constante, quem sabe mesmo videovigilância. tudo ideias que podem e devem discutir e tudo ideias que tentaram. a flor morreu e tornou a surgir pelas mãos de uma criança que, sob as câmaras de vigiância ou o olhar mais atento das espingardas, sabia sempre como ali a levantar do chão que parecia estéril.
estéril não era. e a flor tornava, por vezes apenas por alguns minutos, a erguer-se na escuridão procurando o sol de que vivia. ou chamando o sol que a fazia viver.
certo dia, os homens construíram toda uma igreja, com sacerdotes e templos. era muito importante que ninguém se aproximasse da flor que teimava em nascer. era muito importante não a querer ver, não a querer cheirar. anos a fio e gerações atrás de gerações viveram aterrorizadas pela simples ideia de que fosse possível cheirar uma flor.
e no entanto, era uma criança quem teimava em resistir às ordens.
adiante, no fundo do escuro, uma projecção mostra como a comunicação social se empenha em dizer que a flor é má. que aliás, todas as flores são más, não só as vermelhas. todas, de todas as cores, é preciso acabar com elas. e se porventura no teu quintal a chuva trouxer uma qualquer flor, nem que seja daninha e espontânea, é teu dever arrancá-la do chão sem piedade e incinerá-la até que não reste qualquer cor.
a polícia secreta foi ao local, trocou impressões, recolheu provas. a igreja mandou muitos homens estudar o fenómeno para saberem como escrever livros com as mentiras certas. a alta hierarquia da igreja sugeriu finalmente que se fizesse de betão o chão onde as flores teimavam em brotar. que nenhuma flor romperia o betão sólido. assim se fez.
durante anos o betão não fendeu.
a chuva, o oxigénio e o sol, todavia, que alimentam e fortalecem flores, venceram a batalha e o betão, anos depois, viu abrir-se-lhe uma pequeníssima fenda, imperceptível para as autoridades do estado e da igreja. o suficiente para que a criança, logo surgisse de novo com uma flor na mão e enchesse com um punhado de terra a fenda minúscula. a flor nasceu no meio do betão. a criança, contudo, não escapou e foi capturada poucos minutos depois.
com as espingardas apontadas, e os dedos acusatórios da igreja sancionando a morte como forma única de expiação, a criança ajoelhou, ergueu os olhos, com serenidade e confiança. nenhuma arma disparou, ninguém mais exigiu o que fosse. porque a criança era afinal todos nós e o seu rosto um espelho onde se reflectiam todos os rostos da plateia.
a flor, ao canto, permaneceu.

Miguel Tiago

Thursday 24 September 2020

HORA H


A Primavera cheira a laranjas.

(Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que chamam laranjas.)

O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.

(Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.)



António Gedeão

Monday 21 September 2020

POEMA DO VERDE PRADO


Enquanto a Lua sobe, o alaúde
soa, ressoa, pertinaz, plangente.
Passa de negro o espectro da virtude
movendo os lábios fervorosamente.

Bale o cordeiro manso, e a voz ecoa
tímida e branda, sonolenta e mole.
Dos prados desce às ruas de Lisboa.
Nem uma aragem na folhagem bole.

Silêncio.
Apurando o ouvido sobre a loisa,
e forcejando o fecho,
parece ouvir-se ao longe qualquer coisa.
É a Terra girando no seu eixo.

António Gedeão

Friday 18 September 2020

Chuva na areia


Terça-feira,
quarta-feira,
quinta,
sexta,
tanto faz.
Ou desta ou doutra maneira,
domingo ou segunda-feira,
nenhuma esperança me traz.

Que eu nem sei bem pelo que espero.
Se aprender o que não sei,
se esquecer o que aprendi,
se impor meu sou e meu quero
se, num ti que eu inventei,
nenúfares boiar em ti.

Que esta coisa que se espera
é no dobrar de uma esquina.
Um clarão que dilacera,
a explosão de uma cratera,
vida, ou morte, repentina.

António Gedeão

Tuesday 15 September 2020

Como será estar contente?

Como será estar contente?
Lançar os olhos em volta,
moderado e complacente,
e tratar com toda a gente
sem tristeza nem revolta?
Sentir-se um homem feliz,
satisfeito com o que sente,
com o que pensa e com o que diz?
Como será estar contente?

Deve haver qualquer mecânica,
qualquer retesada mola
que se solta e desenrola
no próprio instante preciso,
para que um homem de carne,
de olhos pregados no rosto,
possa olhar e rir com gosto
sem estranhar o som do riso.

Na minha tosca engrenagem,
de ferrugenta sucata,
há qualquer mola de lata
que não se distende bem,
qualquer dessorada glândula
ou nervo que não se enfeixa,
qualquer coisa que não deixa
deflagrar essa girândola
de timbres que o riso tem.

Não ter riso e não ter casa,
nem dinheiro nem saúde,
não se conta por virtude
que a miséria é ferro em brasa.

Mas ter casa, ter dinheiro,
ter saúde e não ter riso,
flagelar-se o dia inteiro
como se o sangrar primeiro
fosse um tormento preciso,
tê-lo sempre forte e vivo,
espantado a todo o momento,
isso sim, será motivo
de grande contentamento.

António Gedeão

Saturday 12 September 2020

ESTATÍSTICA

Quando eu nasci havia em Portugal
(em Portugal continental
e nas ridentes,
verdes e calmas
ilhas adjacentes)
uns seis milhões e umas tantas mil almas.
Assim se lia
no meu livrinho de Corografia
de António Eusébio de Morais Soajos.
Hoje, graças aos progressos da Higiene e da Pedagogia,
já somos quase dez milhões de gajos.

António Gedeão

Wednesday 9 September 2020

Para além da Trafaria

- Minha mãe, haverá mundo
para além da Trafaria?

- Não sei, meu filho. Não sei.
Tudo aquilo que sabia
já no meu sangue te dei.

- Que serras são estas, mãe,
que não nos deixam ver nada?

- São rugas que a Terra tem.
Não maces a tua mãe.
Deixa-me estar descansada.

- Ó mãe, que rio é aquele?
Onde nasce e onde morre?

- Ó filho, é Deus que o impele.
Entretem-te a olhar para ele.
É um rio. Tem água. Corre.

- Quando eu for crescido, mãe,
quero saber e entender.

- Ó filho, o supremo bem
é cada qual, com o que tem,
resignar-se e agradecer.
Deus faz tudo pelo melhor.
Não se engana nem se esquece.
De todo o mal, o maior,
seria sempre peor
se Deus assim o quisesse.
Ninguém foge ao seu destino.
Está tudo determinado.
Não penses com desatino.
Dorme, dorme, meu menino,
um soninho descansado.

António Gedeão

Sunday 6 September 2020

AMADOR SEM COISA AMADA

Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.

António Gedeão

Thursday 3 September 2020

TROVAS PARA SEREM VENDIDAS NA TRAVESSA DE S. DOMINGOS


O repórter fotográfico
foi ver a fuzilaria.
Ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

Notícias não confirmadas
informam, de origens várias,
que as tropas revolucionárias
recentemente cercadas
acabam de ser esmagadas
com perdas extraordinárias.

Na redacção do jornal
corre tudo em sobressalto.
A hora é sensacional.
Toda a gente dormiu mal,
gesticula e fala alto.

Passageiros recém-chegados
do lugar da revolução
viram dúzias de soldados
prontos a ser fuzilados
e muitos já arrumados
e amontoados no chão.

Agora que se anuncia
já estar regulado o tráfico,
inda mal rompera o dia
foi ver a fuzilaria
o repórter fotográfico.

Vá lá, vá lá, felizmente,
felizmente que ao chegar
inda havia muita gente
que estava por fuzilar.

Numa ridente campina
de papoilas salpicada,
um sol de lâmina fina
cortava a densa neblina
da metralha disparada.

Berrando como vitelos
a malta dos condenados
avançava aos atropelos
e arrepanhava os cabelos
com gestos alucinados.

O repórter já suava,
não tinha mãos a medir;
ora a máquina carregava,
apontava e disparava,
ora no chão se agachava,
pulava e gesticulava
com afanosa presteza.
Há empregos, com franqueza,
nem haviam de existir.

A um tipo de mãos nojentas
que aos berros sobressaía
gritando frases violentas,
focou-o mesmo nas ventas
no momento em que caía.

Mas o melhor não foi isso.
O melhor foi uma velhota
que pôs tudo em rebuliço.
Rápida como um rastilho,
em convulsivos soluços,
foi estatelar-se de bruços
sobre o corpo do seu filho.

- Meu menino, meu menino!
Valha-me a Virgem Maria!
Que vai ser o meu destino
sem a tua companhia?
Mataram-me o meu menino!
Filho do meu coração!
Que vai ser o meu destino
sem a tua protecção?!

Nunca uma cena de horror,
uma tragédia tão viva,
tão grande e expressiva dor,
alguém teve ao seu dispor
defronte de uma objectiva.

Era uma face crispada,
um olhar perdido e louco,
uma boca de xarroco
em lágrimas ensopada.

Foi uma sorte, realmente.
Um desses casos notáveis,
bestiais e formidáveis
que acontecem raramente.

Aquelas faces crispadas
correram pelo mundo inteiro
nas revistas ilustradas,
em tiragens esgotadas
que deram muito dinheiro.

Com aquele sentido humano
da justiça e da harmonia,
o repórter, todo ufano,
ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

António Gedeão

Tuesday 1 September 2020

POEMA DO AUTOCARRO


Quantos biliões de homens! Quanto gritos
de pânico terror!
Quantos ventres aflitos!
Quantos milhões de litros
de movediço amor!
Quantos!
Quantas revoluções na cósmica viagem!
Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro!
Quantos!
até eu estar aqui nesta paragem
à espera do autocarro.

E aqui estou, realmente.
Aqui estou encharcado em sangue de inocente,
no sangue dos homens que matei,
no sangue dos impérios que fiz e que desfiz,
no sangue do que sei e que não sei,
no sangue do que quis e que não quis.
Sangue.
Sangue.
Sangue.
Sangue.

Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro,
numa hora qualquer, H ou F ou G,
uns homens hão-de vir cheios de medo e sede
e me hão-de fuzilar aqui contra a parede,
e eu nem sequer perguntarei porquê.

«Mas...»

Não há mas.
Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

«Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem,
o bem universal,
sem distinguir ninguém»

Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro
e sem lhes perguntar porque maltratam.
Eu sei por que é que morro.
Eles é que não sabem porque matam.

Eles são pedras roladas no caos,
são ecos longínquos num búzio de sons.
Os homens nascem maus.
Nós é que havemos de fazê-los bons.

Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro,
um rosto onde possa descansar os olhos olhando,
um rosto como um gesto suspenso
que me estivesse esperando.
Mas o rosto não existe. Existem caras,
caras triunfantes de vícios,
soberbamente ignaras
com desvergonhas dissimuladas nos interstícios.
O rosto não existe.

«Procura-o»

Não existe-

«Procura-o.
Procura-o como a garganta do emparedado
procura o ar;
como os dedos do homem afogado
buscam a tábua para se agarrar»

Não existe.

«Vês aquele par sentado além ao fundo?
Vês?
Alheio a tudo quanto vai pelo mundo,
simboliza o amor.
Podia o céu ruir e a terra abrir-se,
uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo
que eles continuariam a sorrir-se.
Não crês no amor?»

?

«Não ouves?»

?

«Não ouves?»

«Não crês no amor?»

Cala-te, estupor.

Tenho vergonha de existir.
Vergonha de aqui estar simplesmente pensando,
colaborando
sem resistir.

Disso, e do resto.
Vergonha de sorrir para quem detesto,
de responder pois é
quando não é.
Vergonha de me ofenderem,
vergonha de me explorarem,
vergonha de me enganarem,
de me comprarem,
de me venderem.

Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto.
Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão.
É só estender a mão
e aceitar o prospecto.
A vida é bela. Eu é que devia ser banido,
expulso da sociedade para que a não prejudique.

Hã?
Ah! Desculpe. Estava distraído.
Um de quinze tostões. Campo de Ourique.

António Gedeão

Sunday 30 August 2020

FRAGMENTO DE BLUES


A Langston Hughes

Vem até mim
nesta noite de vendaval na Europa
pela voz solitária de um trompette
toda a melancolia das noites de Georgia:
oh! mamie oh! mamie
embala o teu menino
oh mamie oh! mamie
olha o mundo roubando o teu menino.

Vem até mim
ao cair da tristeza no meu coração
a tua voz de negrinha doce
quebrando-se ao som grave dum piano
tocando em Harlem:
- Oh! King Joe
King Joe
Joe Louis bateu Buddy Baer
e Harlem abriu-se num sorriso branco.

Nestas noites de vendaval na Europa
Count Basie toca para mim
e ritmos negros da América
encharcam meu coração
- ah! ritmos negros da América
encharcam meu coração!

E se ainda fico triste
Langston Hughes e Countee Cullen
vêm até mim
cantando o poema do novo dia
- ai! os negros não morrem
nem nunca morrerão!

... logo com eles quero cantar
logo com eles quero lutar
- ai! os negros não morrem
nem nunca morrerão!

Francisco José Tenreiro
(«Coração em África»)

Thursday 27 August 2020

Eleição

No grande laboratório
onde o amor mais puro é transformado em excremento
e um homem em tamanho natural
é reduzido em poucos minutos a escombros

onde os crocodilos são rapidamente promovidos
e os buracos de fechadura são pistolas automáticas

onde se esmaga o cordão umbilical dos sonhos
e se transformam os venenos em fogos de artifício

onde caixeiros viajantes se exercitam
para vender provetas saturadas de morte

é hoje inaugurada uma nova caveira
e muitos depositam nela imensa esperança.

Egito Gonçalves

Monday 24 August 2020

Ritmo para a jóia daquela roça

Dona Jóia dona
dona de lindo nome;
tem um piano alemão
desafinando de calor.

Dona Jóia dona
do nome de Sum Roberto;
está chorando nos seus olhos
de outras terras saudades.

Dona Jóia dona
dona de tudo o que é lindo:
do oiro cacaueiro
do café de frutos vermelhos
das brisas da nossa ilha.

Dona Jóia dona
dona de tudo o que é triste:
meninos de barriga oca
chupando em peitos chatos;
negros de pèsão grande
trabalhando pelos matos.

Ai! Dona Jóia dona,
dona de mim também -
Jesus, Maria, José
Credo! -
não me olhe assim-sim
que me pára o coração!

Francisco José Tenreiro

Friday 21 August 2020

VINHO DE PALMA


- Vinho de palma é fruto?
- Claro: vinho de palma é fruto.

É filho de árvore
é entrega de árvore
é amor que escorre de árvore.

- Vinho de palma é fruto?
- Vinho de palma é mêmo fruto.

É filho de árvore para sede matar
é entrega de árvore ao homem
é amor que escorre de árvore para amar.

Vinho de palma é fruto?

Eu acho sim-sim
Vinho de palma é mêmo fruto para amar!

Francisco José Tenreiro

Tuesday 18 August 2020

MAMÃO TAMBÉM PAPAIA

Mamão
também papaia.

Que sabor é o teu mamão
também papaia
que andas na boca dos pobres
e és delícia matinal
do Senhor Administrador?

Qual a tua sedução
mamão também papaia?

Será esse teu ar estranho
de seres melão e nasceres nas árvores
ou esse rosto da mama de mulher preta
recordando ao Senhor Administrador aquela
cujo seio se abriu em filhos mulatos
brincando pelas traseiras da Casa Grande?

Que força é a tua
mamão também papaia?

Será porque alivias o rotundo ventre
do Senhor Administrador
e soltando a barriga do Senhor Administrador
libertas a neura e o sorriso
do Senhor Administrador
deixando-o mais macio e de olhos parados
para o dia de sol e quentura do Senhor?

Oh! mamão também papaia
na boca de pobres e de ricos
de pretos de brancos e de mulatos
fruto democrático da minha ilha!

Francisco José Tenreiro

Saturday 15 August 2020

O OSSOBÓ CANTOU


A cavalo do vento
a chuva chegou.
A chuva chegou
e o ossobó cantou.

Cantou o ossobó
seu canto molhado.
«Tchuva já vêo?
Já vêo si siô»

Já veio a chuva, Dêçu mum
e é um estoirar de amor pelas grotas.
Té o ribeirão seco como mulher vazia
se abriu gostosamente ao ribeirinho entumecente.

As águas levam carícias de mãos.
Sob a folhagem amodorra a cobra preta
enquanto o potro e menino do engenho
brincam e correm no terreiro os corpos molhados
do canto bonito do ossobó.

Já vêo a chuva?
Já vêo si siô.
Não vêo não siô.
Ah! Já vêo que ossobó cantou!

A preta do meu amor pariu,
pariu, meu Deus!, porque o ossobó cantou!

Francisco José Tenreiro

Wednesday 12 August 2020

CORPO MORENO

Se eu dissesse que o teu corpo moreno
tem o ritmo da cobra preta deslizando
mentia.
Mentia se comparasse o teu rosto fruto
ao das estátuas adormecidas das velhas civilizações de África
de olhos rasgados em sonhos de luar
e boca em segredos de amor.

Como a minha Ilha é o teu corpo mulato
tronco forte que dá
amorosamente ramos, folhas, flores e frutos
e há frutos na geografia do teu corpo.

Teu rosto de fruto
olhos oblíquos de safís
boca fresca de framboesa silvestre
és tu.

És tu minha Ilha e minha África
forte e desdenhosa dos que te falam à volta.

Francisco José Tenreiro

Sunday 9 August 2020

DIA AZIAGO


1 
Sexta-feira 13

No Black Belt um negro mais
foi linchado.

Sexta-feira 13

O canto da morte cresce
nos olhos rasgados dos coreanos.

Sexta-feira 13

A psitacose ganhou a política
e Paul Reynaud formará governo.

Sexta-feira 13

Shang é o amarelo poeta
pelos Yankees encadernado.

Sexta-feira 13

As paredes e os muros sem hera
vestem-se de brincar às eleições.

Sexta-feira 13
Tudo é silêncio além cortina:
grave silêncio de quem
planeia cinco anos de felicidade.

Sexta-feira 13

Seu Getúlio era fascista
quaisquer dia, Senhor do Bonfim
té parece comunista.

Sexta-feira 13

Vem ou não vem
o empréstimo americano?
Sexta-feira 13
em toda a Terra
Sexta-feira 13
depois de Cristo.

2 
Vêm dias e noites de Sexta-feira 13 carregados de infortúnios
e de revoluções siderais de tempos antigos
de magias e ritos que os rios dos séculos não escoaram
para mares de compreensão e antes
levaram a lagoas com cabeleiras de limos da estagnação mental;
vieram um após outro 54 cavalos que foram como 54
brasidos de lama e fogo
de vulcões convulsos que escarraram sobre nós as vergonhas
e os opróbrios de 19 séculos passados
de 19 estradas obtusas de 19 becos de soluções que desafiaram
as agulhas magnéticas
de 19 milhões de milhões de lutas mesquinhas e pessoais;
19 caminhos de piteiras que levaram ao amanhecer cadavérico
de Sexta-feira 13.
Que o homem se fez a si próprio - fez-se muito mal.
Que o homem inventou as pirâmides - para nada serviram.
Que de Nabucodonozor uma biblioteca houve - ninguém a leu.
Que os romanos deram ao mundo a linguagem da justiça - também deram as galé.
Que os árabes trouxeram a água em odres de sangue - o corpo da terra finou-se de secura.
Que o homem desafiou os mares e o céu dos pássaros - e ninguém ganhou asas:
Ninguém, ninguém ganhou asas
em Sexta-feira 13.

3 
(Há um riso de manicómio racionado
poluindo as fontes frescas e os vales
embaciando os olhos vivos da noite
murchando o tenro das folhas verdes
e as vergonhas cerradinhas das virgens...
em Sexta-feira 13.)

Só a criança que nasceu sem pai
abriu a garganta ao mundo para chorar
- não o choro fininho de quem
agradece à vida a luz dos olhos -.

Só os homens das estepes ressequidas ou geladas
e os que nas selvas vivem como macacos
caçaram, beberam, fornicaram
na doce ilusão dos que amam
entregues ao Sol, à água e ao fogo

- Cantaram
inocentes de Sexta-feira 13!

Francisco José Tenreiro
(«Coração em África»)

Thursday 6 August 2020

CORAÇÃO EM ÁFRICA



(1)Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas das palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.



(2)Em três linhas (sentidas saudades de África) -
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama polícroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril do I too am América
de coração em África coms as árvores renascidas em todas as estações
nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu
e no mistério de Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade
do Congo de coração em África.
De coração em África ao meio-dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos Negors
amodorrando no próprio calor da reverberação
os mosquitos da nocturna picadela.
 

(3) 
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seiso e das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África «no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra
olha o preto (que bom) olha um negro (óptimo)
olha um mulato (tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheio de maresias distantes de areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa da tarde.

(4)De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar,
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas dos homens crianças escravas dos homens
negros escravos dos homens
amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos
sempre dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos os xavantes os esquimós os aínos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.


(5) 
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh órgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo
para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos alísios;
na esperança de que às entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo
que lhe mitigue a sede de existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso
sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.

Francisco José Tenreiro

Monday 3 August 2020

Homem

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão

Saturday 1 August 2020

Complicação

As ondas indo, as ondas vindo - as ondas indo e vindo sem parar um momento.
As horas atrás das horas, por mais iguais sempre outras.
E ter de subir a encosta para a poder descer.
E ter de vencer o vento.
E ter de lutar.
Um obstáculo para cada novo passo depois de cada passo.
E as complicações, os atritos, para as coisas mais simples,
até para a pronúncia de uma simples vogal.
E o fim sempre longe, mais longe, eternamente mais longe.
Ah mas antes isso.

Ainda bem que o mar não cessa de ir e vir constantemente.
Ainda bem que tudo é infinitamente difícil.
Ainda bem que temos de escalar montanhas e que elas vão sendo cada vez mais altas.
Ainda bem que o vento nos oferece resistência
e o fim é infinito.

Ainda bem.
Antes isso.
50 000 vezes isso à igualdade eterna, seca, estéril, fútil da planície.

Mário Dionísio

Thursday 30 July 2020

NÃO


1
Venham todos os meninos nascidos nas palhas
duma mãe camponesa de braços vergados aos molhos de espigas
e dum pai carpinteiro.
Venham todos os vultos das docas sombrias
e todas as mulheres das ruelas de lâmpada vermelha.
Venham todos os moços de braços inúteis
e todas as raparigas de olhos desiludidos
e todos os velhos que não tiveram mocidade.
Venham.
Vamos gritar que não!
Dos nosso braços levantados para regiões desconhecidas,
para multidões de estrelas,
nasceram aeroplanos.
Dos nosso braços abertos para abraçar a terra,
nasceram máquinas inimagináveis.
Mas as máquinas traíram.
E os aeroplanos traíram.
E ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
E ficou só um campo coalhado de mortos.
Venham.
Vamos dizer que não!
O sopro de amor que chicoteou as veias
estendeu-nos os braços para novas ferramentas,
para a construção imensa da Cidade Nova.
Mas o corpo ficou-nos agarrado ao braço pegajoso da carne machucada.
E a cabeça desligou-se para sonhos impossíveis.

2
Nos intervalos do almoço,
sentados nos andaimes cheios de manchas de cal
ou na beira do rio,
vimos erguer-se das nossas mãos calosas a realização mais lírica de todos os tempos.
Os nossos fatos estavam manchados de óleo, companheira,
e as nossas botas carregadas de barro.
Mas que interessava o óleo, companheira, e o barro,
se os teus olhos estavam imensamente rasgados para horizontes desconhecidos
como duas estrelas projectadas na noite?
Depois veio a traição dos aeroplanos e das máquinas inimagináveis,
a traição dos corpos agarrados à carne machucada,
a traição da cabeça partindo para sonhos impossíveis;
e ficou só o óleo e o barro,
as manchas de cal e o rio abandonado...
e as nossas lágrimas impossíveis de estancar.



3
Um velho sábio de olhos transparentes,
que nos pousava a mão no ombro com ternura,
depois de ver nos livros e nos tubos de ensaio
o destino dos homens,
queimou os livros todos e afogou-se no rio.
E nunca mais ninguém nos pousou a mão no ombro
com a ternura do sábio que se afogou no rio.

4 
Uma rapariga loira que vendia laranjas
e enchia as ruas com a sua voz túmida de sol,
desapareceu.
E as ruas ficaram para sempre silenciosas.
E as ruas ficaram para sempre sem sol







5
Multiplicam-se os meninos nascidos nas palhas
e os vultos sombrios das docas sombrias
e as mulheres tristes das ruelas de lâmpada vermelha
e as raparigas de olhos desiludidos
e os velhos que não tiveram mocidade.
A camponesa continua de pé no campo, com as saias ao vento.
Mas já não tem os braços vergados pelas espigas
porque as searas ficaram por ceifar.
Os aeroplanos enevoam o céu.
E as máquinas inimagináveis trabalham, trabalham.
Mas ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
Mas ficou só um campo coalhado de mortos.

Ah! Venham!
De todos os campos, de todas as cidades, de todos os portos, de todos os mares.
Venham.
Vamos dizer que não!

Mário Dionísio

(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Monday 27 July 2020

AVISO À NAVEGAÇÃO

Alto lá!
Aviso à navegação!
Eu não morri:
Estou aqui
na ilha sem nome,
sem latitude nem longitude,
perdida nos mapas,
perdida no mar Tenebroso!

Sim, eu,
o perigo para a navegação!,
o dos saques e das abordagens,
o capitão da fragata
cem vezes torpedeada,
cem vezes afundada,
mas sempre ressuscitada!

Eu que aportei
com os porões inundados,
as torres desmoronadas,
os mastros e os lemes quebrados
- mas aportei!

E não espereis de mim a paz...

Aviso à navegação:
Não espereis de mim a paz!

Que quanto mais me afundo
maior é a minha ânsia de salvar-me!
Que quanto mais um golpe me decepa
maior é a minha força de lutar!

Não espereis de mim a Paz!

Que na guerra
só conheço dois destinos:
ou vencer - ai dos vencidos! -
ou morrer sob os escombros
da luta que alevantei!

- (foi jeito que me ficou:
não me sei desinteressar
do jogo que me jogar.)

Não espereis de mim a paz,
aviso à navegação!

Não espereis de mim a paz
que vos não sei perdoar!

Joaquim Namorado

Friday 24 July 2020

MANIFESTO À TRIPULAÇÃO

O mar é fundo, as ondas são altas, o lenho é podre!
As estrelas esconderam-se por detrás das nuvens negras e sinistras.
Neblinas densas e fundas separam de nossos olhos a terra angustiosamente
sonhada! (os sinais dos faroleiros devorou-os qualquer monstro das trevas).
Mas nossos olhos de Esperança, nossos olhos confiantes, podem distinguir
o porto!
Que não adormeçam os músculos dos nossos braços na modorra das
calmarias! Que não afrouxe este espírito de guerra que nos trouxe!
E chegaremos.
Grandes escolhos?!... Grandes medos?!... Grandes tormentos?!...
Maior grandeza de sacrifício, maior força de nos excedermos, maior sangue
frio na manobra! E chegaremos.
Nosso rumo que o tracem as proas, e saibamos ser o que de nós se exige!
Nosso destino que o escrevam as mãos de quem souber ganhá-lo.
Viemos ao mundo sós e nus, nada temos a perder - sorte foi que nos
encontrássemos - e temos um mundo a conquistar!
Se o nosso direito de viver exige que sejamos vencedores, saibamos sê-lo
com grandeza!
Se nos pedirem tributo, o tributo é o sangue!
Se nos pedirem preço, o preço é a vida!

Joaquim Namorado

Tuesday 21 July 2020

Manifesto

Abre as janelas para a rua,
anda a vida lá fora...
Põe moldura nos sonhos impossíveis,
pendura-os nos pregos das paredes
- são decorativos!

Deixa que o sol rasgue as vidraças,
e vem correr a aventura
de cada instante
na vida de cada hora:
que a vida só vale
quando tem
este sabor de conquista!

Deixa os suspiros profundos
e parte a guitarra mágica que te deixou D. Juan...
deixa-me esse ar de sombra de trapista!
Vem para a rua, para o sol, para a chuva!
Ama sem literatura, como um homem!
Deixa dormir os papiros
na meditação das múmias faraónicas.
- A vida é a única lição!

Joaquim Namorado

Saturday 18 July 2020

Prometeu


Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!

Joaquim Namorado

Wednesday 15 July 2020

TRÊS POEMAS DE HEROÍSMO

1 
Eu sou daqueles que gritam
«morrer, sim, mas devagar!»
e fico
até ao fim da batalha...

Venham golpes sobre golpes!
Que eu morda o pó das derrotas...
Ficará sempre de pé
minha luta alevantada.

2 
Crucifiquem-me nas cruzes dos calvários,
deitem-me chumbo nas veias,
façam-me a pele em tiras,
tirem-me os olhos com navalhas
e dêem-me a morte lenta
do maior dos suplícios...

A Morte não encontrará em mim
nem desespero nem mágoa:
HEROÍSMO É VIVER...

3 
Eu mesmo sou o campo de batalha!

Frente a frente os dois irmãos inimigos:
um, o que me prende ao que ontem fui;
outro, o que será amanhã.

Minha alma está cavada de trincheiras!

Sempre o mesmo combate,
desde o início...

Joaquim Namorado

Sunday 12 July 2020

Cantar de Amigo

Eu e tu: milhões!...
Entre nós - perto ou longe -
entre nós, rios e mares,
montanhas e cordilheiras...

Eu e tu, perdidos
nesta distância sem fim do desconhecido;
eu e tu, unidos
para além das cordilheiras,
por sobre mares de diferença,
na comunhão de nossos destinos confundidos
- a minha e a tua vida
correndo para a confluência
num mesmo Norte.

Eu e tu, amassados
nesta angústia que é de nós,
minha e tua,
e mais do que de nós...
Eu e tu,
carne do mesmo corpo,
amor do mesmo amor,
sangue do mesmo sacrifício!...

Eu e tu,
elos da mesma cadeia,
grãos da mesma seara,
pedras da mesma muralha!...
Eu e tu, que não sei quem és,
que não sabes quem sou:
Eu e tu, Amigo! Milhões!

Joaquim Namorado

Thursday 9 July 2020

Exortação

Ó mocidade, vai para os estádios,
vai para as oficinas cantando!
Faz da tua vida luta, amor e alegria.
Que o sol doire a tua vida heróica
e se molde no teu corpo forte!

Ó mocidade, vai para os estádios,
teu corpo ágil vibrando
no esforço viril de se ultrapassar...
Rosas, na tua fronte nunca murchas.
Clara manhã abrindo a tua alma.
Ó mocidade, vai cantando!

Ó mocidade das oficinas,
aço e sangue soldados no teu corpo,
carne e cimento de novas arquitecturas,
ergue cantando o teu poema heróico!

Armas do teu combate:
alavancas, martelos e bigornas,
serras, puas, escopros!
Ó mocidade, parte cantando!

Vai cantando bem alto
o «querer» do teu destino!
Parte alegremente para a conquista
do mundo...
Serena, firma, confiante.
Ombro com ombro, peito com peito,
braço com braço,
parte, ó mocidade, cantando!

À conquista do teu destino
parte cantando!

Joaquim Namorado

Monday 6 July 2020

Pilotagem


Só os corações fortes se fizeram para o voo.
Nenhuma audácia é proibida ao homem...
Um medo ancestral dorme fundo,
vem-me na carne sempre provisória:
bem nossa, porém, só esta ânsia maior
de domínio.
Homem quer dizer: conquistador.

Joaquim Namorado

Friday 3 July 2020

POEMA DA MANHÃ CLARA

O grito das sirenes
rasgou o silêncio da manhã clara...
E foi como se a vida acordasse
na cidade adormecida:
as ruas encheram-se de movimento,
o céu encheu-se de asas
e o rio de velas!

As ruas encheram-se de movimento,
do vai-vem dos que vão para as oficinas,
dos pregões cantados nas esquinas,
do estrépito dos motores...
E nas fábricas,
as máquinas,
monstros de potências adormecidas,
foram arrancadas à sua inércia,
que se desmancha num espreguiçamento,
e se desfaz, depois,
no ritmo acelerado dos volantes.

O céu encheu-se de asas
e o rio de velas...
Nos portos,
atracam os navios vindos de longe,
de todos os horizontes,
entre os guinchos das roldanas
e a vozearia das tripulações à manobra;
e os guindastes giram lentamente
- gigantes de braços de aço
levam e trazem
com ar despreocupado,
os fardos mais pesados
aos porões;
os vapores de hélices potentes
deixam lentamente os cais,
e, manchando o céu
com o fumo pesado das chaminés,
perdem-se no nevoeiro da barra...

O grito das sirenes
rasgou o silêncio da manhã clara...
um ritmo novo
acordou a cidade adormecida.
Ritmo que se grita
nas alavancas que se movem,
nos êmbolos que chocam,
nos martelos que retinem;
ritmo mecânico, compassado,
das hélices dos motores;
ritmo vertiginoso, alucinante,
dominante, dos volantes;
ritmo novo dos corações,
na canção ardente do trabalho!
Ritmo de máquinas,
de alavancas e de braços.
- Ritmo novo da manhã clara!

Joaquim Namorado

Wednesday 1 July 2020

CONDUTORES DE MÁQUINAS


Contacto:
os tempos do motor
transpiram a sua segurança de máquinas
- solda-se o braço no volante preso
e bate o coração no mesmo passo.

Olho estes homens condutores de máquinas
na simples ganga azul
do seu trabalho,
e é uma raça nova que aos meus olhos nasce
- nervos e eixos, êmbolos e veias,
são o mesmo aço.

Joaquim Namorado

Tuesday 30 June 2020

FÁBRICA

Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto frio e liso dos metais,
a segura confiança
do saber-se que é assim e assim exactamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura,
como na cabeça do engenheiro.
Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:
é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento,
como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.
Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;
as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.

Joaquim Namorado

Saturday 27 June 2020

O ANDAIME


O andaime era alto,
alto...
(e uma viga estava mal segura...)

Os ladrilhos vermelhos
saltavam de mão em mão
como peixes voadores...;
os aprendizes traziam e levavam
taboleiros de cal;
e os muros cresciam
e abriam-se janelas
e os andares subiam.

O andaime era cada vez mais alto,
mais alto...
(e aquela viga estava mal segura...)
Os operários cantavam - o ritmo dos braços,
o bater dos martelos, era o ritmo da canção
- cantavam e riam...

Em volta, a Natureza representava a comédia
da mais inteira confiança:
o sol baixava num céu calmo, infinitamente azul,
um céu de charco;
da rua subia o marasmo destas horas
em que os burgueses dormem a sesta
e as moscas zumbem nas vitrines;
a canção era a mesma de sempre:
o mesmo bater dos martelos que enchia o silêncio;
um bando de pombas viera poisar,
confiadamente,
no cimo alto das estacas...
(e uma viga estava mal segura...)

Os operários cantavam,
cantavam e riam;
nada lhes dizia
da ameaça que pesava
- em toda a parte a traição do encoberto...

E o andaime era alto...
tão alto que,
quando ele caiu, como uma ave ferida,
o seu corpo ficou desenhado a sangue na calçada,
que era um outro santo-sudário.
Então a canção parou em todas as bocas
e mais as roldanas e o bater dos martelos;
por um momento
tudo parou em redor do mesmo espanto.
Mas a vida continuou
e a Natureza afivelou de novo
a máscara da cega confiança.

- Depois levaram o corpo para a morgue
e lavaram com baldes de água
o sangue
que secara na calçada e tinha
um aspecto repugnante.

A casa é alta,
alta...
tem ascensor, água encanada e uma mercearia
no rés-do-chão;
as andorinhas fizeram ninhos nos beirais;
das varandas debruçam-se cravos e malvas;
uma toalha que enxuga numa janela
é uma bandeira de paz;
a menina loira, do terceiro andar, esquerdo,
namora e vai casar...

Todos os dias
vem um caos destes nos jornais...

Joaquim Namorado

Wednesday 24 June 2020

ROMANCE DE FEDERICO


I 
Num pueblo de Espanha
la Barraca se levanta:
Num pueblo de Espanha,
numa praça de Castela...

Mas não se ouvem poemas,
nem guitarras, nem canções
- que la Barraca é deserta...
Morreram vozes e risos
(no chão, com as folhas arrancadas,
D. Quijote de Cervantes)
e calaram-se as canções,
geladas no oiro frio
das cordas dos violões
- que la Barraca está deserta
como uma alma... deserta.

Correi ventos de Espanha!
Chamai vozes de Espanha!
Mirad olhos de Espanha!
- Aonde está Federico?

Chorai corações de Espanha!

- No acampamento cigano
uma virgem desmaiou:
romance da «pena negra»
a feiticeira agoirou.
Romance da «pena negra»,
romance da negra sorte,
com uma bala na fronte
e outra no coração
morto para sempre ficou...
(No veludo dos estojos,
as cordas da guitarras estalaram
com um ai grave e profundo...)
as mãos estendidas, sem raiva,
os olhos cheios de terra,
morto ficou.

Chorai corações de Espanha!

Com os olhos cheios de terra,
sob o céu de su Granada,
morto ficou...

Cavalos negros da noite
encobriram as estrelas.
De Cádis até Navarra,
de Badajoz ao Levante.

II 
A noite desceu sobre o corpo da Espanha.
A noite das águias carniceiras
desceu sobre o corpo da Espanha...

Ferem o chão fúrias soltas
- ruínas foram cidades e vilas,
escolas, lares, catedrais;
incêndios foram celeiros e searas;
ódio foi amor,
lágrimas foram riso...
A noite poisou seus dedos de treva
no coração da Espanha...

Espanha,
em teus braços de Mãe,
em teus braços de terra,
apodrecem os corpos
de teus filhos inocentes...
Espanha,
na sombra que desceu
as feridas dos cadáveres abrem-se
como flores roxas de agonia...

Espanha,
noites de serenata,
sob os balcões floridos, nunca mais:
que os corações não batem já para o amor,
só para o aço dos punhais...

Espanha,
Carmen, cigana,
corpo de bronze, olhos de lume,
não mais amante...
Espanha,
na noite das catedrais,
correm lágrimas de marfim
pelas faces dos crucificados
- na tua face
são de sangue, Espanha!
Espanha,
no silêncio das catedrais
sorrisos seráficos da Virgem
- na tua boca
sangue e fel, Espanha!

Joaquim Namorado

Sunday 21 June 2020

A MÁQUINA DE FAZER NOTAS FALSAS


A máquina de fazer notas falsas
era uma máquina tão falsa
que nem notas fazia...

Mas trabalhava perfeito...
dentre dois rolos saíam,
em vez de notas de mil,
folhas de velhos jornais

Com notícias falsas.

Joaquim Namorado

Thursday 18 June 2020

PORT-WINE


O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova Iorque e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bares.

O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.

Nas sobremesas finas as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.

As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos do cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos..

Em Londres, os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.

O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
liberta-te, meu povo! - ou morre.

Joaquim Namorado

Tuesday 16 June 2020

Pele


Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele


David Mourão-Ferreira

Monday 15 June 2020

ÁFRICA


África do Congo,
África distante do Congo
distante...
África apertada, cingida,
no périplo do meu abraço:
nó dos meus pulsos
fechando o teu corpo negro
aberto para a minha ânsia.
Descoberta do acaso
das minhas navegações:
África perdida nos «cabarets»
com o teu riso branco de espanto
das civilizações.

Ó minha negra,
escrava humilde e fiel,
encontro do meu destino pirata...

Floresta nunca pisada;
virgindade das florestas virgens rasgada;
rosa desfolhada
como a tua boca no riso branco,
como o teu destino branco
na lotaria da vida.

Cadeia dos meus sentidos,
febre da minha aventura...

Roubei os diamantes do teu seio,
o oiro das tuas pulseiras,
e negociei tudo nas bancas!
Vendi as tuas terras
e os teus rebanhos,
derrubei as tuas florestas
e arrasei as tuas aldeias,
despovoei os teus reinos,
trocei as tuas crenças...

Veneno europeu...

Fiz dos teus filhos escravos
e, senhor do meu destino,
amarrei-te à minha sorte.

Veneno europeu...

Teu corpo de mapas,
neste leito do mundo,
quantas vezes o fiz meu...

Ris com esse riso de cartaz:
branco,
límpido,
fixo.
Ris.

O jazz toca um desses blues
- e o negro do cornetim
rasga o silêncio
com o seu grito de faca.

O eco fica bailando
no teu corpo
como o ramo das palmeiras...
das palmeiras lá do Congo.
O som cavo das marimbas
bate o compasso no fundo da música...

África civilizada,
vestida à moda das nações,
fazendo ouvir nos boulevards
a tua música de recorte primitivo.

Outros batuques distantes,
ouros batuques mais distantes
que me vêm no sangue
- o bater das marimbas foi que o acordou.

A virgem loira desfalece
nos barços de quem dançou.
A saxofone, do espanto
dos teus olhos, se entornou...

E o teu riso de cartaz,
branco
como marfim de amuletos,
brilha nos acordes do piano.

Capa de magazine:
A luz correu no teu corpo
que brilhou como uma lança...
Já não há lanças em África...
dança,
dança...
Já não há lanças em África,
já não há guerra,
já não há guerra...
- batuque de lanças quebradas,
batuques do Congo já não são de guerra!
Batuques de lanças quebradas:
batuques de guerra... não!

Nos cofres fortes do Cabo
o teu suor corre em libras...
- Yes, whisky and soda.

Nos cofres fortes do Cabo
o teu suor corre em libras:
África da colonização!

Joaquim Namorado