Tuesday 30 November 2021

Cantiga do ódio

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração:
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

Carlos de Oliveira

Saturday 27 November 2021

Diálogo quase poesia

 Tu sabes, mãe - disse o pássaro - os aviões
também voam.
- Voam mas não têm coração. Engolem homens
aos milhares.
- Para quê?
- Para que o voo seja pago.
- Voo pago? Como pode ser pago e ser voo?
- É por isso que os aviões não cantam. Só nós
cantamos
porque ninguém pode comprar o nosso voo.

Sidónio Muralha

Wednesday 24 November 2021

Versos sobre o passaporte soviético

Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis».
Menos aquele...

Passando ao longo
dos compartimentos
e cabinas,
um funcionário,
e que polido,
avança.
Cada um apresenta o passaporte,
e eu,
dou
o meu
pequeno bilhete escarlate.

Para alguns passaportes
há sorrisos,
para outros -
vontade de os cuspir.
Têm, por exemplo,
o direito ao respeito
os passaportes
com o leão inglês
em dois lugares.
Devorando
com os olhos o grande personagem,
fazendo saudações e curvaturas
pega-se,
como numa gorjeta,
no passaporte
de um americano.
Para o polaco
há o olhar
da cabra frente ao edital.
Para o polaco -
uma fronte enrugada
num elefantismo policial -
de onde vem este
e que são
estas inovações na Geografia?
Mas é sem voltar
a abóbora-cabeça,
sem experimentar
qualquer emoção forte,
que se aceita
sem pestanejar
os papéis do dinamarquês
e dos suecos
de todas
as espécies.

Súbito,
como lambida
pelo fogo,
a boca
do cavalheiro
se torce.
O senhor
funcionário
tocou
a púrpura deste meu passaporte.
Toca nele
como se fosse bomba,
toca nele
como se fosse ouriço,
toca nele
como em cobra cascavel,
de vinte dentes,
de dois metros e mais de comprimento.
Cúmplice
piscou
o olho do carregador
que está pronto
a carregar, de graça as minhas malas.
O agente
contempla o chui,
e o chui
o agente.

Com que volúpia
me teria,
a espécie policíaca,
batido, crucificado,
porque
tenho nas mãos,
trazendo foice
e trazendo martelo,
o passaporte soviético.

Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis»,
menos aquele...

Das minhas
profundas algibeiras tirarei
o atestado
deste enorme viático.
Leiam-no bem,
Invejem -
eu
sou um cidadão
da União Soviética.

Maiakovski
 

Sunday 21 November 2021

Carta de um contratado

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloua
dos teus olhos doces como maconde
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por hí...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos dias na capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o kilombo
outra a ela não tivesse merecimento.

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajús e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos do nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é
meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh desespero! - não sei escrever também!

António Jacinto

Thursday 18 November 2021

Havemos de voltar

Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

Às nossas terras
vermelhas do café
brancas do algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente.

Agostinho Neto
(Cadeia do Aljube, Outubro de 1960)

Monday 15 November 2021

A um Papa

Poucos dias antes que morresses, a morte
tinha posto os olhos num teu coetâneo:
aos vinte anos, eras estudante,
ele servente,
tu, nobre, rico,
ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma que se tornava assim nova.

Vi os seus despojos, pobre Zuccheto.
Girava de noite, bêbedo, em volta dos Mercados,
e o eléctrico de São Paulo atropelou-o
e arrastou uma parte pelas linhas entre os plátanos:
algum tempo ali ficou, sob as rodas:
alguma gente se reuniu em torno a olhá-lo
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque tu existes,
um velho polícia, desleixado como um «guapo»,
gritava a quem se encostava muito: «Larguem-lhe a braguilha!»
Depois veio o automóvel dum hospital a carregá-lo:
a gente dispersou, ficou qualquer frangalho aqui e ali,
e a dona de um bar nocturno,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto acabara sob um eléctrico, finara-se.
Poucos dias depois acabavas tu.

Zuccheto era um
da tua grande grei romana e humana,
um pobre bebedola, sem família e sem leito,
que girava de noite, vivendo quem sabe como.
Tu não sabias nada: como não sabias nada
de outros tantos e tantos cristos como ele.
Talvez seja feroz ao perguntar-te por que razão
a gente como Zucchetto era indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem numa poeira antiga, em lama de outra época.
Precisamente não longe donde viveste,
à vista da bela cúpula de S. Pedro,
há um destes lugares, o Gelsomino...
Um monte talhado ao meio por uma mina e, em baixo,
entre pedras e uma fila de novos prédios,
um grupo de míseras construções, não casas mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto teu, uma palavra tua,
para que aqueles teus filhos tivessem uma casa:
tu não fizeste um gesto, não disseste uma palavra.
Não te pedíamos que perdoasses a Marx! Uma onda
imensa que se refracta por milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas na tua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
perante os teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu o sabias: pecar não significa fazer mal:
não fazer bem, isso significa pecar.
Quanto bem podias fazer! E não o fizeste:
não houve um pecador maior do que tu.

Pier Paolo Pasolini

Friday 12 November 2021

Tempo de rusgas

I

Era tempo de rusgas.
Havia ordens terminantes
mas era preciso não andar desarmado.

A revista nas estradas era intensa.

Bem armado
passei sem licença de porte de arma
minha mão comprimindo no bolso
as coronhas de 3 poemas.

II

Os que não são poetas
ignoram o que é estarmos em reclusão
armados de conluios até aos dentes.

E na sua imprevidência
não sabem que um poema detido
mesmo de cor na cabeça
também é uma forma
dialéctica
de lhes armar o cerco.

III

Sou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.
A raça dos homens ao natural
que amam o amor sem as mil
fictícias boas maneiras
burguesas.

Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.

Raça de revolucionários cheios de defeitos
e apenas uma pequeníssima qualidade:
Mesmo inseridos em molduras de alvenaria
com uma força de segurança no exterior
não compramos o Amor
e não nos vendemos!


José Craveirinha
(In Cela 1)

Tuesday 9 November 2021

Um Homem nunca chora

Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!

José Craveirinha
(In Cela 1)

Saturday 6 November 2021

Uma certa maneira de cantar

Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho
com egoísmo de fonte.

Quando sente voos na garganta
desce ao caminho
da solidão do seu monte,
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária
outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão -
para explicar a reforma agrária
no Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar.

José Gomes Ferreira

Wednesday 3 November 2021

Infância

Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!

Ary dos Santos

Monday 1 November 2021

Vossos nomes

No chumbo, no terror, na morte, com sangue escrevo,
Alfredo e Catarina,
vossos nomes.

Na pedra, no ácido, neste branco muro escrevo,
Humberto e Militão,
vossos nomes.

Nas trevas, no medo, na raíz da aurora, escrevo,
Maria e Lourenço,
vossos nomes.

No sonho, nos ventos, na flor do trigo escrevo,
Pedro e Guilherme,
vossos nomes.

No aço das duras tarefas, no relâmpago escrevo,
Álvaro e Rui,
vossos nomes.

No amor, na cólera, na fome desta ave escrevo,
Virgínia e António,
vossos nomes.

No sol que levamos, na verde esperança escrevo,
Paula e Dinis,
vossos nomes.

No riso, nas lágrimas, no coração da pátria escrevo
e semeio
vosso nomes.

No ventre em flor da minha amada semeio, escrevo
e multiplico
vossos nomes.

Papiniano Carlos