Aqui a pedra cai com outro som
porque a água é mais densa, porque o fundo
tem assento e firmeza sobre os arcos
da fornalha da terra.
Aqui o sol reflecte e tange à superfície
uma rubra canção que o vento espalha.
Nus, na margem, convulsos acendemos
a fogueira mais alta.
Nascem aves no céu, brilham os peixes,
toda a sombra se foi, que mais nos falta?
José Saramago
Sunday 30 January 2011
AQUI A PEDRA CAI...
Thursday 27 January 2011
Passo num gesto...
Passo num gesto que eu sei
deste mundo agoniado para o espaço
onde sou quanto serei
no tempo que sobra escasso
No outro mundo sou rei
e o meu rosto de cristal e puro aço
é o espelho que forjei
com suor pena e cansaço
E se o mundo que deixei
tem as marcas desenhadas do meu passo
são baralhas que enredei
são teias de vidro baço
Tantas provas cá terei
tantas vezes do pescoço solto o laço
se me sagraram em rei
aceitem a lei que eu faço
Vem a ser que o homem novo
está na verdade que movo
José Saramago
Monday 24 January 2011
O Beijo
Hoje, não sei porquê, mas o vento teve um grande gesto de renúncia, e as árvores aceitaram a imobilidade. No entanto (e é bem que assim seja) obstinadamente uma viola organiza o espaço da solidão. Ficamos sabendo que as flores se alimentam na fértil humidade. É essa a verdade da saliva.
José Saramago
Friday 21 January 2011
Parábola
Num caroço de mentiras
trouxe a verdade escondida
pus o caroço na terra
nasceu verdade fingida
Não faltou água dos olhos
ao viço desta palmeira
que frutos daria o ramo
de tão ruim sementeira
Se do sal que nela morde
um sabor amargo sobra
é coisa que vai no rasto
que ficou depois da cobra
Lá em cima onde a verdade
tem a franqueza do vento
negam ninhos as raízes
porque é outro o seu sustento
E o tronco tão levantado
sobre o caroço partido
não é tronco mas é homem
alto firme e decidido
José Saramago
Tuesday 18 January 2011
TENHO UM IRMÃO SIAMÊS...
Tenho um irmão siamês
(Há quem tenha, mas o meu,
ligado à sola dos pés,
anda espalhado no chão,
todo mordido de raiva
de ser mais raso do que eu.)
Tenho um irmão siamês
(É a sombra, cão rafeiro,
vai à frente ou de viés,
conforme a luz e a feição,
de modo que sempre caiba
nos limites do ponteiro.)
Tenho um irmão siamês
(Minha morte antecipada,
já deitada,
à espera da minha vez.)
José Saramago
Saturday 15 January 2011
Paisagem com figuras
Não há muito que ver nesta paisagem:
campinas alagadas, ramos nus
de choupos e salgueiros eriçados:
raízes descobertas que trocaram
o natural do chão pelo céu vazio.
Aqui damos as mãos e vamos indo
a romper nevoeiros.
Jardim do paraíso, obra nossa,
somos nós os primeiros.
José Saramago
Wednesday 12 January 2011
Ao inferno, senhores...
lá onde não fogueiras, mas desertos.
Vinde todos comigo, irmãos ou inimigos,
a ver se povoamos esta ausência
chamada solidão.
E tu, meu claro amor, nova palavra,
que a tua mão não deixe a minha mão.
José Saramago
Sunday 9 January 2011
ALEGRIA
Já ouço gritos ao longe
já vem a voz do amor
Ó alegria do corpo
Ó esquecimento da dor
Já os ventos recolheram
já o Verão se nos oferece
Quantos frutos quantas fontes
Mais o Sol que nos aquece
Já colho jasmins e nardos
já tenho colares de rosas
E danço no meio da estrada
as danças prodigiosas
Já os sorrisos se dão
já se dão as voltas todas
Ó certeza ó certeza
Ó alegria das bodas
José Saramago
Thursday 6 January 2011
Provavelmente
não basta ao coração, nem o exalta:
provavelmente, o traço da fronteira
contra nós o riscámos, amputados.
Que rosto se desenha e se promete?
Que viagem esquecida nos aguarda?
São asas (que só duas fazem voo),
ou solitário arder da labareda?
José Saramago
Monday 3 January 2011
Jogo do lenço
Trago no bolso do peito
um lenço de seda fina,
dobrado de certo jeito.
Não sei quem tanto lhe ensina
que quanto faz é bem feito.
Acena nas despedidas,
quando a voz já lá não chega
por distâncias desmedidas.
Depois, no bolso aconchega
as saudades permitidas.
Também o suor salgado,
às vezes, enxuto a medo,
que o lenço é mal empregado.
E quando me feri um dedo,
com ele o trouxe ligado.
Nunca mais chegava ao fim
se as graças todas dissesse
deste meu lenço e de mim,
mas uma coisa acontece
de que não sei porque sim:
Quando os meus olhos molhados
pedem auxílio do lenço,
são pedidos escusados.
E é bem por isso que penso
que os meus olhos, se molhados,
só se enxugam no teu lenço.
José Saramago
Saturday 1 January 2011
BARALHO
Lanço na mesa as cartas de jogar:
os amores de cartão e as espadas,
os losangos vermelhos de ouro falso,
a trilobada folha que ameaça.
Caso e descaso as damas e os valetes.
Andam os reis pasmados nesta farsa.
E quando conto os pontos da derrota,
sai-me de lá a rir, como perdido,
na figura do bobo o meu retrato.
José Saramago