Thursday 30 July 2020

NÃO


1
Venham todos os meninos nascidos nas palhas
duma mãe camponesa de braços vergados aos molhos de espigas
e dum pai carpinteiro.
Venham todos os vultos das docas sombrias
e todas as mulheres das ruelas de lâmpada vermelha.
Venham todos os moços de braços inúteis
e todas as raparigas de olhos desiludidos
e todos os velhos que não tiveram mocidade.
Venham.
Vamos gritar que não!
Dos nosso braços levantados para regiões desconhecidas,
para multidões de estrelas,
nasceram aeroplanos.
Dos nosso braços abertos para abraçar a terra,
nasceram máquinas inimagináveis.
Mas as máquinas traíram.
E os aeroplanos traíram.
E ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
E ficou só um campo coalhado de mortos.
Venham.
Vamos dizer que não!
O sopro de amor que chicoteou as veias
estendeu-nos os braços para novas ferramentas,
para a construção imensa da Cidade Nova.
Mas o corpo ficou-nos agarrado ao braço pegajoso da carne machucada.
E a cabeça desligou-se para sonhos impossíveis.

2
Nos intervalos do almoço,
sentados nos andaimes cheios de manchas de cal
ou na beira do rio,
vimos erguer-se das nossas mãos calosas a realização mais lírica de todos os tempos.
Os nossos fatos estavam manchados de óleo, companheira,
e as nossas botas carregadas de barro.
Mas que interessava o óleo, companheira, e o barro,
se os teus olhos estavam imensamente rasgados para horizontes desconhecidos
como duas estrelas projectadas na noite?
Depois veio a traição dos aeroplanos e das máquinas inimagináveis,
a traição dos corpos agarrados à carne machucada,
a traição da cabeça partindo para sonhos impossíveis;
e ficou só o óleo e o barro,
as manchas de cal e o rio abandonado...
e as nossas lágrimas impossíveis de estancar.



3
Um velho sábio de olhos transparentes,
que nos pousava a mão no ombro com ternura,
depois de ver nos livros e nos tubos de ensaio
o destino dos homens,
queimou os livros todos e afogou-se no rio.
E nunca mais ninguém nos pousou a mão no ombro
com a ternura do sábio que se afogou no rio.

4 
Uma rapariga loira que vendia laranjas
e enchia as ruas com a sua voz túmida de sol,
desapareceu.
E as ruas ficaram para sempre silenciosas.
E as ruas ficaram para sempre sem sol







5
Multiplicam-se os meninos nascidos nas palhas
e os vultos sombrios das docas sombrias
e as mulheres tristes das ruelas de lâmpada vermelha
e as raparigas de olhos desiludidos
e os velhos que não tiveram mocidade.
A camponesa continua de pé no campo, com as saias ao vento.
Mas já não tem os braços vergados pelas espigas
porque as searas ficaram por ceifar.
Os aeroplanos enevoam o céu.
E as máquinas inimagináveis trabalham, trabalham.
Mas ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
Mas ficou só um campo coalhado de mortos.

Ah! Venham!
De todos os campos, de todas as cidades, de todos os portos, de todos os mares.
Venham.
Vamos dizer que não!

Mário Dionísio

(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Monday 27 July 2020

AVISO À NAVEGAÇÃO

Alto lá!
Aviso à navegação!
Eu não morri:
Estou aqui
na ilha sem nome,
sem latitude nem longitude,
perdida nos mapas,
perdida no mar Tenebroso!

Sim, eu,
o perigo para a navegação!,
o dos saques e das abordagens,
o capitão da fragata
cem vezes torpedeada,
cem vezes afundada,
mas sempre ressuscitada!

Eu que aportei
com os porões inundados,
as torres desmoronadas,
os mastros e os lemes quebrados
- mas aportei!

E não espereis de mim a paz...

Aviso à navegação:
Não espereis de mim a paz!

Que quanto mais me afundo
maior é a minha ânsia de salvar-me!
Que quanto mais um golpe me decepa
maior é a minha força de lutar!

Não espereis de mim a Paz!

Que na guerra
só conheço dois destinos:
ou vencer - ai dos vencidos! -
ou morrer sob os escombros
da luta que alevantei!

- (foi jeito que me ficou:
não me sei desinteressar
do jogo que me jogar.)

Não espereis de mim a paz,
aviso à navegação!

Não espereis de mim a paz
que vos não sei perdoar!

Joaquim Namorado

Friday 24 July 2020

MANIFESTO À TRIPULAÇÃO

O mar é fundo, as ondas são altas, o lenho é podre!
As estrelas esconderam-se por detrás das nuvens negras e sinistras.
Neblinas densas e fundas separam de nossos olhos a terra angustiosamente
sonhada! (os sinais dos faroleiros devorou-os qualquer monstro das trevas).
Mas nossos olhos de Esperança, nossos olhos confiantes, podem distinguir
o porto!
Que não adormeçam os músculos dos nossos braços na modorra das
calmarias! Que não afrouxe este espírito de guerra que nos trouxe!
E chegaremos.
Grandes escolhos?!... Grandes medos?!... Grandes tormentos?!...
Maior grandeza de sacrifício, maior força de nos excedermos, maior sangue
frio na manobra! E chegaremos.
Nosso rumo que o tracem as proas, e saibamos ser o que de nós se exige!
Nosso destino que o escrevam as mãos de quem souber ganhá-lo.
Viemos ao mundo sós e nus, nada temos a perder - sorte foi que nos
encontrássemos - e temos um mundo a conquistar!
Se o nosso direito de viver exige que sejamos vencedores, saibamos sê-lo
com grandeza!
Se nos pedirem tributo, o tributo é o sangue!
Se nos pedirem preço, o preço é a vida!

Joaquim Namorado

Tuesday 21 July 2020

Manifesto

Abre as janelas para a rua,
anda a vida lá fora...
Põe moldura nos sonhos impossíveis,
pendura-os nos pregos das paredes
- são decorativos!

Deixa que o sol rasgue as vidraças,
e vem correr a aventura
de cada instante
na vida de cada hora:
que a vida só vale
quando tem
este sabor de conquista!

Deixa os suspiros profundos
e parte a guitarra mágica que te deixou D. Juan...
deixa-me esse ar de sombra de trapista!
Vem para a rua, para o sol, para a chuva!
Ama sem literatura, como um homem!
Deixa dormir os papiros
na meditação das múmias faraónicas.
- A vida é a única lição!

Joaquim Namorado

Saturday 18 July 2020

Prometeu


Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!

Joaquim Namorado

Wednesday 15 July 2020

TRÊS POEMAS DE HEROÍSMO

1 
Eu sou daqueles que gritam
«morrer, sim, mas devagar!»
e fico
até ao fim da batalha...

Venham golpes sobre golpes!
Que eu morda o pó das derrotas...
Ficará sempre de pé
minha luta alevantada.

2 
Crucifiquem-me nas cruzes dos calvários,
deitem-me chumbo nas veias,
façam-me a pele em tiras,
tirem-me os olhos com navalhas
e dêem-me a morte lenta
do maior dos suplícios...

A Morte não encontrará em mim
nem desespero nem mágoa:
HEROÍSMO É VIVER...

3 
Eu mesmo sou o campo de batalha!

Frente a frente os dois irmãos inimigos:
um, o que me prende ao que ontem fui;
outro, o que será amanhã.

Minha alma está cavada de trincheiras!

Sempre o mesmo combate,
desde o início...

Joaquim Namorado

Sunday 12 July 2020

Cantar de Amigo

Eu e tu: milhões!...
Entre nós - perto ou longe -
entre nós, rios e mares,
montanhas e cordilheiras...

Eu e tu, perdidos
nesta distância sem fim do desconhecido;
eu e tu, unidos
para além das cordilheiras,
por sobre mares de diferença,
na comunhão de nossos destinos confundidos
- a minha e a tua vida
correndo para a confluência
num mesmo Norte.

Eu e tu, amassados
nesta angústia que é de nós,
minha e tua,
e mais do que de nós...
Eu e tu,
carne do mesmo corpo,
amor do mesmo amor,
sangue do mesmo sacrifício!...

Eu e tu,
elos da mesma cadeia,
grãos da mesma seara,
pedras da mesma muralha!...
Eu e tu, que não sei quem és,
que não sabes quem sou:
Eu e tu, Amigo! Milhões!

Joaquim Namorado

Thursday 9 July 2020

Exortação

Ó mocidade, vai para os estádios,
vai para as oficinas cantando!
Faz da tua vida luta, amor e alegria.
Que o sol doire a tua vida heróica
e se molde no teu corpo forte!

Ó mocidade, vai para os estádios,
teu corpo ágil vibrando
no esforço viril de se ultrapassar...
Rosas, na tua fronte nunca murchas.
Clara manhã abrindo a tua alma.
Ó mocidade, vai cantando!

Ó mocidade das oficinas,
aço e sangue soldados no teu corpo,
carne e cimento de novas arquitecturas,
ergue cantando o teu poema heróico!

Armas do teu combate:
alavancas, martelos e bigornas,
serras, puas, escopros!
Ó mocidade, parte cantando!

Vai cantando bem alto
o «querer» do teu destino!
Parte alegremente para a conquista
do mundo...
Serena, firma, confiante.
Ombro com ombro, peito com peito,
braço com braço,
parte, ó mocidade, cantando!

À conquista do teu destino
parte cantando!

Joaquim Namorado

Monday 6 July 2020

Pilotagem


Só os corações fortes se fizeram para o voo.
Nenhuma audácia é proibida ao homem...
Um medo ancestral dorme fundo,
vem-me na carne sempre provisória:
bem nossa, porém, só esta ânsia maior
de domínio.
Homem quer dizer: conquistador.

Joaquim Namorado

Friday 3 July 2020

POEMA DA MANHÃ CLARA

O grito das sirenes
rasgou o silêncio da manhã clara...
E foi como se a vida acordasse
na cidade adormecida:
as ruas encheram-se de movimento,
o céu encheu-se de asas
e o rio de velas!

As ruas encheram-se de movimento,
do vai-vem dos que vão para as oficinas,
dos pregões cantados nas esquinas,
do estrépito dos motores...
E nas fábricas,
as máquinas,
monstros de potências adormecidas,
foram arrancadas à sua inércia,
que se desmancha num espreguiçamento,
e se desfaz, depois,
no ritmo acelerado dos volantes.

O céu encheu-se de asas
e o rio de velas...
Nos portos,
atracam os navios vindos de longe,
de todos os horizontes,
entre os guinchos das roldanas
e a vozearia das tripulações à manobra;
e os guindastes giram lentamente
- gigantes de braços de aço
levam e trazem
com ar despreocupado,
os fardos mais pesados
aos porões;
os vapores de hélices potentes
deixam lentamente os cais,
e, manchando o céu
com o fumo pesado das chaminés,
perdem-se no nevoeiro da barra...

O grito das sirenes
rasgou o silêncio da manhã clara...
um ritmo novo
acordou a cidade adormecida.
Ritmo que se grita
nas alavancas que se movem,
nos êmbolos que chocam,
nos martelos que retinem;
ritmo mecânico, compassado,
das hélices dos motores;
ritmo vertiginoso, alucinante,
dominante, dos volantes;
ritmo novo dos corações,
na canção ardente do trabalho!
Ritmo de máquinas,
de alavancas e de braços.
- Ritmo novo da manhã clara!

Joaquim Namorado

Wednesday 1 July 2020

CONDUTORES DE MÁQUINAS


Contacto:
os tempos do motor
transpiram a sua segurança de máquinas
- solda-se o braço no volante preso
e bate o coração no mesmo passo.

Olho estes homens condutores de máquinas
na simples ganga azul
do seu trabalho,
e é uma raça nova que aos meus olhos nasce
- nervos e eixos, êmbolos e veias,
são o mesmo aço.

Joaquim Namorado