Saturday 30 August 2014
O Medo
Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.
e a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
as minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.
serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?
Manuel António Pina
Wednesday 27 August 2014
COMBOIO AFRICANO
Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato
Grita e grita
quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou
Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assentam os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe
Grita e grita
quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou
Lento caricato e cruel
o comboio africano...
Agostinho Neto
Sunday 24 August 2014
Sonambulismo
tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
mas a nós que nos importa
ser manhã, meio-dia ou noite?!...
sonâmbula a vida decorre
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
enchem-se de títulos vibrantes os jornais
- mas tudo é tão longe...
passam homens por homens e não se conhecem:
boa tarde! bom dia!
cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
- sonambulismo apenas.
acorda!
ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!
acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!
ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente
Joaquim Namorado
Thursday 21 August 2014
MORRA O BISPO E MORRA O PAPA
Morra o bispo e morra o papa,
maila sua clerezia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram frades, morram freiras,
maila sua virgaria.
Ai rosas de sangue e leite,
que só terra bebia!
Morra o rei e morra o conde,
maila toda fidalguia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram meirinho e carrasco,
maila má judicaria.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra quem compra e quem vende,
maila toda a usuraria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram pais e morram filhos,
maila toda filharia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morram marido e mulher,
maila casamentaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra amigo, morra amante,
mailo amor que se perdia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra tudo, minha gente.
Vivam povo e rebeldia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Jorge de Sena
Monday 18 August 2014
Romance ingénuo de duas linhas paralelas
Duas linhas paralelas
muito paralelamente
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.
seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço
que ninguém sabe onde é
se podiam encontrar
falar e tomar café.
mas farta de andar sozinha
uma delas certo dia
voltou-se para a outra lina
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim...”
diz-lhe a outra: “nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
temos de ir devagarinho
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!”
não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada
pela calada, sem um grito
deita a mãozinha matreira
puxa para si o infinito.
e com ele ali à frente
as duas a murmurar
olharam-se docemente
e sem fazerem perguntas
puseram-se a namorar
seguiram as duas juntas.
assim nestas poucas linhas
fica uma história banal
com linhas e entrelinhas
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente!
José Fanha
Friday 15 August 2014
O MACACO
Nunca se sabe
até que ponto
um macaco pode chegar
na ânsia de nos imitar.
Dizem alguns autores
ser o macaco
difícil de apanhar
- mas não.
Em qualquer
mundana
reunião
num ombro
numa frase
num olhar
no jeito "humanista"
de falar
aí temos o macaco
a trabalhar
procurando
aproveitar a confusão.
Pessoalmente
sou de opinião
que o macaco
é fácil de caçar
até à mão.
Alexandre O'Neill
Tuesday 12 August 2014
Provisoriamente não cantaremos o amor
provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade
in Congresso internacional do medo
Saturday 9 August 2014
Pois
O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca penetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.
Assim tudo ficou até que não.
Azevedo e silva ao volante do mini
vê elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções.
E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.
Alexandre O'Neill
Wednesday 6 August 2014
O mapa
sempre senti a matemática como uma presença
física, em relação a ela vejo-me
como alguém que não consegue
esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado
apertada nas mangas.
perdoem-me a imagem: como
num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
e provocar com a nossa indiferença o desejo
interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
mundo onde entro para me sentir excluído;
para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
aos números e aos seus cálculos, é um sistema,
ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
não é mais inteligente que resolver uma equação;
porque optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:
entre a possibilidade de acertar muito, existente
na matemática, e a possibilidade de errar muito,
que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
mais ou menos sem meta) optei instintivamente
pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.
Gonçalo M. Tavares
física, em relação a ela vejo-me
como alguém que não consegue
esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado
apertada nas mangas.
perdoem-me a imagem: como
num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
e provocar com a nossa indiferença o desejo
interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
mundo onde entro para me sentir excluído;
para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
aos números e aos seus cálculos, é um sistema,
ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
não é mais inteligente que resolver uma equação;
porque optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:
entre a possibilidade de acertar muito, existente
na matemática, e a possibilidade de errar muito,
que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
mais ou menos sem meta) optei instintivamente
pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.
Gonçalo M. Tavares
Sunday 3 August 2014
Memória
Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.
O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.
O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.
Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.
David Mourão-Ferreira
Friday 1 August 2014
O sol
na infância o sol era um companheiro mais alto,
que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
que os meninos agarravam com os dedos e cuja
intensidade podiam por vontade própria regular.
por exemplo: quando a luz era excessiva
os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
o corpo parecia a conclusão
natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
recebíamos o sol como o ponto final recebe
uma frase. fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
me fui distraindo?
Gonçalo M. Tavares
que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
que os meninos agarravam com os dedos e cuja
intensidade podiam por vontade própria regular.
por exemplo: quando a luz era excessiva
os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
o corpo parecia a conclusão
natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
recebíamos o sol como o ponto final recebe
uma frase. fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
me fui distraindo?
Gonçalo M. Tavares
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