Tuesday 31 December 2019

NA PASSAGEM DE UM ANO


Erros nossos não são de toda a gente
tropeçamos às vezes na entrega
mas retomamos sempre a marcha em frente
massa humana que nada desagrega.

Para nós o passado e o presente
são futuro no qual o povo pega
com as suas mãos de luz incandescente
que aquece que deslumbra mas não cega.

Para nós não há tempo. O tempo é vento
soprando ano após ano sobre a história
que para nós é vida e não memória.

Por isso é que no tempo em movimento
cada ano que passa é menos tempo
para chegar ao tempo da vitória.

José Carlos Ary dos Santos

Friday 27 December 2019

PRELÚDIO


Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.
Nem setas envenenadas vindas no ar
nem gritos de alarme e de guerra
escoando pelos montes.

Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de voo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.

E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pelas fúrias dos temporais.

Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada

e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.

Jorge Barbosa

Tuesday 24 December 2019

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

Saturday 21 December 2019

EM TORNO DA MINHA BAÍA


Aqui, na areia,
sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na ,ais bela de todas as lições:
HUMANIDADE.

Alda do Espírito Santo

Thursday 19 December 2019

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI



Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.

Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

-Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.


Mário Castrim

Memória breve de uma noite longa



Éramos 20 e ocupávamos uma sala da Prisão da PIDE, no Porto - Rua do Heroísmo... - paredes meias com outra sala igual e com igual número de camaradas.


Era Natal.

A notícia chegou-nos à noite - noite fria, fria - através de batidas na parede:
A PIDE ASSASSINOU O ZÉ DIAS COELHO.

Fez-se um silêncio.
Depois, alguém deu um murro na mesa de madeira e disse em voz rouca: Assassinos.

Novamente o silêncio.
Um camarada começa a andar de um lado para o outro a todo o comprimento da sala.
Pouco a pouco, todos o imitámos, alguns com brilho de lágrimas nos olhos.
Todos em silêncio.

À hora habitual, o guarda de serviço veio apagar a luz: era a hora do silêncio de todos os dias, agora interrompido com o barulho da chuva que começara a cair.

Uma voz - alentejana, límpida, clara - emerge do silêncio, cantando baixinho, muito baixinho:

«Noite imensa, noite imensa de amargura,
semeada de baionetas e ameaças.
Uma estrela vem rasgando a noite escura,
traz a morte das algemas e mordaças»

Três, quatro vozes juntam-se-lhe, baixinho, muito baixinho:

«O caminho é pedregoso e duro
mas o sonho que nos guia é puro»

E agora é o coro contido de 20 vozes:

«As espadas, as espadas,
impotentes vão tombar despedaçadas...
E as searas a crescer na terra
são promessas de beleza e pão,
mundo novo, mundo novo,
poderosa e triunfal canção.
de amor, de amor»...

Outra vez o silêncio - e a chuva, agora mais intensa.
Em vários bailiques brilham as pontas acesas dos cigarros.

E faz-se ouvir uma voz serena e cheia de força:

«Até amanhá, camaradas».
 
 
Fernando Samuel

Sunday 15 December 2019

ÇA IRA!


Isto vai, caro amigo.
Não como nós queremos, é certo,
mas isto vai.

Por noites de insónia e alcatrão
por laranjas e lábios ressequidos
por desespero na voz e escuridão
isto vai, caro amigo.

Pelo cabo axial que liga a nossa esperança
pela luz dos cabelos, pelo sal
pela palavra remo, pela palavra ódio
isto vai, caro amigo.

Pela ternura e pela confiança
pela vontade e força, as nossas casas
pelo fervor com que inventamos (e depois
calamos)
isto vai, caro amigo.

Pelos carris do medo, pelas árvores
pela inocência e fome, pelos perigos
pelos sinais fraternos, pelas lágrimas
isto vai, caro amigo.

Pela rudeza do espaço
e em jardins falsíssimos

isto vai, caro amigo.

João Rui de Sousa

Thursday 12 December 2019

DA VIOLÊNCIA


Do rio que tudo arrasta
se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
as margens que o comprimem.

Brecht

Monday 9 December 2019

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ!...


Adriano Moreira vai ser agraciado com o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Mindelo, em Cabo Verde.
A cerimónia decorrerá amanhã na referida Universidade.

Adriano Moreira foi, como estamos lembrados (estaremos?..), «ministro do Ultramar» de Salazar e, enquanto tal, coube-lhe assinar a reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal, para onde, desde logo, começaram a ser enviados militantes dos movimentos de libertação das colónias.

Têm razão, por isso, os antigos prisioneiros do Campo de Concentração ao manifestarem o seu repúdio pela cerimónia.
E tem razão o Presidente da Associação Cabo-Verdiana de Ex-Presos Políticos, Pedro Martins, ao considerar a distinção a Adriano Moreira «um insulto»; e ao afirmar que «a distinção é contra tudo o que lutámos para pôr fim ao regime colonial fascista».

Recorde-se que o Campo de Concentração do Tarrafal - que viria a ficar conhecido como Campo da Morte Lenta - foi criado em Abril de 1936 e inaugurado em Setembro do mesmo ano, essencialmente com presos da revolta da Marinha Grande e da revolta dos Marinheiros.
«Quem vem para o Tarrafal vem para morrer» - diziam os directores do Campo, Manuel dos Reis e João da Silva.
«Eu não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito» - dizia o médico do Campo, Esmeraldo Pais Prata.
Os 340 antifascistas que estiveram presos no Tarrafal somaram aí um total de dois mil anos, onze meses e cinco dias de prisão - e 32 deles, entre os quais o secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, foram friamente assassinados.
Em 1954, graças à luta do povo português e à solidariedade internacional, o fascismo foi forçado a encerrar o Campo, que reabriria em 1961 com patriotas dos movimentos de libertação das colónias portuguesas - desta vez por ordem do ministro Adriano Moreira, que agora vai ser Doutor Honoris Causa, pela Universidade do Mindelo...

As voltas que o mundo dá!...
 
Fernando Samuel
9.12.2011

Friday 6 December 2019

UM ACTO DE CORAGEM

A pretexto da morte, no sábado passado, de Artur Quaresma - que foi futebolista do Belenenses e da selecção nacional, da qual chegou a ser Capitão - o DN de hoje relembra o célebre desafio de futebol Portugal-Espanha, realizado em 30 de Janeiro de 1938, em plena guerra civil espanhola, e decidido por Salazar e Franco.

Era hábito - decorrente de imposição do governo de Salazar - os jogadores (e a assistência, ou parte dela...) fazerem a saudação fascista quando, antes do início dos jogos, tocava o Hino Nacional.
E assim deveria ter sido naquele Portugal-Espanha, ao qual foram assistir altos dirigentes do regime, para além dos embaixadores da Itália fascista e da Alemanha nazi.

Todavia, perante o espanto geral, naquele dia o ritual não foi cumprido por três dos futebolistas da Selecção.
Artur Quaresma, Mariano Amaro e José Simões, todos do Belenenses, cada um à sua maneira, não fizeram a saudação fascista: Quaresma ficou perfilado, impassível e com as mãos atrás das costas; e Amaro e Simões ergueram os punhos cerrados - os punhos direitos... o que foi considerado ainda mais grave já que se tratava da saudação comunista...

Mal o jogo terminou, os três futebolistas foram presos para interrogatórios pela PVDE - a polícia política que, mais tarde, viria a chamar-se PIDE, e que Marcelo Caetano baptizaria de DGS nos últimos anos do fascismo.

Mais de seis décadas depois, em Janeiro de 2004, Artur Quaresma diria ao jornal Record: «Fomos à PIDE e eles (os dois colegas) ficaram. Eu, deixando o braço em baixo, disse que me esquecera de o levantar. Não houve mais problemas porque o Belenenses moveu influências. Nunca fui político, mas embirrava com aquelas coisas do fascismo. O Barreiro era foco de comunistas opositores ao regime e eu era amigo de muitos. Mas fiz aquilo sem premeditação, foi um acto natural».

Aqui se saúda a atitude dos três futebolistas, o acto corajoso de que foram protagonistas.
Um acto que mostra que a resistência ao fascismo ao longo do quase meio século da sua existência, assumiu as mais diversas formas e por vezes se fez sentir onde menos seria de esperar...
Fernando Samuel
6.12.2011

Wednesday 4 December 2019

A FUGA DE CAXIAS



Foi há cinquenta anos: precisamente o dia 4 de Dezembro de 1961.

«A fuga foi minuciosa e longamente estudada e organizada, sob a orientação do Partido.
Um dos fugitivos, António Tereso, trabalhador da Carris preso em Caxias, tinha fingido ceder à polícia e "rachar" de modo a poder proceder ao reconhecimento do Forte e encontrar meio de fuga.
Meses depois, apresentou-se a oportunidade de a fuga se concretizar utilizando um automóvel blindado que estava em reparação no Forte e que António Tereso se oferecera para reparar.

No dia marcado, 4 de Dezembro de 1961, enquanto os presos encenavam um desafio de futebol num pátio que a PIDE considerava o mais seguro, António Tereso foi buscar o automóvel à garagem e, em marcha atrás, conduziu-o para o pátio.
Ao sinal de "Golo!", gritado por José Magro, os presos entram no carro que arranca de imediato, em grande velocidade, através do túnel, até chegar ao portão do Forte contra o qual embate violentamente e despedaça, lançando-se para o exterior e desaparecendo perseguido pelos tiros da GNR.
No carro seguiam dirigentes e quadros destacados do Partido: Francisco Miguel, José Magro, Guilherme da Costa Carvalho, António Gervásio, Domingos Abrantes, Ilídio Esteves - militantes comunistas que, como os que, em Janeiro de 1960, se tinham evadido de Peniche, regressaram à luta clandestina pela liberdade e pela democracia»
(entre os fugitivos encontrava-se também Rolando Verdial que, posteriormente, traíu o Partido e se passou para a PIDE).

Tuesday 3 December 2019

HINO DE CAXIAS



Longos corredores nas trevas percorremos
sob o olhar feroz dos carcereiros
mas nem a luz dos olhos que perdemos
nos faz perder fé nos companheiros

Vá camarada, mais um passo,
já uma estrela se levanta,
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Oiço ruírem os muros,
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão,
treme carrasco que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação

Cortam o sol por sobre os nossos olhos,
muros e grades fecham horizontes,
mas nós sabemos onde a vida passa,
o nosso olhar é o mais alto dos montes.

Vá camarada, mais um passo,
já uma estrela se levanta,
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço é uma alavanca

Oiço ruírem os muros,
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão,
treme carrasco que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação

Podem rasgar meu corpo à chicotada,
podem calar meu grito enrouquecido,
para viver de alma ajoelhada
vale bem mais morrer de rosto erguido.

Vá, camarada, mais um passo,
já uma estrela se levanta,
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Oiço ruírem os muros,
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão,
treme carrasco que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação.

Sunday 1 December 2019

BURGUESES


Não tenho pena dos burgueses
vencidos. E quando penso que vou ter pena,
aperto bem os dentes e fecho bem os olhos.
Penso nos meus longos dias sem sapatos nem rosas.
Penso nos meus longos dias sem chapéu nem nuvens.
Penso nos meus longos dias sem camisa nem sonhos.
Penso nos meus longos dias com a pele proibida.
Penso nos meus longos dias.

- Isto é um clube. Aqui não pode entrar.
- A lista já está cheia.
- Não há quarto no hotel.
- O senhor não está.
- Rapariga precisa-se.
- Fraude nas eleições.
- Grande baile para cegos.
- A taluda saíu em Santa Clara.
- Tômbola para órfãos.
- O cavalheiro está em Paris.
- A senhora marquesa não recebe.

Enfim, recordo tudo.
E como recordo tudo,
que caralho me pede você que faça?
E além disso, pergunte-lhes.
Com certeza
que eles também se lembram.

Nicolas Guillén
(In Poesia Cubana da Revolução)