Friday 30 July 2021

no meu país

 

aqui no meu país só passa fome quem quer
que migalhas de ricos há espalhadas com fartura
no caixote do lixo da burguesia
que dá pelo nome de i pê ésse ésse
e não falta gente que atire restos aos pobres
como quem manda milho aos pombos
com a diferença que é mais nobre combater a solidão
que a ocupação de tempos livres com gente
para fazer da caridade um penduricalho mais barato que uma sessão de cabeleireiro
ou um passeio da avenida que é da liberdade de alguns
desde que tenham carro comprado após dois mil
no meu país as crianças só passam fome porque querem
ninguém lhes deu ordem de ir nascer na periferia
com tanto condomínio de luxo por aí devidamente licenciado
ou terem ido escolher vir ao mundo só com mãe
e sem pai isto só visto
no meu país os velhos só passam fome porque querem
porque toda a gente sabe que enquanto aqueles corações batem
há uma veia de empreendedorismo a latejar
e um banco pronto prontinho a financiar o arrojo dos septuagenários sem pensão
no meu país
diga-se a bem da verdade
só fica sem emprego quem quer
só vive na solidão quem quer

só morre no mar quem quis viver pescador e ousou ter fome em dia de temporal

só morre de neoplasia maligna quem quis ser mineiro e inspirar urânio 
como quem respira o ar do jardim do hotel de seis estrelas

no meu país só fica à porta do hospital quem quer
pode sempre entrar
nem que seja pela porta da morgue

no meu país só é despedido quem quer porque escolheu precisar de trabalhar
em vez de ter um banco ou pelo menos uma cadeia de hipermercados

no meu país só entrega casa ao banco quem quer
podia sempre comprar a pronto 
aqui neste país
só passa fome quem quer
enquanto diz merda quem pode.
 
Miguel Tiago

Tuesday 27 July 2021

ars moriendi

das nuvens
dos raios de sol que chovem
das ondas do som que nos agita
nos perpassam como
varas rombas
dos cheiros
e das flores mortas
dos buracos escuros
e copos vazios
dos troncos robustos
do carvalho
do olhar dos homens perdidos
das mulheres amigas
do significado das letras
das palavras
das figuras
das sombras
das luzes
de cada braço da respiração
que nos arqueia
de cada flecha que suspiramos
em direcção ao vazio
que enche os peitos dos outros
e os outros somos nós
para os outros
do mundo
e das folhas avermelhadas do outono
que ano após ano se abate sobre
o nosso dorso já cansado
do tamanho
do volume
do abismo
do tempo
da fugacidade
da areia ser uma forma de luz
e os corpos nus uma recordação
do paraíso
e da impossibilidade de conter nos livros a velocidade.

e da aceitação.
do abraço. 

Miguel Tiago

Saturday 24 July 2021

hegemonia

vieram os lobos
esta é uma noite fria.
depois de a voz se ouvir
como um punho
que podia destruir com a verdade
todas as correntes e cadeias,
não sobreviveu um grito
de testemunho nos manuais escolares.
nas voz dos homens uivam os lobos
que, infelizmente, também são homens.
a pele nua contudo é perene.
irrompe o sol de onde sempre nasce
aquecerá os campos e as cidades
não voltam os lobos a uivar
na voz dos homens. 

Miguel Tiago

Wednesday 21 July 2021

sem título

 

tenho um pé já assente sobre a vertigem.

Miguel Tiago

Sunday 18 July 2021

sem título

viemos sabemos do horizonte
um som desenhado no vazio
uma molécula de infinito
que se acendeu
uma fracção de matéria que se apropriou
da consciência sobre si mesma
um fio de presente
uma árvore de raízes enfiadas no passado
criança de braços estendidos ao futuro
uma ave antes de ter nome

não retornamos ao nascer do sol
apesar da madrugada

a origem é cada ponto da pele
onde as agulhas do tempo se espetam
gravando minutos numa tinta espessa
até que a casca nos envolva como a um sobro
e o horizonte nos tome em contra-luz no poente

Miguel Tiago

Thursday 15 July 2021

cosmos

é indiferente existirem fronteiras entre pessoas
ou pessoas entre fronteiras
o limiar divide nada
nem da terra aparta o céu o mar o voo das aves
ou os fluídos seminais
que na osmose constante fundem
todos os corpos
na fecundidade do pensamento
na afinal totalidade que as estrelas trazem no bojo
a que demos o nome de humanidade.

Miguel Tiago

Monday 12 July 2021

fogo e mar

todos os dias são nevoeiro
e ao fundo um navio
sobre águas escondidas
sob o espesso branco.
na lonjura dilui-se no horizonte
a esparsa luz.
albatroz a maior envergadura das aves marítimas
e do reino animal maior agoiro.
todo o mar é nosso.
não. todos somos do mar.

foi sob o céu negro que a história ardeu
sobre as águas tranquilas da baía. 

Miguel Tiago

Friday 9 July 2021

tempo

o mesmo tempo que consome os dias que te faltam
dá-te os dias que tens vividos.

Miguel Tiago

Tuesday 6 July 2021

a questão é a resposta é a questão


a substância radical dos homens
a seiva sanguínea das almas
é em si mesma destino e origem
é procurar essência na terra funda
mergulhar na escuridão universal 
com uma candeia apagada
e tactear o mundo com as pontas do cérebro
a finalidade
o sentido
a resposta
corpórea matéria de tão densa 
é a pergunta.
 
Miguel Tiago
 

Saturday 3 July 2021

cardiofrágio

naufragar.
nave desfaz-se contra fragas.
há-de se fazer um verbo para quando
nas fragas se desfaçam corações.

Miguel Tiago

Thursday 1 July 2021

curta é a viagem quando ansiamos a lonjura

as bermas da estrada fundem-se
passado o rubicão da miragem
do ponto de fuga sobrará
a falta de esconderijo
não importa o destino
nem a viagem.

quantas milhas faltam para o horizonte?
e as bermas da estrada que se desentrelaçam
na vertigem de chegar
não há milhas que cheguem para confortos que não existem. 

Miguel Tiago