Wednesday 30 June 2010

POEMA DE NATAL

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos

-Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos

-Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai

-Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte

De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

VINICIUS DE MORAES

Sunday 27 June 2010

NOCTURNO

Devagar, devagar... A noite dorme
e é preciso acordar sem sobressalto.
Sob um manto de sombra, denso, informe,
o mar adormeceu a sonhar alto.

Devagar, devagar... O rio dorme
sobre um leito de areias e basalto...
Malhada pela neve a serra enorme
parece um tigre a preparar o salto.

E dorme o vale em flor.
Dormem as casas.Nenhum rumor.
Nenhum frémito de asas.

Nada perturba a noite bela e calma.
E dormem os rosais, dormem os cravos...
Dormem abelhas sobre o mel dos favos
e dorme, na minha alma, a tua alma.


Fernanda de Castro

Thursday 24 June 2010

A PALAVRA MÁGICA

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

Monday 21 June 2010

ESTA NOITE O VENTO CEIFA OS BOSQUES


Esta noite o vento ceifa os bosques e
uma raiva sacode a terra. se a voz
do mar chamasse pelas velas, os estreitos
aguardariam um naufrágio. E se dissesses
o meu nome eu morreria de amor.

Devo, por isso, afastar-me de ti ― não
por ter medo de morrer (que é de já não
o ter que tenho medo), mas porque a chuva
que devora as esquinas é a única canção
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.

Maria do Rosário Pedreira

Friday 18 June 2010

***

Fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?
olhas-me e só tu sabes:ferros em brasa,
fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:amor
e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto in "A criança em ruínas"

Tuesday 15 June 2010

Monólogo de Orfeu

Mulher mais adorada!
Agora que não estás,deixa que rompa o meu peito em soluços
Te enrustiste em minha vida,e cada hora que passa
É mais por que te amar a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada.
E sabes de uma coisa?
Cada vez que o sofrimento vem,essa vontade de estar perto, se longe
ou estar mais perto se perto
Que é que eu sei?
Este sentir-se fraco,o peito extravasado
o mel correndo,essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu;
Tudo isso que é bem capaz
de confundir o espírito de um homem.
Nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga,
esse contentamento,
esse corpo
E me dizes essas coisas
que me dão essa força, esse orgulho de rei.
Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música.
Nunca fujas de mim.Sem ti, sou nada.
Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada.
Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! Criatura!
Quem poderia pensar que Orfeu,
Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres -que ele, Orfeu,
Ficasse assim rendido aos teus encantos?
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho
que eu vou te seguindo no pensamento
e aqui me deixo rente quando voltares,pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo.

Vinicius de Moraes

Saturday 12 June 2010

A DANÇA

Não te amo como se fosses uma rosa ou um topázio
Ou a flecha de cravos, que o fogo lança.
Amo-te como certas coisas escuras devem ser amadas,
Em segredo, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floresce e carrega,
Escondida dentro de si, a luz de todas as flores.
E, graças ao teu amor, escura no meu corpo
Vive a densa fragrância que cresce da terra.

Amo-te sem saber como ou quando ou de onde.
Amo-te tal como és, sem complexos nem orgulhos.
Amo-te assim porque não sei outro caminho além deste
Onde não existo eu nem tu.

Tão perto que a tua mão no meu peito é a minha mão.
Tão perto que, quando fechas os olhos, adormeço.


PABLO NERUDA

Wednesday 9 June 2010

Gosto quando te calas

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longínquo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

Pablo Neruda

Sunday 6 June 2010

OS OLHOS DAS CRIANÇAS

Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem atrás das grades de silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Sidonio Muralha

Thursday 3 June 2010

Ariane

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

Miguel Torga

Tuesday 1 June 2010

Creio em amores lunares com piano ao fundo

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta m...ais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia