Friday 30 January 2009

Os putos

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.

Ary dos Santos

Tuesday 27 January 2009

A bandeira comunista

Foi como se não bastasse
tudo quanto nos fizeram
como se não lhes chegasse
todo o sangue que beberam
como se o ódio fartasse
apenas os que sofreram
como se a luta de classe
não fosse dos que a moveram.
Foi como se as mãos partidas
ou as unhas arrancadas
fossem outras tantas vidas
outra vez incendiadas.

À voz de anticomunista
o patrão surgiu de novo
e com a miséria à vista
tentou dividir o povo.
E falou à multidão
tal como estava previsto
usando sem ter razão
a falsa ideia de Cristo.

Pois quando o povo é cristão
também luta a nosso lado
nós repartimos o pão
não temos o pão guardado.
Por isso quando os burgueses
nos quiserem destruir
encontram os portugueses
que souberam resistir.

E a cada novo assalto
cada escalada fascista
subirá sempre mais alto
a bandeira comunista.

Ary dos Santos

Saturday 24 January 2009

Tejo Que Levas As Águas

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes espantos
de roubos, fomes, terrores,
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amores

Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas

Lava bancos e empresas
dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza
arrecadam lucro inteiro

Lava palácios, vivendas,
casebres, bairros da lata
leva negócios e rendas
que a uns farta e a outros mata

Lava avenidas de vícios
vielas de amores venais
lava albergues e hospícios
cadeias e hospitais

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Afoga empenhos favores
vãs glórias, ocas palmas
leva o poder dos senhores
que compram corpos e almas

Das camas de amor comprado
desata abraços de lodo
rostos corpos destroçados
lava-os com sal e iodo

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar


Manuel da Fonseca

Wednesday 21 January 2009

Perdidamente

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca

Sunday 18 January 2009

TOMAR PARTIDO

Tomar partido é irmos à raiz
do campo aceso da fraternidade
pois a razão dos pobres não se diz
mas conquista-se a golpes de vontade.

Cantaremos a força de um país
que pode ser a pátria da verdade
e a palavra mais alta que se diz
é a linda palavra liberdade.

Tomar partido é sermos como somos
é tirarmos de tudo quanto fomos
um exemplo um pássaro uma flor.

Tomar partido é ter inteligência
é sabermos em alma e consciência
que o Partido que temos é melhor.

Ary dos Santos

Thursday 15 January 2009

Saudades

Saudades! Sim...talvez...e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?...Ah!como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!


Florbela Espanca

Monday 12 January 2009

Recado a Helena

Do frio da cela do forte
Do lado norte por sobre o rio
Por sobre o rio do lado norte
A mão acena por Helena.

Do lado do sul do rio
Na negra pena por Helena:
À rua deitado jaz vazio e frio
O corpo apagado de Helena.

Salgado rio de pranto
Jorrando entre mágoa e mágoa
E uma cidade de espanto
No perfilado recorte
Espelhado no fundo de água
Pára o Tejo à beira-morte
À beira-morte de Helena
E à beira-cela do forte
Onde ainda a mão acena.

Do lado do sul do rio
À rua deitado jaz vazio e frio
O grito em vida amordaçado
No corpo delgado de Helena.

Mão de aceno gradeado
É por nossa condição
Gente de foice e arado
Homens de cais pescadores
Mais os que como nós são
Nos escritórios e fábricas
Dia a dia os construtores
Dos dias desta nação
É por nós que a mão acena
Da beira-morte de Helena
Contra a mão que nos condena.

Para que a morte de Helena
Não venha a ser nossa sorte
Ao sul e ao norte a mão acena
Fechando o punho ao sul e ao norte.

Salgado rio de pranto
Jorrando entre mágoa e mágoa
E uma cidade de espanto
No perfilado recorte
Espelhado no fundo de água
Pára o Tejo à beira-morte
À beira-morte de Helena
E à beira-cela do forte
Onde agora um punho acena.

Do frio da cela do forte
Do lado norte por sobre o rio
Por sobre o rio do lado norte
A mão acena por Helena.

Para que a morte de Helena
Não venha a ser nossa sorte
Ao sul e ao norte a mão acena
Fechando o punho ao sul e ao norte.

Manuel da Fonseca

Friday 9 January 2009

O Amor - esse vulcão...

O amor é o amor

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!

Alexandre O'Neill

Tuesday 6 January 2009

*

Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Saturday 3 January 2009

Recomeça….

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

Thursday 1 January 2009

SEGUNDO

Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?...
... Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebecem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu...

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

(Manuel da Fonseca)