Monday 30 January 2017

RENDIÇÃO


Vem, camarada, vem
render-me neste sonho de beleza!
Vem olhar doutro modo a natureza
e cantá-la também!

Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
Tens outra humanidade, outra certeza:
Leva a chama da vida mais além!

Até onde podia, caminhei.
Vi a lama da terra que pisei,
e cobri-a de versos e de espanto.

Mas, se o facho é maior na tua mão,
vem camarada irmão,
erguer sobre os meus versos o teu canto.


Miguel Torga

Tuesday 24 January 2017

O MENDIGO QUE ENTREGAVA UM PAPEL


Atenda por favor: não posso trabalhar.
Sou, entre outras coisas, surdo-mudo,
e mortos são meus pais e três irmãos.
Sou surdo-mudo, sim. Estou quase cego.
Por piedade dê-me alguma roupa,
comida, calças, pois não tenho nada.
Se os nossos pés são iguais dê-me uns sapatos.
Sou surdo-mudo, solitário, quase velho.
Dê ao menos um escudo, ou uns tostões.
Socorra-me. Olhe para mim.
Não posso falar:
sou realmente surdo-mudo.

Devolva-me o papel. Não tenho cópia.


Glória Fuertes

Saturday 21 January 2017

POEMA DO NOSSO FUTURO


Há-de trazer os nossos traços,
e a tua confiança, e a minha rebeldia,
e o dia, aquele dia, o nosso dia,
e eu hei-de recebê-lo dos teus braços

para que seja grande esse momento,
para que seja meu e teu,
- não hás-de ser como a Virgem Maria
que teve um filho que caiu do Céu...

- Hás-de embalar vertigens e cansaços.
Depois, hás-de parir em sofrimento,
para que seja grande esse momento
e eu possa recebê-lo dos teus braços.

Talvez eu consiga, então,
beijar a Vida nos olhos, devagar,
e dar-lhe o meu perdão,

- se ainda souber perdoar... -

Sidónio Muralha

PRELÚDIO

A minha poesia é uma árvore cheia de frutos
que um sol de tragédia amadurece;
mas eu não os arranco nem procuro:
- o meu sol de tragédia aquece, aquece,
e o fruto cai de maduro.

No resto, sou empregado de escritório
que não procura desvendar abismos,
e passa o dia (glorioso ou inglório)
a somar algarismos...

A minha poesia é uma árvore cheia de frutos
que um sol de tragédia amadurece;
mas eu não os arranco nem procuro:
- sei a miséria da estrada percorrida;
o meu sol de tragédia aquece, aquece.

- e o fruto cai de maduro
no chão da minha vida.

Sidónio Muralha

Wednesday 18 January 2017

RONDA DOS RÉPTEIS


Rastejam nas leitarias, rastejam entre os trapos
das lojas de fanqueiro, e nos cinemas, e nas conferências,
e nas faculdades, nas fábricas, nos comboios, no futebol, nas touradas,
rastejam, rastejam em toda a parte viscosos como sapos,
a abrem as bocas verdes com dentes verdes de excremências,
e cospem palavras torpes contra as janelas fechadas.

Rastejam nos cafés, nas livrarias e nos portos,
rastejam e envenenam as noites,
rastejam e empeçonham os dias,
raivosos babam-se quando falamos, quando lemos,
e olham os vivos de olhos vidrados como mortos,
e rastejam nos hotéis, nas pensões, nas padarias
e mãos de lama tocam o pão que nós comemos.

E as bocas verdes e imundas bafejam, bafejam,
e as rosas fenecem, as rosas são mortas,
e os dedos de lama acusam no escuro,
e eles rastejam, rastejam, rastejam,
colados à sombra, colados às portas,
como cartazes de infâmia colados ao muro.


Sidónio Muralha

Sunday 15 January 2017

A MENINA FÚTIL

A menina fútil deu um bodo aos pobres;
pela primeira vez pôs avental...
Falou do gesto e seus intuitos nobres,
com palavrinhas brandas, o jornal...

- Os pobres ficaram pobres
e a menina fútil nunca mais pôs avental...

A menina fútil tem um cão de raça
que nunca saiu do quintal
e nunca viu uma cadela...
- Para a menina fútil, o seu cão de raça
deixou de ser um animal
e é um cãozinho de flanela...

... e a menina fútil tem um namorado
e atira-lhe promessas da janela...
Promessas... porque o resto era pecado
e pecar não é com ela...
(Fica sempre na rua, o namorado,
e é tão distante a janela...)

Mas a menina fútil tem um namorado;
tem um cão como feito de flanela;
e anda feliz por dar um bodo aos pobres
e ter descido a pôr um avental...

Lê e relê os seus intuitos nobres;
recorta o seu retrato do jornal;

- e os pobres continuam pobres,
e a menina fútil nunca mais põe avental...

Sidónio Muralha
(«Passagem de Nível» - 1942)

Thursday 12 January 2017

AS GRANDES ESPERANÇAS


«Grandes esperanças estão postas,
todas, sobre vós»,
dizem os senhores solenes: e também:
«Tomai,
aqui tendes a escola e a despensa. Sois maiores
e livres de escolher,
é claro sem imprudentes romantismos.
A verdade é que deveríeis estar-nos gratos.
No entanto bastam-nos as grandes esperanças,
bem vêdes, todas postas em vós».

Venho em cada manhã,
cada manhã venho para ver
o que não existia ontem,
como em nome do Pai se resolveu,
e como cada data livre foi entregue,
dada em aval, subscrita pelos
pais nossos
de cada dia.

Cada manhã venho para ver
que tudo está servido (ao entrar
saúdam-me, levantando os olhos, um momento)
e cada manhã pergunto-me,
cada manhã pergunto-me quantos somos
nós, e de quem vimos,
e que preço pagamos por essa confiança.

E talvez,
quem sabe, não vimos para isso.
A questão reduz-se a estar vivo um momento,
ainda que não mais do que um momento,
a estar vivo,
justamente nesse minuto,
quando escapamos
ao melhor dos mundos impossíveis.
O mundo onde nada importa - nem sequer
as grandes esperança que estão postas
todas sobre nós, todas,
e assim pesam

Jaime Gil de Biedma

Monday 9 January 2017

PASSAGEM DE NÍVEL

Velho dos dias sem sol e das noites sem estrelas
que passas junto de mim apregoando,
apregoando cautelas,

- até quando?

Menina da casa estreita e sem janelas
que vives trabalhando, trabalhando...

- Quando virá o Dia, quando?

Quando vier, eu que estou à sua espera
hei-de sentir na minha poesia
um hálito de Primavera...

Mas não a Primavera dos sonetos de almanaque,
encarcerada em versos bafientos,

em que um sujeito de fraque
desfiava pensamentos...

Meus versos serão límpidos, correntes,
porque se beijam na rua os namorados
e não são indecentes nem decentes
- são simplesmente apaixonados.

Verei janelas rasgadas, fatos limpos,
mãos dadas numa franca simpatia,
- e hei-de sentir a Primavera
a desprender-se da minha poesia...

Até lá, um rio de raiva rola, ecoa
nos meus versos, rebenta no meu coração...

- E aquele que não me perdoa
que saiba que eu não peço o seu perdão!

Sidónio Muralha
(«Passagem de Nível» - 1942)

Friday 6 January 2017

A ARQUITRAVE (andaimes para as ideias...)


Vivemos entre pessoas solenes. Há quem fale
da arquitrave e dos seus problemas
tal como se ela fosse a sua prima
- próxima, está claro.

Pois bem! Segundo parece a arquitrave
corre enorme perigo. Não se sabe
com precisão porque assim é, mas dizem.
Há quem o diga já desde há vinte anos.

Há quem fale também do inimigo:
inapreensíveis seres
estão em toda a parte, insinuam-se
tal como a poeira nas habitações.

E por fim há quem levante andaimes
para que ela não caia: gente séria.
(É curioso, em inglês, scaffold significa
ao mesmo tempo andaime e cadafalso.)

Alguém sai para a rua,
beija a namorada, ou compra um livro,
e passeia, feliz.
Logo o fulminam:
«Como se atreve?»

A arquitrave!...


Jaime Gil de Biedma

Tuesday 3 January 2017

TEATRO

Na sala vazia sentaram-se os quatro.
E os quatro ficaram olhando, no fundo,
a mancha de luz do pequeno teatro.

- O dono do teatro - um vagabundo
que trouxera o teatro do outro lado do mundo -
por trás das cortinas puxava os cordéis...
Puxava os cordéis aos fantoches, fiéis
aos seus dedos infiéis de vagabundo.
................................................................. 
Dos quatro meninos, um deles voltou,
e, tanto viu, que decorou
as falinhas mansas e a maneira
invertebrada dos fantoches de feira.

De dois dos meninos ninguém mais falou,
(e o outro é poeta e ninguém lhe perdoa...)
mas do menino-fantoche como é bom falar!...

- porque o menino-fantoche é hoje a pessoa
mais importante do lugar.

Sidónio Muralha
(«Passagem de Nível» - 1942)

Sunday 1 January 2017

CHE


Che, tu conheces tudo,
as voltas da Sierra,
a asma na erva fria,
a tribuna,
as ondas da noite,
até como se fazem
os frutos e os bois se jungem.

Não é que eu queira dar-te
caneta por pistola
mas o poeta és tu.

Miguel Barnet



ELEGIA DAS ÁGUAS NEGRAS
PARA CHE GUEVARA

Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes procuram-te na bruma;
de prado em prado procuram
um potro, a palmeira mais alta
sobre o lago, um barco talvez
ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé,
cada palavra tua faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos contigo
no coração em redor do fogo.

(1971)

Eugénio de Andrade