Monday 30 December 2013

VIAGEM ATRAVÉS DE UNS CABELOS TODOS BRANCOS


Estamos a vê-lo todos e sabemos.

Foram anos de fome, quantas vezes
à beira dos mercados e das feiras.
Foram anos com o perigo a escorrer das paredes.
Foram anos de todas as esquinas vigiadas.
Anos de encontros mais cronometrados
do que o fio-de-prumo sobre a lâmina.
Foram anos eternos de prisão
numa ilha de mar, de guardas, de muralhas
e de silêncio com o olhar feroz
de grades sobre o dia.

Foi toda a vida com o coração
sem nunca se esquecer por que batia.

Mário Castrim

Friday 27 December 2013

CANÇÃO INFANTIL


Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.

Eugénio de Andrade

Tuesday 24 December 2013

O desempregado com filhos


Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.

 Gonçalo M. Tavares 
In O Senhor Brecht 

Saturday 21 December 2013

ESMAGADOS...


Esmagados sob as patas
das bestas taciturnas
os nossos peitos ansiosos,

que havemos nós de fazer senão, irados,
mesmo imprudentemente,
erguer-nos contra quanto
é ordem truculenta,
crença mutiladora,
ou crime sistemático?

Armindo Rodrigues

Wednesday 18 December 2013

AINDA ME ACOLHO


Ainda me acolho, Pai,
à tua madressilva.
Ali tens a passiflora,
não envelheceu.
O cedro grande, maior ainda.
O forno, dedadas
expungidas pelas portas.
A buganvília, não esqueço,
é preciso cortá-la.
A Mãe não está nem volta.

António Osório

Sunday 15 December 2013

ESTA GENTE


Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
e outras vezes tosco

ora me lembra escravos
ora me lembra reis

faz renascer meu gosto
de luta e de combate
contra o abutre e a cobra
o porco e o milhafre

Pois a gente que tem
o rosto desenhado
por paciência e fome
é a gente em quem
um país ocupado
escreve o seu nome

E em frente desta gente
ignorada e pisada
como a pedra do chão
e mais do que a pedra
humilhada e calcada

meu canto se renova
e recomeço a busca
de um país liberto
de uma vida limpa
e de um tempo justo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Thursday 12 December 2013

CAMINHEMOS SERENOS


(Para Julius e Ethel Rosemberg)

Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas,
caminhemos serenos.

De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade,
caminhemos serenos.

Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões de fogo
dos que nem com a morte podem vencer-nos,
caminhemos serenos.

O que nos leva é indestrutível,
a luz que nos guia connosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, ó minha querida?:
caminhemos serenos.

No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
em busca do país da aurora,
de mãos dadas, querida, de mãos dadas,
caminhemos serenos.

Papiniano Carlos

Monday 9 December 2013

APONTAMENTO PARA UM POEMA EM LAPÃO


Se a civilização do consumo pôs o problema
da falta de espaços verdes
ou da solidão da velhice,
por que é que um presidente de município comunista se sente
na obrigação de resolvê-lo?
De que se trata?
Da aceitação de uma realidade fatal?
E, uma vez que as coisas se apresentam deste modo,
o dever histórico é o de procurar melhorá-las
através do entusiasmo comunista?
O «modelo de desenvolvimento» é
o preconizado pela sociedade capitalista
que está para alcançar a máxima maturidade.
Propor outros modelos de desenvolvimento
significa aceitar o primeiro modelo de desenvolvimento.
Significa querer melhorá-lo,
modificá-lo, corrigi-lo.
Não: é preciso não aceitar tal «modelo de desenvolvimento».
E nem sequer basta rejeitar tal «modelo de desenvolvimento».
É preciso rejeitar o «desenvolvimento».
Este «desenvolvimento»: porque é um desenvolvimento capitalista.
Este parte de princípios não só errados
mas também malditos.
Triunfantes, pressupõem uma sociedade melhor e portanto burguesa.
Os comunistas que aceitem este «desenvolvimento»,
considerando o facto que a industrialização total
e a forma de vida que daí resulta é irreversível,
seriam sem dúvida realistas colaborando,
se a diagnose fosse absolutamente justa e segura.
E, pelo contrário, não é verdade -
e existem já as provas -
que tal «desenvolvimento» deva continuar
como começou.
Há, em vez disso, a possibilidade de uma «regressão».
Cinco anos de «desenvolvimento» tornaram os italianos
um povo de nevróticos idiotas,
cinco anos de miséria podem reconduzi-los
à sua mísera humanidade.
E então -
pelo menos os comunistas -
poderão ter em conta a experiência vivida:
e visto que se deverá voltar ao princípio
com um «desenvolvimento»,
este «desenvolvimento» deverá ser totalmente diferente
do que tem sido.
Coisa diversa do que propor
novos «modelos»
ao «desenvolvimento» tal como ele é agora.

Pier Paolo Pasolini

Friday 6 December 2013

QUEM...


Quem tem a consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
e no centro da própria engrenagem
inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
e envolto em tempestade decepado
entre os dentes segura a primavera.

João Apolinário

Tuesday 3 December 2013

NÃO DIREI

Não direi maçãs rosadas,
nem limões, nem laranjas.

Direi que me gela
o sangue nas mãos
e me enoja viver neste tempo
e neste país.

Não direi maçãs rosadas,
nem limões, nem laranjas;
Gritarei ainda mais alto
e lutarei pela nossa liberdade.

Carles-Jordi Guardiola
(In Poetas Catalães de Hoje)

Sunday 1 December 2013

PASOLINI


Por três vezes - com dois poemas do Autor e um fotograma do filme Teorema - o Cravo de Abril recordou essa figura maior da cultura italiana (e europeia) que foi Pier Paolo Pasolini.

Hoje, partilhamos com os nossos visitantes parte da intervenção proferida por Pasolini no comício realizado no Verão de 1974, em Milão, no decorrer da Festa do Unitá (então órgão central do então Partido Comunista Italiano).

«Eis a angústia de um homem da minha geração, que viveu a guerra, os nazis, as SS, de que sofreu um traumatismo nunca totalmente vencido.
Quando vejo à minha volta os jovens que estão perdendo os antigos valores populares e absorvem os novos modelos impostos pelo capitalismo, arriscando assim uma forma de desumanidade, uma forma de afasia atroz, uma brutal ausência de capacidade crítica, uma facciosa passividade, recordo que estas eram precisamente as formas típicas das SS: e vejo assim estender-se sobre as nossas cidades a sombra horrenda da cruz gamada.
Uma visão apocalíptica, certamente, a minha.
Mas se ao lado dela e da angústia que a produz, não existisse em mim, também, um elemento de optimismo, isto é, o pensamento de que existe a possibilidade de lutar contra tudo isto, simplesmente eu não estaria aqui, convosco, a falar».

Fernando Samuel

Comentário no blogue:
Se não se importam, sento-me aqui neste lugar vago desta mesa redonda dirigida por Pasolini - que, há 34 anos, via o desenrolar sombrio das coisas, a sua evolução previsível, os perigos que nos espreitavam... E via o mais importante: com a luta é possível alterar o rumo dessas coisas, e nós estamos cá para lutar sejam quais forem as circunstâncias...

(melhor do que isto, seria se esta mesa redonda não fosse virtual e se concretizasse... sei lá, em casa de um de nós, por exemplo, com uns comes e bebes a participar na conversa: um queijo lá de cima, da Serra, um panito alentejano, um vinho especial ali de Palmela, uns pastéis de Belém, uma Trança de Espinho, etc, etc...)