Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
Eugénio de Andrade.
Saturday 30 May 2020
Wednesday 27 May 2020
Discurso no mercado do desemprego
Talvez perca — se desejares — minha subsistência
Talvez venda minhas roupas e meu colchão
Talvez trabalhe na pedreira... como carregador... ou varredor
Talvez procure grãos no esterco
Talvez fique nu e faminto
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei
Talvez me despojes da última polegada da minha terra
Talvez aprisiones minha juventude
Talvez me roubes a herança de meus antepassados
Móveis... utensílios e jarras
Talvez queimes meus poemas e meus livros
Talvez atires meu corpo aos cães
Talvez levantes espantos de terror sobre nossa aldeia
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei
Talvez apagues todas as luzes de minha noite
Talvez me prives da ternura de minha mãe
Talvez falsifiques minha história
Talvez ponhas máscaras para enganar meus amigos
Talvez levantes muralhas e muralhas ao meu redor
Talvez me crucifiques um dia diante de espetáculos indignos
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei
Ó inimigo do sol
O porto transborda de beleza... e de signos
Botes e alegrias
Clamores e manifestações
Os cantos patrióticos arrebentam as gargantas
E no horizonte... há velas
Que desafiam o vento... a tempestade e franqueiam os obstáculos
É o regresso de Ulisses
Do mar das privações
O regresso do sol... de meu povo exilado
E para seus olhos
Ó inimigo do sol
Juro que não me venderei
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei
Resistirei
Resistirei
Samih Al-Qassim
Sunday 24 May 2020
Poema 26
Ninguém fala dessa mãe orfã,
essa mãe que é filha, também. Com
o rosto fugindo pelos braços e os pés
já descolados da infância. A boca
irradia-lhe a nudez, os ombros adoecem
de ternura. Um vento de mulher, de mãe, de filha-mãe,
está doendo na língua, mas não sopra. Lâmpada gasta,
filamento frágil que quebrou uma extremidade.
Como os versos de um poeta,
esta mulher é cria do seu próprio parto
ao fazer-se fêmea, amor, colheita.
Com a dor de quem deixou no tempo
um fruto azul, uma boca solar,
esta mulher que já foi riso, árvore, boneca,
saúda as próprias mãos. E volta-se
para recordar as coisas do futuro.
Joaquim Pessoa
in À MESA DO AMOR
Thursday 21 May 2020
BILHETE DE IDENTIDADE
Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono… chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos…
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio – sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes…
Foram lançadas antes do nascimento do tempo
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai… é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês – um ser
Sem valor – nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou – Agrada-te?
Sou o meu nome próprio – sem apelido!
Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos… da cor do carvão
Os meus olhos… da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
… esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada…
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens… trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
… ao que dizem!
… Então
Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!
(1964)
Mahmoud Darwish
Monday 18 May 2020
Não acabarão nunca com o amor
Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.
Vladimir Maiakovski
Friday 15 May 2020
A mão
Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
E nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.
A mão cresce mais e faz
do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor.
Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica,
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da Terra domicílio do homem.
Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari."
Carlos Drummond de Andrade
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari."
Carlos Drummond de Andrade
Tuesday 12 May 2020
Ao alcance das mãos
Na minha vida há um espaço vazio
Tão cheio de ti
Na minha voz há um canto de luta
Que é feito pra ti
No meu poema há uma nota suspensa
Um acorde rasgado vibrando nas cordas
Despertas de sol e surpresa
Por ser já manhã e estares junto de mim
Meu amor
De ser sem saber
Irmão
Dos teus olhos parados nos meus
Tão molhados e firmes
Como estes teus dedos suados e finos
Que aperto tremendo entre as minhas mãos
Que não se pense que estou decidido
A mudar de canções
Estamos na mira das bocas famintas
Dos mesmos canhões
Que já aqui nos feriram
Mas que não matámos
E hoje só esperam uma sentinela
Que durma no posto de luta
E os deixe lançar-nos ao chão
Meu amor
De ser e ficar
Irmão
Dos teus olhos parados nos meus
Que vigiam a noite
Sorriem quando chega o dia
E vêem o futuro a chegar ao alcance das mãos
Há uma flauta chilena
Que grita em cada canção
Há um balanço de samba ferido
Em cada barracão
Há uma trompete
Um batuque africano de guerra
Uma luta tão velha
Que arde a impaciência de ver disparada
Esta arma invencível que temos na mão
Meu amor
De ser por dever
Irmão
Dos teus olhos parados nos meus
Que iluminam a noite
Amanhecem num grito de amor e de luta
Que voam fronteiras e rompem prisões
Dos teus olhos parados nos meus
Tão molhados e firmes
Como estes teus dedos suados e finos
Que aperto tremendo entre as minhas mãos
Dos teus olhos parados nos meus
Que vigiam a noite
Sorriem quando chega o dia
E vêem o futuro a chegar ao alcance das mãos.
Samuel
https://youtu.be/pTEvTgkZbFs
Saturday 9 May 2020
DESCRENTE
Sou uma descrente
ensombrada
que acredita somente
na invenção da palavra
poética e sol poente
Só da poesia sou crente
Maria Teresa Horta
Wednesday 6 May 2020
CANTA
Atreve-te a julgar. Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza. Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções, não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer. Os teus dentes
estão lavados, as tuas mãos são amáveis, mas falta-te
decisão nos passos e firmeza nos gestos.
Procura-te. Tenta encontrar-te antes que te agarre a
voracidade do tempo.
Faz as coisas com paixão. Uma paixão irrequieta,
que não te dê descanso
e te faça doer a respiração. Aspira o ar, bebe-o com força, é
teu, nem um cêntimo pagarás por ele.
Quanto deves é à vida, o que deves é a ti mesmo. Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência com que crescem
as árvores,
canta cada momento que partilhas com amigos, e cada amigo
como um astro que desponta no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor. E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria. A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros os séculos passados e
os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida,
talvez beleza, orgulho, pedaços de prazer.
A estrela que contemplas talvez já não exista, quem sabe,
o que te ajudou a ser vida de quantas vidas precisou. Canta!
Se sentires medo, canta. Mas se em ti não couber a alegria,
não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta. Constrói o teu amor,
vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem, o que
mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual, nada será igual
alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança. E canta quando a
esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e porque gostas de cantar e
porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso. Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade.
Joaquim Pessoa
Sunday 3 May 2020
Aos que virão depois de nós
Nós sabemos:
o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente,
nós,
que queríamos preparar o caminho para a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.
Bertolt Brecht
Friday 1 May 2020
O POETA
O poeta está sentado sobre
a pele do mar. É um poeta pobre mas
na sua fala as palavras são árvores, searas,
incêndios que deslumbram a luz das feridas
e sacodem o vento. No olhar do poeta, a paisagem
exibe-se em círculos de sabedoria e o espaço
é um fulgor tranquilo, não mais que o desejo
que a página tem do corpo do poema. E na
voz, cada sílaba é uma vértebra, breve chave
que se acende como lâmpada iluminando
um orifício azul no horizonte do que é dito,
um rebanho de símbolos sobre a duna
imensa e densa, por onde se repete o
movimento frágil que imola em chama breve,
o breve e deserto caminhar. E o poeta sabe
como as palavras se desdizem, dizendo-se.
Palavras de cal, de mármore e de fogo.
As palavras distantes de si mesmas e em
si mesmas próximas na distância, mapa
transgressivo, possibilidade inacessível
de ser presença e falta, ouro pobre que quer
libertar-se de ser promessa e substância. Então,
o poeta vê arder o mar, arder a sombra, arder
o próprio corpo. E não se importa, não
escolhe outro caminho que o desvie da
dor silenciosa de viver morrendo. De
morrer como quem vive.
Joaquim Pessoa
Subscribe to:
Posts (Atom)