Monday 30 April 2012

A ÚNICA SABEDORIA



Toda a crença
pressupõe uma pretensa sabedoria
revelada.
Eu quero-a conquistada
dia a dia.


Armindo Rodrigues

Friday 27 April 2012

SEMPRE


Éramos muitos...

De vós só restam a lenda
e as cruzes espalhadas
pela vinha
de cepas mutiladas.
E agora enchemos o vosso silêncio
de novas palavras,
palavras a que os vossos lábios
não estavam afeiçoados.

Sois a lenda que surge e teima
em vestir-se com as luzes
que mal se adivinham.
Sois o destino já cumprido,
a história enraizada na vinha
de cepas mutiladas.

Éramos muitos...

e somos mais,
apesar das cruzes
que apodrecem ao relento,
apesar das palavras que nunca chegam
a ser iguais para toda a gente,
apesar da sufocante espera.

Éramos muitos.
E somos mais.

Félix Cucurull

Tuesday 24 April 2012

Não nos deixam cantar

Não nos deixam cantar, Robeson,*
meu canário com asas de águia,
meu irmão negro com dentes de pérola,
não nos deixam cantar as nossas canções.
Têm medo, Robeson,
medo da aurora, medo de olhar
medo de ouvir, medo de tocar.
Têm medo de amar,
medo de amar como amou Ferhat, apaixonadamente.
(Decerto que também vocês, irmãos negros,
têm um Ferhat, como é que lhe chamas, Robeson?)
Têm medo da semente e da terra,
medo da água que corre,
medo da lembrança.
A mão de um amigo que não deseja
nem desconto nem comissão nem moratória
igual a um pássaro quente,
não apertou nunca a sua mão.
Têm medo da esperança, Robeson, medo da esperança!
Têm medo, meu canário com asas de águia,
têm medo das nossas canções, Robeson...


Nazim Hikmet

* Paul Robeson, cantor negro norte-americano. Do seu reportório faziam parte cantos espirituais negros e outras canções tradicionais, de combate e de luta. A dada altura foi proibido de fazer espectáculos nos EUA: ficou célebre o espectáculo que realizou no Canadá, no limite da fronteira com os EUA, ouvido por milhares de compatriotas seus...

Saturday 21 April 2012

Um fantasma percorre a Europa


... E as velhas famílias fecham as janelas,
reforçam a segurança das portas,
e o pai corre às escuras para os Bancos
e o pulso pára-lhe na Bolsa
e sonha de noite com fogueiras,
com reses a arder,
que em vez de trigais tem chamas,
em vez de grãos, chispas,
caixas,
caixas de ferro, cheias de faúlhas.
Onde estás,
onde estás?
Os camponeses passam e calcam-nos o sangue.
O que é isto?

Fechemos,
fechemos depressa as fronteiras.
Vede como avança rápido no vento de Leste,
das estepes vermelhas da fome.
Que os operários não lhe ouçam a voz,
que o seu silvo não penetre nas fábricas,
que não divisem a sua foice erguida os homens dos campos.
Detende-o!
Porque transpõe os mares,
percorrendo toda a geografia,
porque se esconde nos porões dos barcos
e fala com os fogueiros
e trá-los tisnados para a coberta,
e faz com que o ódio e a miséria se sublevem
e as tripulações se levantem.

Fechai,
fechai os cárceres!
A sua voz estilhaçar-se-á contra os muros.
Que é isto?

Mas nós seguimo-lo,
fazemo-lo baixar do vento Leste que o traz,
perguntamos-lhe pelas estepes vermelhas da paz e do triunfo,
sentamo-lo à mesa do camponês pobre,
apresentamo-lo ao dono da fábrica,
fazemo-lo presidir às greves e às manifestações,
falar com os soldados e os marinheiros,
visitar os pequenos empregados nas oficinas
e erguer o punho aos gritos nos Parlamentos do ouro e do sangue.

Um fantasma percorre a Europa,
o mundo.
Nós chamamos-lhe camarada.


Rafael Albertí

Wednesday 18 April 2012

Soneto escrito na morte de todos os antifascistas assassinados pela PIDE


Vararam-te no corpo e não na força
E não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras

Mas feras é demais. Apenas hienas
tão pútridas tão fétidas tão cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens

Morreste às mãos da tarde mas foi cedo
Morreste por que não às mãos do medo
que a todos pôs calados e cativos

Por essa tarde havemos de vingar-te
por essa morte havemos de cantar-te:
Para nós não há mortos. Só há vivos.


José Carlos Ary dos Santos

Sunday 15 April 2012

HOMEM COM ESPERANÇA



Acabaremos algum dia, talvez amanhã,
com as palavras inúteis e bonitas,
com o tinir da porcelana fina,
e com as marionetes de escuras cores.
E ensinaremos aos nossos filhos, paridos sem dor,
o como e o porquê de cada coisa,ẽ deixamo-los ir para a rua, sem medo,
e brincarão a construir povos.
E tocarão na terra,
e fá-la-ão sua e de todos,
e escreverão, com novas palavras,
novas leis, nova história e nova vida.
Também virá um barco de ágil vela,
esquivando tempestades e altivas rochas,
e levará todo o ouro da terra, mitos e falsos deuses,
e deixar-nos-á quedo o mar e uma pequena barca.
Com ela iremos saudar os povos,
às costas uma mochila com ferramentas e livros,
nos olhos um brilho de alegria,
e a esperança nos homens e nos dias.


Joaquim Horta

Thursday 12 April 2012

Revolução


Entre tu e mim
há um montão de contradições
que se juntam
para fazer de mim o sobressalto
que fica de testa suada
e te edifica.


Miguel Barnet

Monday 9 April 2012

Quadras


Tu fazes a vida inteira
esgares junto ao altar,
porque vês nisso a maneira
de viver sem trabalhar.

O padre não mostra cor
política na contenda:
é apenas o defensor
do governo que o defenda.

Se os homens dum deus precisam,
não me deixa satisfeito
o que os padres utilizam
apenas em seu proveito.

Se gostas de bem fazer
com qualquer interesse em vista,
não és quem pretendes ser
és simplesmente egoísta.

Se cá voltasse Jesus,
o mártir, filho do homem,
escorraçava os que comem
à sombra da sua cruz.

Quando a noção do dever
nos der ampla liberdade,
acabará por esquecer
a palavra «caridade».


António Aleixo

Friday 6 April 2012

A Luta



A luta é implacável e cruel.
A luta, como se diz, é épica.
Já tombei. Outro me tomará o posto.
Nada mais. O que conta a vida dum qualquer?

Fuzilamento: e depois os vermes,
tudo isso é lógico e simples.
Nas tempestades estaremos sempre juntos,
meu povo, porque te amámos tanto.

Nicola Vaptzarov

Tuesday 3 April 2012

«CANTAR ALENTEJANO»


1 - Os homens e as bestas

«As balas deram sangue derramado»:
Catarina, em Baleizão - faz hoje 55 anos;
Alfredo Lima, em Alpiarça;
José Adelino dos Santos, em Montemor-o-Novo;
e, outra vez em Montemor-o-Novo, António Caravela e José Casquinha.
Os assassinos: os grandes latifundiários e os seus serventuários de antes e de depois do 25 de Abril.


2 - Balanço trágico

Milhares e milhares de homens, mulheres e jovens perseguidos, presos, torturados: no tempo do fascismo - e no tempo da ofensiva contra a Reforma Agrária;
o Alentejo em estado de sítio, ocupado pelas forças repressivas: no tempo do fascismo - e no tempo da ofensiva contra a Reforma Agrária.
O Alentejo do latifúndio, com herdades entre os 1 000 e os 10 000 hectares: no tempo do fascismo - e no tempo posterior à destruição da Reforma Agrária.


3 - O tempo novo

A Reforma Agrária foi:
a decisão histórica dos trabalhadores de avançarem para as terras, ocupá-las e cultivá-las, eliminando o latifúndio, numa altura em que a sabotagem económica levada a cabo pelos agrários punha em perigo a liberdade e a democracia acabadas de conquistar;
logo ao fim de um ano, 1 140 000 hectares de terra ocupados e a produzir como nunca antes acontecera;
mais de 50 000 postos de trabalho criados, acabando com o desemprego e com a fome;
a criação de uma vasta rede de creches, jardins de infância, centros da terceira idade;
a transformação das velhas relações de produção capitalistas em relações de cooperação e solidariedade, pondo termo, naquele universo e naquela situação concreta, à exploração do homem pelo homem;
o Futuro a ser construído.


4 - Outra vez o tempo velho

A contra-Reforma Agrária foi:
a restauração do latifúndio através de um processo criminoso e devastador iniciado pelo Governo PS/Mário Soares, em 1976, e prosseguido por todos os governos que se lhe seguiram: Sá Carneiro, Mota Pinto, Balsemão/Freitas, Cavaco Silva...
todos recorrendo ao golpe, à fraude, à mentira, à calúnia, à ilegalidade;
todos ordenando os roubos de terras, de colheitas, de cortiça, de máquinas, de alfaias, de gados;
todos fora-da-lei, violando ostensivamente a Constituição da República e rasgando insolentemente centenas de decisões favoráveis à Reforma Agrária emitidas pelos tribunais; todos não hesitando em submeter o Alentejo a ferro e fogo, em mandar perseguir, prender, submeter a interrogatórios pidescos, torturar, milhares de trabalhadores - em mandar disparar, ferir, matar;
todos destilando o ódio de classe que os invadia e exibindo-se como serventuários caninos dos velhos latifundiários - dos mesmos que, anos antes, tinham Salazar como seu serventuário canino;
o Passado retrógrado, explorador e opressor regressado aos campos do Alentejo.


5 - O FUTURO:
a certeza de que a Reforma Agrária nos mostrou um pedacinho do Futuro pelo qual lutamos;
a certeza de que não há Democracia sem uma Reforma Agrária que restitua a terra a quem a trabalha;
a certeza de que os mortos, não os deixamos para trás, abandonados;
a certeza de que a luta continua;
a certeza de que VENCEREMOS.

Sunday 1 April 2012

A SOCIEDADE DE CONSUMO


A sociedade de consumo é um balcão.
Nela se vende o pão,
se vende o amor,
se vende o sonho, se vende a bondade,
se vende a justiça, se vende o favor,
se vende o acesso à informação,
se vende a modéstia, se vende a vaidade,
se vende a honra, se vende a fé,
se vende a vontade, que é uma ilusão,
se vende a morte, que não o é.

Armindo Rodrigues