Havia uma palavra fundamental.
Dissemo-la uma noite perto da mulher
que soluçava junto do cadáver
do filho morto a tiro.
Dissemo-la uma tarde quando os sicários
lançaram sobre o cais o afogado,
porque estava nas pálpebras
e no vazio da boca.
Repetimo-la quando o sangue dos nossos camaradas
corria sobre os ladrilhos de San Lorenzo
arrastando pequenos fragmentos encefálicos,
filamentos de vísceras fugazes
urina e rum e alentos rancorosos.
Fomo-la repetindo nas enfermarias,
nos prostíbulos com ébrios e marujos,
nos cinemas e nas fábricas.
Dissemo-la um dia entre estampidos e clarins
à hora de uma das vitórias,
gritámo-la à porta dos escritórios,
das embaixadas e das escolas
até que vimos uma coluna de gente
erguida pela palavra persistente.
À nossa volta reinava o silêncio
que cerceia todo o som,
o silêncio sem parques,
sem escolas, sem fábricas,
o silêncio sem rotativas,
sem carabinas, sem crianças,
o silêncio sem recordações
sem quandos nem mais tardes,
em que começámos a repetir
a esclarecer a esgrimir a acariciar
essa ardente palavra.
Aldo Menéndez
Thursday 30 December 2021
Revolução
Monday 27 December 2021
Antes que seja tarde
Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
Manuel da Fonseca
Friday 24 December 2021
A existência alheia....
A existência alheia,
a alheia dignidade,
os direitos alheios pouco são
para os orgulhosos governantes
de hoje, como de sempre.
Por isso,
toda a ordem que de um mando provém,
toda a autoridade que alguém exerça,
e, em consequência, toda a dominação,
são um abuso e um esbulho.
Na sociedade de classes é a lei
a grande prostituta.
Armindo Rodrigues
Tuesday 21 December 2021
Sentença
Quem pense e não aja
conforme ao que pensa
faz aos mais ofensa
e a si próprio ultraja.
Bem haja, bem haja
quem o medo vença.
Armindo Rodrigues
Saturday 18 December 2021
NA FÁBRICA ONDE EU TRABALHAVA
na fábrica onde eu trabalhava havia muito frio
mas os meus camaradas sorriam e contávamos histórias uns aos outros
de vez em quando encandeávamo-nos e esfregávamos os olhos
depois olhávamos admirados a perfeição da soldadura
medíamos dobrávamos batíamos o ferro
e era como se pouco a pouco algo dentro de nós se construísse
tínhamos ali as nossas entranhas e o nosso jardim
e aquilo era como a nossa horta ou a nossa casa à hora do almoço
José Vultos Sequeira
Wednesday 15 December 2021
Aviso
A noite que precedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que estava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos punhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
que o seu rosto num sorriso se lhe abriu
Não tinha apenas um único camarada
mas sim milhões e milhões de camaradas
para o vingarem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a alvorada
Paul Éluard
Sunday 12 December 2021
Gorila
O gorila é um animal
quase inteiramente humano.
Não tem patas quase pés,
não tem garras quase mãos.
Estou-lhes a falar
do gorila do bosque africano.
O animal que aqui se mostra,
por pouco
é inteiramente um gorila.
Patas em lugar de pés
e quase garras em lugar das mãos.
Estou-lhes a mostrar
o gorila americano.
Adquiriu-o
num quartel o nosso agente
para o Grande Zoo.
Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)
Thursday 9 December 2021
Poema
Anda, vá, conta uma história
conta uma história qualquer,
conta lá, mamana Elisa
«Uma vêgi uma muilher
ficou triste, triste, triste
qui nunca mais tinha filho...»
(Mamana: a tristeza existe?
existe, mamana? existe?)
«Homi não qu'ria mais ela
porqui filho não nascia...»
(Que história!... Não gosto dela,
não era essa que eu queria...)
«Está bem, eu vai contar
aquela... da flor de rosa
qui vinha à noite dançar...
Mas óia, minino, óia
qui tu já tem muita idade...
Porque é qui tu nunca gosta
da história qui são virdade?...»
Guilherme de Melo
(In Poetas de Moçambique)
Monday 6 December 2021
Linc(h)e
Linc(h)e do Alabama.
Rabo em forma de chicote
e garras terciárias.
Costuma manifestar-se
com uma grande cruz em chamas.
Alimenta-se de negros, cilhas,
fogo, sangue, cravos,
alcatrão.
Capturado
junto a uma forca. Macho.
Castrado.
Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)
Friday 3 December 2021
O Caraíba
No aquário do Grande Zoo,
nada o Caraíba.
Este animal
marítimo e enigmático
tem uma crista de cristal,
lombo azul, cauda verde
ventre em coral compacto,
barbatanas cinzentas de ciclone.
No aquário, esta inscrição:
«Cuidado: morde».
Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)
Wednesday 1 December 2021
Necrologia
A poesia está aí, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...
Para exemplo
de pura ocasião
a poesia está, todos os dias
na necrologia dos jornais:
é crianças e mais crianças...
na relação dos feridos
nas catacumbas das prisões
e nos bancos dos hospitais:
«acometido de doença súbita
no Musseque da Lixeira,
foi transportado na ambulância,
Domingos João, que morreu
hoje, quinta-feira»
A poesia está aí, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...
E, até por ironia,
está escondida nas necrologias dos jornais!...
António Cardoso
(In Economia Política Poética)
Tuesday 30 November 2021
Cantiga do ódio
O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração:
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?
Carlos de Oliveira
Saturday 27 November 2021
Diálogo quase poesia
Tu sabes, mãe - disse o pássaro - os aviões
também voam.
- Voam mas não têm coração. Engolem homens
aos milhares.
- Para quê?
- Para que o voo seja pago.
- Voo pago? Como pode ser pago e ser voo?
- É por isso que os aviões não cantam. Só nós
cantamos
porque ninguém pode comprar o nosso voo.
Sidónio Muralha
Wednesday 24 November 2021
Versos sobre o passaporte soviético
Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis».
Menos aquele...
Passando ao longo
dos compartimentos
e cabinas,
um funcionário,
e que polido,
avança.
Cada um apresenta o passaporte,
e eu,
dou
o meu
pequeno bilhete escarlate.
Para alguns passaportes
há sorrisos,
para outros -
vontade de os cuspir.
Têm, por exemplo,
o direito ao respeito
os passaportes
com o leão inglês
em dois lugares.
Devorando
com os olhos o grande personagem,
fazendo saudações e curvaturas
pega-se,
como numa gorjeta,
no passaporte
de um americano.
Para o polaco
há o olhar
da cabra frente ao edital.
Para o polaco -
uma fronte enrugada
num elefantismo policial -
de onde vem este
e que são
estas inovações na Geografia?
Mas é sem voltar
a abóbora-cabeça,
sem experimentar
qualquer emoção forte,
que se aceita
sem pestanejar
os papéis do dinamarquês
e dos suecos
de todas
as espécies.
Súbito,
como lambida
pelo fogo,
a boca
do cavalheiro
se torce.
O senhor
funcionário
tocou
a púrpura deste meu passaporte.
Toca nele
como se fosse bomba,
toca nele
como se fosse ouriço,
toca nele
como em cobra cascavel,
de vinte dentes,
de dois metros e mais de comprimento.
Cúmplice
piscou
o olho do carregador
que está pronto
a carregar, de graça as minhas malas.
O agente
contempla o chui,
e o chui
o agente.
Com que volúpia
me teria,
a espécie policíaca,
batido, crucificado,
porque
tenho nas mãos,
trazendo foice
e trazendo martelo,
o passaporte soviético.
Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis»,
menos aquele...
Das minhas
profundas algibeiras tirarei
o atestado
deste enorme viático.
Leiam-no bem,
Invejem -
eu
sou um cidadão
da União Soviética.
Maiakovski
Sunday 21 November 2021
Carta de um contratado
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloua
dos teus olhos doces como maconde
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por hí...
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos dias na capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação...
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o kilombo
outra a ela não tivesse merecimento.
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajús e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos do nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...
Eu queria escrever-te uma carta...
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é
meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh desespero! - não sei escrever também!
António Jacinto
Thursday 18 November 2021
Havemos de voltar
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar
Às nossas terras
vermelhas do café
brancas do algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar
Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar
Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar
À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar
À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar
À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar
Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente.
Agostinho Neto
(Cadeia do Aljube, Outubro de 1960)
Monday 15 November 2021
A um Papa
Poucos dias antes que morresses, a morte
tinha posto os olhos num teu coetâneo:
aos vinte anos, eras estudante,
ele servente,
tu, nobre, rico,
ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma que se tornava assim nova.
Vi os seus despojos, pobre Zuccheto.
Girava de noite, bêbedo, em volta dos Mercados,
e o eléctrico de São Paulo atropelou-o
e arrastou uma parte pelas linhas entre os plátanos:
algum tempo ali ficou, sob as rodas:
alguma gente se reuniu em torno a olhá-lo
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque tu existes,
um velho polícia, desleixado como um «guapo»,
gritava a quem se encostava muito: «Larguem-lhe a braguilha!»
Depois veio o automóvel dum hospital a carregá-lo:
a gente dispersou, ficou qualquer frangalho aqui e ali,
e a dona de um bar nocturno,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto acabara sob um eléctrico, finara-se.
Poucos dias depois acabavas tu.
Zuccheto era um
da tua grande grei romana e humana,
um pobre bebedola, sem família e sem leito,
que girava de noite, vivendo quem sabe como.
Tu não sabias nada: como não sabias nada
de outros tantos e tantos cristos como ele.
Talvez seja feroz ao perguntar-te por que razão
a gente como Zucchetto era indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem numa poeira antiga, em lama de outra época.
Precisamente não longe donde viveste,
à vista da bela cúpula de S. Pedro,
há um destes lugares, o Gelsomino...
Um monte talhado ao meio por uma mina e, em baixo,
entre pedras e uma fila de novos prédios,
um grupo de míseras construções, não casas mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto teu, uma palavra tua,
para que aqueles teus filhos tivessem uma casa:
tu não fizeste um gesto, não disseste uma palavra.
Não te pedíamos que perdoasses a Marx! Uma onda
imensa que se refracta por milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas na tua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
perante os teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu o sabias: pecar não significa fazer mal:
não fazer bem, isso significa pecar.
Quanto bem podias fazer! E não o fizeste:
não houve um pecador maior do que tu.
Pier Paolo Pasolini
Friday 12 November 2021
Tempo de rusgas
I
Era tempo de rusgas.
Havia ordens terminantes
mas era preciso não andar desarmado.
A revista nas estradas era intensa.
Bem armado
passei sem licença de porte de arma
minha mão comprimindo no bolso
as coronhas de 3 poemas.
II
Os que não são poetas
ignoram o que é estarmos em reclusão
armados de conluios até aos dentes.
E na sua imprevidência
não sabem que um poema detido
mesmo de cor na cabeça
também é uma forma
dialéctica
de lhes armar o cerco.
III
Sou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.
A raça dos homens ao natural
que amam o amor sem as mil
fictícias boas maneiras
burguesas.
Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.
Raça de revolucionários cheios de defeitos
e apenas uma pequeníssima qualidade:
Mesmo inseridos em molduras de alvenaria
com uma força de segurança no exterior
não compramos o Amor
e não nos vendemos!
José Craveirinha
(In Cela 1)
Tuesday 9 November 2021
Um Homem nunca chora
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!
José Craveirinha
(In Cela 1)
Saturday 6 November 2021
Uma certa maneira de cantar
Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho
com egoísmo de fonte.
Quando sente voos na garganta
desce ao caminho
da solidão do seu monte,
e canta
em coro com a família do vizinho.
Não me parece pois necessária
outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão -
para explicar a reforma agrária
no Alentejo.
É apenas uma certa maneira de cantar.
José Gomes Ferreira
Wednesday 3 November 2021
Infância
Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.
A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.
Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.
Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!
Ary dos Santos
Monday 1 November 2021
Vossos nomes
No chumbo, no terror, na morte, com sangue escrevo,
Alfredo e Catarina,
vossos nomes.
Na pedra, no ácido, neste branco muro escrevo,
Humberto e Militão,
vossos nomes.
Nas trevas, no medo, na raíz da aurora, escrevo,
Maria e Lourenço,
vossos nomes.
No sonho, nos ventos, na flor do trigo escrevo,
Pedro e Guilherme,
vossos nomes.
No aço das duras tarefas, no relâmpago escrevo,
Álvaro e Rui,
vossos nomes.
No amor, na cólera, na fome desta ave escrevo,
Virgínia e António,
vossos nomes.
No sol que levamos, na verde esperança escrevo,
Paula e Dinis,
vossos nomes.
No riso, nas lágrimas, no coração da pátria escrevo
e semeio
vosso nomes.
No ventre em flor da minha amada semeio, escrevo
e multiplico
vossos nomes.
Papiniano Carlos
Saturday 30 October 2021
Um dia virá...
Um dia virá, como uma borboleta,
em que através dos campos um hálito benigno,
caricioso e doce, tudo fecundará.
Então, pedras, ou nuvens, ou rios, ou estrelas
obedecerão aos homens, nunca mais divididos
em senhores e escravos, em ambiciosos e humildes.
Será a era fácil de uma felicidade
feita de farto pão, de paz, de amor fraterno,
dificilmente obtida por uma luta tenaz.
Deixarão de existir a cobiça, a inveja,
o gosto de domínio, a intriga, a traição,
a petulância, o espanto, o desalento, a ira.
Mas quando é que virá esse dia final?
Armindo Rodrigues
Wednesday 27 October 2021
Poema
Neste ano de 1962
primeiro de Maio
ao começo da noite
podemos finalmente olhar no espelho a nossa imagem
sem temor nem vergonha
Na solidão do quarto meu Amor
podemos pela primeira vez
deixar de recear futuros julgamentos
e as perguntas silenciosas nos olhos dos vindouros
esquecer a humilhação o insulto sem resposta
que foi o nosso pão quotidiano e áspero
Agora podemos ser de novo homens
livres ainda que presos
mastigando a comida sem o sabor a lágrimas
antes com o sal da esperança
merecido tempero paga justa da luta
Renegamos o passado maculado de angústias
esquecemos as pequenas diárias covardias
os negócios onde tudo se perde e até a honra
Neste primeiro de Maio de 1962
podemos finalmente sorrir sem amargura
Daniel Filipe
(«Pátria, lugar de exílio»)
Sunday 24 October 2021
Uma vez eu tive um cravo
Uma vez eu tive um cravo
cravado no coração,
e eu não me acordo já se aquele cravo era
de ouro, de ferro ou de amor.
Só sei que ele me fez um mal tão fundo,
que tanto me atormentou,
que eu dia e noite sem cessar chorava
qual chorou Madalena na Paixão.
«Senhor, Vós que podeis tudo -
pedi a Deus numa ocasião -
dai-me valor para arrancar de um golpe
cravo de tal condição».
E deu-mo Deus e arranquei-mo.
Mas... quem pensara?... depois
já não senti mais tormentos
nem mais soube o que era dor;
soube só que não sei quê me faltava
onde o cravo me faltou,
e até penso que tive saudades
ai, meu Deus! da antiga dor.
Este barro mortal que envolve o espírito
quem o entenderá, Senhor!...
Rosalia de Castro
Thursday 21 October 2021
Caçando gambozinos
Vem caçar gambozinos
jovem d'olhar brilhante
e eterno coração
vem sem nada trazer na mão
e esperes não
que eu t'empreste
meu alçapão
vem
e aprende à tua custa
que a vida não é senão
uma eterna caçada
aos gambozinos
esse animal feito de sonho
e ilusão
e que assim mesmo
vala a pena a perseguição.
João Melo
(Angola)
Monday 18 October 2021
O novo mandamento
Está criado
o novo mandamento. Aos pássaros
dirás: não cantareis; às flores:
não florireis. E florirão
as bombas. E ao sangue
dirás: rio
serás. E sobre
os escombros erguerás
o homem novo, o seu cadáver, desenharás
a ferro e fogo o mapa
do luto e das lágrimas. E imporás,
enfim,
a liberdade. A liberdade
do terror das armas. A liberdade
para matar.
Albano Martins
Friday 15 October 2021
Perguntas
Onde estavas tu quando fiz vinte anos
e tinha uma boca de anjo pálido?
Em que sítio estavas quando o Che foi estampado
nas camisolas das teen-agers de todos os estados da América?
Em que covil ou gruta esconderam as suas armas
para com elas fazer posters cinzentos e emblemas?
Onde te encontravas quando lançaram mão a isto?
E atrás de quê te ocultavas quando
mataram Luther King para justificar sei lá que agressões
ao mesmo tempo que víamos Música no Coração
mastigando chiclets numa matinée do cinema Condes?
Por onde andavas que não viste os corações brancos
retalhados na Coreia e no Vietname
nem ouviste nenhuma das canções do Bob Dylan
virando também as costas quando arrasaram Wiriamu e
enterraram vivas
mulheres e crianças em nome
de uma pátria una e indivisível?
Que caminho escolheram os teus passos
no momento em que foram enforcados
os guerrilheiros negros da África do Sul
ou Allende terminou o seu último discurso?
Ainda estavas presente quando Victor Jara
pronunciou as suas últimas palavras?
E nem uma vez por acaso assististe
às chacinas dos Esquadrões da Morte?
Fugiste de Dachau e Estalinegrado?
Não puseste os pés em Auschwitz?
Que diabo andaste a fazer o tempo todo
que ninguém te encontrou em lugar algum?
Joaquim Pessoa
Tuesday 12 October 2021
vertigem
Saturday 9 October 2021
estética do domínio II
toda a pobreza é bela aos olhos do homem que negoceia peles, ossos, braços e cérebros de outros homens.
Miguel Tiago
Wednesday 6 October 2021
Sunday 3 October 2021
sem título
há um barco que nos leva
através da vaga.
sob a maresia há portos de abrigo.
ao longe. após as fragas.
Miguel Tiago
Friday 1 October 2021
acordo ortográfico
bem sei que a escrita não faz parte da Língua
ainda bem.
escrever ato não escrevo
persisto no acto
não gosto de ser lambido por uma língua morta.
Miguel Tiago
Thursday 30 September 2021
As armas - tradução de "Des Armes", de Léo Ferré.
As armas, as bonitas, as brilhantes
As que devemos limpar amiúde para o prazer
E que devemos acarinhar como para o prazer
E são, ainda, o que faz sonhar os que vivem em comunhão.
As armas, azuis como a Terra
As que devemos guardar no calor do fundo da alma
Nos olhos, nos corações, nos braços de uma mulher
Que guardamos dentro de nós como se guarda um mistério.
As armas, no segredo dos dias
Sob a erva, no céu e na escrita
As que te farão sonhar muito tarde nas leituras
E que trazem a poesia ao discurso.
As armas, as armas, as armas
E os poetas de serviço ao gatilho
Para acender os últimos cigarros
No fim de um verso francês brilhante como uma lágrima.
Miguel Tiago
Monday 27 September 2021
sem título
as flores caem
o fim é o princípio
e as flores nascem
o princípio é o fim
só a morte semeia a vida
o espaço entre os corpos é o vazio
o mais sólido dos preenchimentos
deixar que me tome nos braços o medo e o precipício
para nos meus tomar o voo da coragem
Miguel Tiago
Friday 24 September 2021
segunda semana
da janela por onde olho
o longe quase me toca a ponta dos dedos
o beijo no ombro
o cheiro da manhã
de maio mesmo aqui
enquanto passa ao longe uma semana
que navega as águas do rio.
Miguel Tiago
Tuesday 21 September 2021
sem título
que as lâminas de água dos rios se perturbem
e a turbulência agite as moléculas do tempo
do tempo
esse companheiro assassino
que nos enfia o veneno oxidante
pela alma adentro
até aos pulmões.
Miguel Tiago
Saturday 18 September 2021
Wednesday 15 September 2021
sem título
de quantas vozes o destino
é assassino
de quantos destinos as mãos
são o martelo e o escopro
de todos o céu escuro só mostra
pequenos pontos
a astronomia e o bom senso negam relação
de todos é o sopro
que trazemos dentro do coração
o mais constante
o mais fiel e dedicado artesão
Miguel Tiago
Sunday 12 September 2021
sem título
quando o futuro é um espinho
que se te crava na garganta
e o presente um peso
que te amarra ao fundo do mar
toda a tua esperança é o passado
e o passado nunca é esperança
Miguel Tiago
Thursday 9 September 2021
sem título
das frases
dos ventos
e das rosas
sopras um beijo
da raiz
da estrada
que me leva
inexorável a ti
como um fruto
ou uma praia
de cujas ondas a espuma
apaga um beijo na areia
que efémero
fica para sempre
escrito
nas letras
de um poema épico
que por falta de dom
nunca saberei escrever.
Miguel Tiago
Monday 6 September 2021
da arte poética
um poema é um conjunto de palavras que requer um trabalho que não tenho,
não sei ter, nem ambiciono conseguir ter. a poesia enquanto arte é um
fascínio a que felizmente muitos nos podemos entregar porque há quem a
ela se entregue como a um cuidado ofício, como a um esforço de uma vida
porque um verso perfeito é como uma peça única, com horas de trabalho de
concepção, execução, aperfeiçoamento.
o exercício que realizo está muito aquém do esforço dos poetas, tal como
estaria aquém do esforço de um escultor eu partir uma rocha casualmente
com um escopro.
no entanto é a esse exercício que quero e posso dedicar-me.
não é dizer uma coisa na sua forma perfeita, no seu estado poético. é
dizer uma coisa no momento em que ela surge e me toma, mesmo que no
estado sólido.
é uma questão mais de tempo que de forma ou conteúdo. se a palavra tem
espaço, e tem forma certa, também tem de ter tempo. tempo certo.
esculpir cuidadosamente o verbo, a forma, adaptá-la magistralmente ao
conteúdo, é um dom que dificilmente se adquire e, certamente, não é para
preguiçosos.
Miguel Tiago
Friday 3 September 2021
(o-som-da-pequena-flauta-do-amolador)
uma alvorada cortada pelo gume
da coragem afiada
na pedra de amolar corações
e o homem que assobia
e faz chover já não precisa de pedalar mais
na bicicleta parada
porque o tempo acabou
e de ora em diante
só chove.
Miguel Tiago
Wednesday 1 September 2021
Monday 30 August 2021
última página
que no horizonte falso acendeu madrugadas
e estrelas
e no fogo consumiu manhãs e noites que nunca foram frias
esta é a última página deste livro
rasguei-a
ao vento que te agitava os cabelos
e entrava vindo do mar na casa em que não escrevi prefácio
a última página do livro não é a melhor
sem ela restaria a edição póstuma reunida pelos familiares sobreviventes.
Friday 27 August 2021
o passado é para sempre
sob a pele nos ficam as tatuagens
por cada vez que no peito nos bate outro coração.
Miguel Tiago
Tuesday 24 August 2021
silêncio
um fio de céu
escorre nos ponteiros da bomba-relógio
que bate no peito
dos descoraçoados
a cada segundo
do primeiro suspiro
sob o mar de copas
por onde os raios da noite
penetram agudos
os pulmões exaustos
lâminas frias que rombas
rasgam o som que fazemos
quando estamos em silêncio
Miguel Tiago
Saturday 21 August 2021
sem título
Wednesday 18 August 2021
História
o homem constrói o mundo
o tempo é simultaneamente matéria-prima, meio e substrato
é o materialismo poético.
Miguel Tiago
Sunday 15 August 2021
sem título
Thursday 12 August 2021
sem título
ainda tenho na ponta dos dedos
o sabor da tua alma
na língua
o tacto telúrico do teu calor.
do sol raios já deitados douram a minha pele
e nua abraças a minha cor acesa.
até que a luz, de tão rara, se extinga.
Miguel Tiago
Monday 9 August 2021
Friday 6 August 2021
jardim de inferno
enquanto sob os teus pés se contorcem as labaredas
a figueira-do-diabo ferve-te as artérias
e o sono falta-te como te falta o aconchego
de uma voz que murmura
as folhas caídas de um outono distante
crepitam agora toda a noite
a lava ilumina apenas os que fecham os olhos
não é um incandescência qualquer.
Miguel Tiago
Tuesday 3 August 2021
versos para vermes
hoje não nos falta poesia, falta-nos coragem
e só isso te dá coragem para que fales de poesia.
Miguel Tiago
Sunday 1 August 2021
no boundaries theory
da mesma árvore os frutos
na estação certa
do mesmo olhar uma chama intensa
na noite certa
não há limite de vezes para morrer de amor
pela pessoa certa.
Miguel Tiago
Friday 30 July 2021
no meu país
que migalhas de ricos há espalhadas com fartura
no caixote do lixo da burguesia
que dá pelo nome de i pê ésse ésse
e não falta gente que atire restos aos pobres
como quem manda milho aos pombos
com a diferença que é mais nobre combater a solidão
que a ocupação de tempos livres com gente
para fazer da caridade um penduricalho mais barato que uma sessão de cabeleireiro
ou um passeio da avenida que é da liberdade de alguns
desde que tenham carro comprado após dois mil
ninguém lhes deu ordem de ir nascer na periferia
com tanto condomínio de luxo por aí devidamente licenciado
ou terem ido escolher vir ao mundo só com mãe
e sem pai isto só visto
porque toda a gente sabe que enquanto aqueles corações batem
há uma veia de empreendedorismo a latejar
e um banco pronto prontinho a financiar o arrojo dos septuagenários sem pensão
diga-se a bem da verdade
só fica sem emprego quem quer
só vive na solidão quem quer
só morre no mar quem quis viver pescador e ousou ter fome em dia de temporal
só morre de neoplasia maligna quem quis ser mineiro e inspirar urânio
no meu país só fica à porta do hospital quem quer
pode sempre entrar
nem que seja pela porta da morgue
no meu país só é despedido quem quer porque escolheu precisar de trabalhar
no meu país só entrega casa ao banco quem quer
podia sempre comprar a pronto
só passa fome quem quer
enquanto diz merda quem pode.
Tuesday 27 July 2021
ars moriendi
das nuvens
dos raios de sol que chovem
das ondas do som que nos agita
nos perpassam como
varas rombas
dos cheiros
e das flores mortas
dos buracos escuros
e copos vazios
dos troncos robustos
do carvalho
do olhar dos homens perdidos
das mulheres amigas
do significado das letras
das palavras
das figuras
das sombras
das luzes
de cada braço da respiração
que nos arqueia
de cada flecha que suspiramos
em direcção ao vazio
que enche os peitos dos outros
e os outros somos nós
para os outros
do mundo
e das folhas avermelhadas do outono
que ano após ano se abate sobre
o nosso dorso já cansado
do tamanho
do volume
do abismo
do tempo
da fugacidade
da areia ser uma forma de luz
e os corpos nus uma recordação
do paraíso
e da impossibilidade de conter nos livros a velocidade.
e da aceitação.
do abraço.
Miguel Tiago
Saturday 24 July 2021
hegemonia
vieram os lobos
esta é uma noite fria.
depois de a voz se ouvir
como um punho
que podia destruir com a verdade
todas as correntes e cadeias,
não sobreviveu um grito
de testemunho nos manuais escolares.
nas voz dos homens uivam os lobos
que, infelizmente, também são homens.
a pele nua contudo é perene.
irrompe o sol de onde sempre nasce
aquecerá os campos e as cidades
não voltam os lobos a uivar
na voz dos homens.
Miguel Tiago
Wednesday 21 July 2021
Sunday 18 July 2021
sem título
viemos sabemos do horizonte
um som desenhado no vazio
uma molécula de infinito
que se acendeu
uma fracção de matéria que se apropriou
da consciência sobre si mesma
um fio de presente
uma árvore de raízes enfiadas no passado
criança de braços estendidos ao futuro
uma ave antes de ter nome
não retornamos ao nascer do sol
apesar da madrugada
a origem é cada ponto da pele
onde as agulhas do tempo se espetam
gravando minutos numa tinta espessa
até que a casca nos envolva como a um sobro
e o horizonte nos tome em contra-luz no poente
Miguel Tiago
Thursday 15 July 2021
cosmos
é indiferente existirem fronteiras entre pessoas
ou pessoas entre fronteiras
o limiar divide nada
nem da terra aparta o céu o mar o voo das aves
ou os fluídos seminais
que na osmose constante fundem
todos os corpos
na fecundidade do pensamento
na afinal totalidade que as estrelas trazem no bojo
a que demos o nome de humanidade.
Miguel Tiago
Monday 12 July 2021
fogo e mar
todos os dias são nevoeiro
e ao fundo um navio
sobre águas escondidas
sob o espesso branco.
na lonjura dilui-se no horizonte
a esparsa luz.
albatroz a maior envergadura das aves marítimas
e do reino animal maior agoiro.
todo o mar é nosso.
não. todos somos do mar.
foi sob o céu negro que a história ardeu
sobre as águas tranquilas da baía.
Miguel Tiago
Friday 9 July 2021
Tuesday 6 July 2021
a questão é a resposta é a questão
Saturday 3 July 2021
cardiofrágio
naufragar.
nave desfaz-se contra fragas.
há-de se fazer um verbo para quando
nas fragas se desfaçam corações.
Miguel Tiago
Thursday 1 July 2021
curta é a viagem quando ansiamos a lonjura
as bermas da estrada fundem-se
passado o rubicão da miragem
do ponto de fuga sobrará
a falta de esconderijo
não importa o destino
nem a viagem.
quantas milhas faltam para o horizonte?
e as bermas da estrada que se desentrelaçam
na vertigem de chegar
não há milhas que cheguem para confortos que não existem.
Miguel Tiago
Wednesday 30 June 2021
mar
essa maresia de sal
essa habituação de água
essas fragas firmes
que nunca vencem a batalha
esse fundo escuro
essa lua espalhada
esses cardumes dúcteis
que perderam o caos no dia em que nasceram
do meu sangue os elementos químicos e as moléculas.
Miguel Tiago
Sunday 27 June 2021
Thursday 24 June 2021
sem título
de um naufrágio podem salvar-se as almas
havendo arrependimento
mas salvam-se corpos
havendo terra firme
tu és terra firme.
Miguel Tiago
Monday 21 June 2021
o futuro escrevemos nós
um envelope selado com o lacre dos séculos
chegou de mão em mão porque privatizaram os correios
no destinatário lia-se "presente",
no remetente, "futuro".
no interior, uma carta em branco em que faltava apenas escrever uma palavra.
Friday 18 June 2021
Tuesday 15 June 2021
sem título
do que
café sem princípio?
para mim é um, se faz favor. sem princípio nem fim.
Miguel Tiago
Saturday 12 June 2021
sem título
a casa abandonou-me, vazia. e os lençóis tremem de frio nas mais quentes noites de verão. frio ou solidão.
já nada habita o interior e apenas o verde das plantas na varanda
lembram, ainda que remotamente, alguém. ou a projecção da sua sombra no
vidro fosco da porta da sala, porque ao vento, ligeiramente, ondulam e
agitam as pequenas folhas.
resta-me um último refúgio, onde ainda respiro, como se de lá pudesse
sorver o oxigénio que me leva a ausência, ainda que em doses curtas. é a
gaveta esquerda, a mais próxima da minha cabeça e a única onde deixaste
o que quer que seja.
Miguel Tiago
Wednesday 9 June 2021
Sunday 6 June 2021
vazio
Thursday 3 June 2021
inconsequência
das ondas do mar
o vento a vela e as nuvens
como se dali nascessem os naufrágios
e chorassem naus a plenos pulmões
enquanto o fundo do mar abre os braços
dos abismos
e as profundezas murmuram as últimas lembranças
da luz e da superfície.
esse mar
eu naufragado, fragmentado contra uma fraga
de rochas feitas de sonhos que não cumpri.
Miguel Tiago
Tuesday 1 June 2021
Sunday 30 May 2021
- sem título -
viremos o mar do avesso.
ficam as nuvens por dentro
dos nossos estômagos,
e a saliva tornar-se-á sal
feito de pessoa,
halite humana
hálito salino.
Miguel Tiago
Thursday 27 May 2021
ao H.
de tantas vozes
as de um mundo inteiro
a que nos sussurra
amizade
é o mais poderoso pilar dos continentes,
e de todos o mares o mais
seguro cais.
Miguel Tiago
Monday 24 May 2021
meu poema
eis a luz que de ondas pelas artérias faz dos homens
coração dos pássaros
e estrelas dos olhos das pedras da montanha
lido um verso um verbo um fruto
uma semente nua que no ventre
traz chamas ao vento.
Miguel Tiago
Friday 21 May 2021
das que foram necessárias
de quantas tempestades terão os cravos de brotar
até romper a crusta de chumbo que nos reveste os pulmões?
Miguel Tiago
Tuesday 18 May 2021
homens de plástico
os homens de plástico
que podem ser mulheres
e às vezes são cães
são feitos na fábrica da psicopatia
construídos a preceito
no molde da fingida e sempre presente simpatia
mostram os dentes sem qualquer sentimento
para esconder o pensamento
mesmo que sejam mulheres
podem ser cães
os homens de plástico
não são andróides
são filhos da puta
não são máquinas
podem ser mulheres
e na maior parte das vezes são cães
os homens de plástico agradecem a quem lhes dá de comer
e devem-lhes eterna gratidão
como um cão
os homens de plástico são criados de pequeninos
habituados a ter criados para serem criados de alguém
os homens de plástico são todos iguais
podem ser mulheres e muitas vezes são cães
fabricados na linha de montagem sabujo topo-de-gama
fato cintado ou saia fato
a coleira e a trela disfarçadas sob a gravata ou o lenço
ou mesmo escondidos na mama
e sempre à margem da lei sem açaime
que dispensaram ao alfaiate
os homens de plástico seduzem-nos a carne e a alma
o predador atrai a presa
indefesa no meio da lama
humana
o homem de plástico
pode ser mulher
e muitas vezes é cão
e ter-nos-á cerrados na mandíbula
até que em vez de nos foder
o comermos nós com pão
Miguel Tiago
Saturday 15 May 2021
"enquanto estás à espera ninguém te pode ajudar"
vieram aos montes do outro lado do rio, sobre solas desfeitas,
vieram arrastando as pernas magras pesadas,
vieram em multidões, atravessaram desertos e a sede e a fome e o sol,
vieram nessa marcha longa de mãos dadas, de todos os cantos do mundo, principalmente do poente,
vieram com o mundo nas mãos sem força para segurar um pão
eram escravos,
eram servos,
eram operários,
vieram do mais longe do tempo,
de uma floresta devastada,
de um caminho de ferro
(a perder de vista),
vieram dos campos gelados e dos mares revoltos,
no dorso de um cavalo esquálido,
vieram da máquina,
de uma fábrica, do ruído,
vieram de uma bancada, de um torno,
vieram de enxada,
de enxurrada,
vieram da raiva, das mãos duras e dos olhos tristes,
vieram de longe até chegar aqui.
e quando aqui chegaram fizeram o mundo
que toda a vida tinham esperado de deus.
Miguel Tiago
Wednesday 12 May 2021
sem título
já os caminhos são sombras
uma ruína no futuro
um castelo
já o abismo nos tomou nos braços
um trapo branco ondula
sobre o terreno sanguíneo das batalhas perdidas
o braço pende
o teu sorriso morreu de uma apneia demasiado longa
e o copo onde guardavas a alma derramou-se
sobre a nudez dos poemas
Miguel Tiago
Sunday 9 May 2021
sem título
onde as cinzas descansam esteve aceso o lume
Miguel Tiago
Thursday 6 May 2021
espelho
Monday 3 May 2021
sem título
e as suas penas brancas incendiaram
os luminosos raios da lua nova
enquanto o dia espalhava pelos céus a mais funda escuridão
e o horizonte ténue diluíu-se num mar
enquanto o sal puro se espalhou na sombra
de todos os sonhos, dos que nos fazem respirar
e leve levantou o voo dos grandes pássaros
sem medo do sol
Saturday 1 May 2021
vermelho
Friday 30 April 2021
- sem título -
ainda o vento não cantou poemas
e o fim da primavera de pedra já se anuncia
nas formas das nuvens
que,
negras de um escuro aço,
humedecem com gotas de chumbo
os cheiros da terra de onde teimas
não tirar os pés quando levitas.
Miguel Tiago
Tuesday 27 April 2021
Revolução
vinte e cinco
de abril
de mil novecentos e setenta e quatro,
o mais belo verso
que o meu povo escreveu
nas páginas da sua vida.
Miguel Tiago
Saturday 24 April 2021
Wednesday 21 April 2021
da cobardia
os cobardes cheios de palavras
chamar-te-ão à luta que não querem travar.
os verbalistas sem coragem
querer-te-ão na linha da frente
enquanto desertam a rectaguarda.
e enquanto for por ti que clamam,
e contra ti que bramem,
és tu quem, cobarde para eles,
é para nós a esperança e a coragem.
Miguel Tiago
Sunday 18 April 2021
substrato e substância
trago uma mensagem do fim das lágrimas
e um fôlego de um céu aberto carregado de mãos ao alto
de onde a chuva é fresca e alimenta uma terra que sempre
mas sempre
viveu morrendo de sede,
venho da terra das labaredas da conquista
e sou livre do tempo porque a madrugada não tem cárceres.
na praia com os pés descalços na areia molhada
subo às nuvens pela sombra que projectam no mar.
o meu substrato é a realidade.
a anti-realidade a minha substância.
Miguel Tiago
Thursday 15 April 2021
pangeia
quando damos as mãos
levanta voo a ave marinha sobre um deserto
e somos contidos por um só planeta
em vários continentes
os sorrisos abrem as asas
e adentro entram por todas as casas.
Miguel Tiago
Monday 12 April 2021
sem título
vieram-me as lágrimas aos olhos quando ouvi falar de amor
porque o amor é uma espécie de distância que é sempre horizonte
e da lonjura a saudade treme as pálpebras e a água salgada dos nossos corpos.
vieram-me as lágrimas aos olhos quando ouvi falar de coragem
porque a coragem é um diamante que não quebra,
mas não se encontra à superfície do ser humano,
vieram-me as lágrimas aos olhos quando ouvi falar de amizade,
o infinito apesar de escasso,
porque a fibra de que é feito o amigo é o tecido muscular do nosso coração.
e ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos quando ouço falar de poesia
de poesia e das ondas do mar, que são a mesma coisa.
Miguel Tiago
Friday 9 April 2021
sem título
Tuesday 6 April 2021
obrigado
um poeta com as veias abertas
e exposto
em cada sí-la-ba
dos versos lidos. é o que é.
e a gente nem se apercebe que está a ler as entranhas
de outro, de uma pessoa que, sabe-se lá porquê,
talvez por não conseguir de outra forma,
espetou a alma numa folha de papel.
Miguel Tiago
Saturday 3 April 2021
convocatória
de todos os momentos que me convocam
o mais compulsivo é o agora,
o hoje enquanto morre gente
por não responder à chamada.
de todos os momentos que nos convocam,
de todos os sussurros que na verdade são gritos
que chegam desmaiados pela distância,
o mais obrigatório é o agora.
o entretanto é tempo de sobra para perder a vida
de uma criança.
às armas.
Miguel Tiago
Thursday 1 April 2021
Por palabras
Joven poeta
busca voluntarios
para darle muerte
el día en que
se convierta en
un burgués
autoconvencido
de su propia valía
y haya olvidado que
una vez
puso este anuncio.
Pepe Ramos
Tuesday 30 March 2021
Saturday 27 March 2021
pensamento ii
em certo sentido somos obras de arte, porque ao transcender-se pela
arte, o nosso antepassado, gerou um ser mais próximo do que somos hoje.
nos riscos, ou canções, nos tambores ou danças, estavam as sementes de
todos os sonhos, da celebração da alegria à sagração da tristeza. como o
Ouroboros que devora a própria cauda, a arte é o Homem e o Homem é a
arte. a experiência criativa, criou outros homens, outras mulheres,
novos, com sonhos mais fundos e com mais pincéis para pintar de todas as
cores o futuro.
nesse sentido, sorrio, porque algures na minha árvore genealógica está a poesia.
Miguel Tiago
Wednesday 24 March 2021
sem título
do comboio ficam para trás
todas as paisagens
os homens e as mulheres distantes
os prédios cinzentos
os campos verdes ou amarelos
e a linha do destino vai-se desenhando
lentamente no horizonte
enquanto se desfaz nos carris o desenho
da origem
Miguel Tiago
Sunday 21 March 2021
sem título
fosse sob as ramagens agitadas
fosse vento
fosse mesmo de noite
em pleno sol e a sombra inexistente
fosse meio despida
a saia levantada
a roupa desviada com a ponta dos dedos
ou nu integral
com vinho
sem água
porta aberta
sem ninguém ver
olhos fechados vendados ou abertos
fosse no leito no peito
no parapeito
e a chuva lá fora
tu molhada
e eu lá dentro
fosse com a língua no sexo
ou a respiração atrás do pescoço
fosse no chão duro
ou na macieza de um areal de seda
sem tremer
quase sem respirar
fosse com o esqueleto ao relento
a vibrar de tanto frio
em pé de pé
de costas
um beijo
uma noite
duas horas
um minuto
uma onda do mar
um toque de veludo
é sempre amor
mas não é todo o amor
Miguel Tiago
Thursday 18 March 2021
sem título
Monday 15 March 2021
poema da noite e do egoísmo
é neste último cigarro de vinho
que evapora dos meus ombros o peso das horas
que o fôlego brando do descanso me toma
e o ar limpo me respira
que a noite vem suave pousar-me na têmpora o seu beijo
me entrega no pio das corujas brancas
e finalmente
no silêncio
Miguel Tiago
Friday 12 March 2021
sem título
Tuesday 9 March 2021
coragem
de onde vêm as sombras quando a venda que tens nos olhos te veda a luz e o escuro é uma ilusão de conforto onde até as crianças adormecem? e contudo, nas palavras estão as perturbações do campo electromagnético a que és alheio, no murmúrio do mar e na lonjura do horizonte estão os vultos que te convocam a levantar o rosto. quando semicerras os olhos, vendados, vês os traços do futuro desenhados a carvão pelos teus antepassados. vês nas árvores que pressentes, escrito o amor cravado com navalhas enquanto as folhas agitadas clamam por pássaros que testemunhem que são elas quem se levanta do chão aos céus, com braços ao alto e raízes fundas. são as contradições que nos matam, e o oxigénio que nos alenta. vês esboços de poemas ditos do fundo de um algar onde não podes cair. e os ecos dos gritos mudos dos morcegos despem a rocha da caverna em que tu próprio te escondeste por não teres as mãos atadas e o sossego te impedir de assaltar o ar livre. a humanidade nega-te a tua própria humanidade no conforto. mas tu sabes. no fundo tu sabes. que há luz e há vida. que é uma venda que a luz te nega como nos negamos a um prazer para obter outro, ou como negamos a coragem por medo do que significa coragem. medo. do que significa coragem.
Miguel Tiago
Saturday 6 March 2021
sem título
a poesia é um ribeiro límpido
Wednesday 3 March 2021
a AC
temem-te os que temem a humanidade;
Monday 1 March 2021
do meu mundo
do meu mundo não se vê o teu.
do meu mundo levanta-se um muro de ignorância
uma trincheira de egoísmo
um vulcão de escuridão que se levanta pelo céu em furiosas nuvens
de enxofre.
do meu mundo não se vê o mundo dos outros,
separaram-nos em compartimentos estanques,
cubículos, cidades, números, corpos.
os mundos
dos outros,
são afinal iguais aos meus.
para eles, o outro sou eu.
Miguel Tiago
Saturday 27 February 2021
Wednesday 24 February 2021
- sem título -
que o mar se encha de pôr-de-sol,
Sunday 21 February 2021
sem título
já não há que dizer,
já não pode bastar escrever.
escrito no sangue dos vivos
está o último fôlego dos mortos.
não há já gritos, nem punhos,
nem protestos, nem discursos,
há poder cativo, e urgente libertação.
não há já palavras que bastem nem vai haver.
só a poesia em movimento,
entrando como ar nos nossos pulmões,
derrubará o dique que represa a pressa de progresso,
incontível rio de sonhos antigos,
e só então nossas mãos se abrirão poderosas alvas asas.
Miguel Tiago
Thursday 18 February 2021
poder (reedição)
fiz-lhe companhia naquela noite até ali, mas sabia que em breve ele teria de ir aqui e além apertar as mãos dos outros. os fatos escuros passeavam-se por ali, uns sós, outros acompanhados. os gordos encostavam-se a uma coluna ou a uma ombreira de porta – olhando o jardim desinteressados, bocejando o tédio cá para fora, desejando o sono lesto sob o calor húmido. geralmente acompanhados de suas senhoras, que tão bem decoravam o espaço, valha-nos deus com aquelas vestes absurdas de verde, de amarelo, de tantas cores, e aquelas jóias de outros tantos tons que nos passavam diante dos olhos sem que tivéssemos sequer tempo de lhes apreciar a beleza, tal a rapidez com que nos apercebíamos da fealdade do conjunto.
o jardim estava separado por um balcão de pedra esculpido em pilares polidos. Junto à casa, o chão de pedra dificultava os saltos das senhoras e lá em baixo, na relva prateada pelo luar, junto à pequena fonte de inspiração clássica, passeavam de copo em riste os outros que não se rendiam ao sono e ao tédio. por ali voavam palavras distantes dos assuntos do trabalho, pouco importava a situação económica do reino-unido ou as explorações de petróleo no médio-oriente. a situação política do continente asiático também se ficava no chão de pedra onde as senhoras custavam a equilibrar-se.
enquanto ele cumpriu o seu negócio, aproveitei a noite para raros momentos de ócio em tão belo jardim. longe do sol abrasador e das lanças do calor, aproveitei as escadas que desciam até à relva e o caminho escurecido pelas folhagens em arcada para fazer descair, ponderadamente e e com gesto bem cuidado e estudado, um pouco a alsa do ombro direito, anunciando o pescoço, onde descansava o fino e simples fio de prata. o copo seco foi atirado para cima de uma bandeja que passava, trocado por outro, com a dose de martini para desfazer o sabor dos chocolates horríveis que me tinham obrigado a comer, vindos sabe-se lá donde. e ali foi o copo vazio trocado por um cheio, para que se cumprisse o destino das coisas.
a lua brilhava forte, e o ar quente acolhia o seu brilho como num abraço, a relva parecia húmida de tanto luar. sobre a prata da relva e sob o clarão da lua, encostei-me à bancada da varanda, feliz. de ombros nus ao calor, um pouco turva e confusa de sentidos, de alcoól e de conversas alheias. sentia no pescoço aquela brisa de verão que por si só nos faz sorrir. outro se juntou, elegante, gravata escura, cigarro aceso, puxando um fumo calmo e sereno. trazia um e outro copo, cheios. passou-me um com uma boa noite aconchegante e vibrei. tirei apenas uma mão do balcão da varanda, para lhe receber o copo, agradecendo com um olhar nos olhos que se deslocou em aceno para o seu peito. as palavras de circunstância são nestas ocasiões absolutamente desprovidas de qualquer substância, como aliás, lhes costuma ser característico. por isso mesmo, me falou sem enfeites logo após perguntar o meu nome. em tons de sedução tão óbvios quanto motivantes e eu sentia-me o centro, o motor da sua vaidade.
o meu corpo aberto, sob um vestido de ofensiva e pecadora transparência, mostrava-se-lhe com impulso próprio. e eu que era apenas convidada como acompanhante... lá em cima a minha companhia, olhava pelo canto do olho a minha aventura descabida, despreocupado. senti o olhar e abandonei-me. o meu poder era infinito naquele momento. em mim se concentravam as belezas e as forças do mundo todo daquele momento daquelas vidas. e o poder de ser eu, de provocar despreocupação por amor profundo, de suscitar excitação por gozo puro... era esse o meu desígnio por minutos.
o próprio poder era eu. bastava-me querer que o ridículo cobriria de negro aquele homem e nem uma ponta de vergonha o tocaria por isso. não era ele que me excitava, mas sim eu sobre ele. não era amor ali na bancada da varanda, era poder. e mesmo assim, apeteceu-me por instantes o abandono de tudo, entregar-me. encostar nu o peito ao peito forte de outro, dele ali tão perto e tão disponível, tão entregue e desprotegido.
perderia a noção de quem seria afinal o poder. porque o poder de seduzir está na capacidade de negar, mesmo que no último momento os sopros do prazer. a corporização reduz o poder ao mero desejo mortal, comum ensejo de homens e mulheres que não se amam. por isso mesmo, o olhar que diz sim é um corpo que diz não. é isso que me eleva onde nenhum orgasmo promíscuo me levará, porque é esse o meu poder.
os copos já vazios, sob a bancada, lá em baixo o rio ria-se de mim, sentia-me intimamente palpitar.
A conversa durou o tempo exacto para que ninguém desmotivasse, pelo contrário. Virei as costas com boas noites delicadas, um olhar demorado ainda o agarrou uns instantes enquanto me afastava. seguiu-me, e sem que soubesse, tremi e senti o terrível vazio do início de noite. Mas eis que dou os braços à minha companhia. Ao meu homem. E me vou.
Monday 15 February 2021
sem horizentes
Friday 12 February 2021
sem título
tive de deixar os sapatos à porta
para entrar descalço
na minha vida.
agora sangram-me os pés,
tantos os vidros partidos pelo chão.
Miguel Tiago
Tuesday 9 February 2021
- sem título -
junto às muralhas
sentes no rosto o choro das ondas
em revolta
um pequeno frio
salpica-te a alma.
Saturday 6 February 2021
sem título
se tudo quanto levas contigo é a morte,
Wednesday 3 February 2021
lei da dupla negação
a esperança nasce quando a esperança morre,
como a árvore que se nega para novos rebentos tomarem o seu chão,
longínquos sonhos são os que ficaram para trás,
pois hoje, amanhã é utopia.
Miguel Tiago
Monday 1 February 2021
- sem título -
junto às muralhas
sentes no rosto o choro das ondas
em revolta
um pequeno frio
salpica-te a alma.
Saturday 30 January 2021
- sem título -
o sopro que nos enche de novas moléculas
o sangue,
aquele orvalho que se eleva ao céu
no final das madrugadas,
poema.
e é os dias. todos. e as noites. todas.
assim possam os homens. todos. ter poesia.
Miguel Tiago
Wednesday 27 January 2021
vida de criminoso
criminoso és tu,
filho de quem jamais escreverá leis
nas assembleias-matilhas,
criminoso és tu que aos portões da fábrica
não deixas partir o que construíste
e enfrentas o escudo e a arma romba do cão-de-fila,
criminoso és tu que não vendes de borla o teu trabalho
e desafias o deus moderno
das santas bolsas e dos benditos mercados.
Cri mi no so!
gritam envoltas na chinchila morta as senhoras
gritam raivosos de charuto gordo os senhores,
ai que nos levam o que nos deram a ganhar,
ai! que nos levam a mansão feita de seus ossos,
ai que nos levam a herdade feita de sua carne,
ai! que nos levam a carteira feita de sua pele,
e o manjar de sangue dos nossos banquetes!
criminoso és tu que ousas cheirar
o esterco em que te enterram e dizer a toda a gente
que um dia ousarás escrever as leis
do povo, nas ruas e nas fábricas,
e que se cada linha dessas leis valer uma vida,
muitas são as dos criminosos prontos a dá-la.
Miguel Tiago
Sunday 24 January 2021
uma falua
Thursday 21 January 2021
capitalismo
e assim mantenho a ninhada da aristocracia.
Monday 18 January 2021
lei da dupla negação
a esperança nasce quando a esperança morre,
como a árvore que se nega para novos rebentos tomarem o seu chão,
longínquos sonhos são os que ficaram para trás,
pois hoje, amanhã é utopia.
Miguel Tiago
Friday 15 January 2021
O CAMINHO DAS ESTRELAS
Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda
sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade
indispensável átomo da harmonia
partícula
germe
cor
na combinação múltipla do humano
preciso e inevitável
como o inevitável passado escravo
através das consciências
como o presente
Não abstracto
incolor entre ideias sem cor
sem ritmo entre as arritmias do irreal
inodoro
entre as selvas desaromatizadas
dos troncos sem raiz
Só
Mas concreto
vestido do verde
do cheiro novo das florestas depois da chuva
da seiva do raio do trovão
as mãos amparando a germinação do riso
sobre os campos da esperança
A liberdade nos olhos
o som nos ouvidos
das mãos ávidas sobre a pele do tambor
num acelerado e claro ritmo
de Zaires Calaáris montanhas luz
vermelha de fogueiras infinitas nos capinzais violentados
harmonias spiritual de vozes tamtam
num ritmo claro de África
Assim
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo.
Agostinho Neto
Tuesday 12 January 2021
Saturday 9 January 2021
ordem i
plácidos os rostos dos que sofrem,
com uma nuvem de fragilidade cobrindo os olhos,
são cordeiros mansos, folhas ao vento perdidas,
cabisbaixo ajoelha ao senhor, implora migalhas,
sorri ante a escada que nunca subirá.
estende a mão o porco, sacode a cinza do charuto
e lambe dos lábios o último trago do cognac,
o cheiro do ócio a coberto do negócio, tresanda
a uma decadência balofa, escondida sob contas bancárias
imperscrutáveis.
a terra é uma benesse, oremos ao patrão, sem ele não teríamos pão.
dizem-nos aqui rente ao chão, mas consta que se dirá o mesmo no céu.
esta é a ordem natural das coisas que deus traçou,
para os homens inteligentes tudo, para os tapados, nada.
eis que facilmente se explica a relação dos ricos com a inteligência
e dos pobres com a falta dela.
se ainda trabalhas para comer, incapaz foste e continuas a ser,
sorte a tua quem te acolha em imensa bondade.
de resto, não há mais quem destrua a escada da ilusão,
senão tu, cordeiro manso, leão audaz.
Miguel Tiago
Wednesday 6 January 2021
Os Ceifeiros
Curvados sobre a terra,
não sei se o esplendor
do trigo e das papoilas
vos acende nos olhos alegria bastante
quando o sol não é só luz
mas uma carga brutal que se abate
sobre o vosso dorso.
Com a foice na mão, quando o sol é apenas fogo
e meditais no vosso esforço, na abundância
das espigas, no vosso
pão minguado,
talvez uma praga
vos suba
à flor dos lábios.
Com o eco remoto das histórico, das lendas,
procurareis reavivar as profecias
que se vos enraizaram no sangue.
E à hora do sol-pôr,
a caminho das eiras,
continuais a repetir: bom golpe de foice!
«Bom golpe de foice!»
e não temos a menor ideia
de como as palavras nos vieram despertar.
«Bom golpe de foice!»
como quem dá os bons-dias
«Bom golpe de foice!»
Na oficina, na mina, nos andaimes,
alguém ousou gritar: «bom golpe de foice!»
Bom golpe de foice, se nos regateiam o trigo,
bom golpe de foice!
Félix Cucurull
Sunday 3 January 2021
A Hora das Gaivotas
Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
É noite
É a espada líquida da noite
– Chicharro com pão dormido, camarada…
pão dormido…
As gaivotas ensaiam o voo tresloucado
dos papagaios de papel
Parecem ter medo de poisar,
de dar descanso ao seu coração suspenso:
O medo de calar por dentro
– … e rabanadas com três dias
– Tudo nos serve para medir o tempo
Eles não sonham…
É a mais líquida de todas as noites
Nada se conforma no seu próprio destino:
As casas,
O mar,
As gaivotas,
Os homens…
Tudo parece convergir para o ninho inevitável
onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:
A Liberdade
(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do refeitório)
– É tão louco este mundo, camarada
1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch
O maior grito da humanidade
– O inexplicável grito de todos nós
Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e, protegidas pelos pais,
adivinham por detrás das cortinas
um sinal que dê sentido a tudo
Ninguém sabe o que espera
mas toda a gente espera em silêncio
É como se a terra soubesse
que há dias em que o mundo tem de ser redondo
3 de Janeiro de 1960
Às sete em ponto da tarde
Adágio–Allegro non troppo
– Nada me passa na garganta, só um grito mudo…
– A estrada ainda está deserta, nem uma luz…
Mas ele há-de vir!
– Somos 10, estamos contados
– Contemo-nos de novo:
Álvaro,
Jaime,
Joaquim,
Carlos,
Francisco,
José,
Guilherme,
Pedro,
Rogério,
Francisco.
E eu, e tu, e quem atrás de nós vier
E todos os que hão-de nascer
Com uma côdea no céu-da-boca
É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada
na praia, aos nossos pés
para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade
Allegro com grazia
– Pai, olha aquele carro, olha aquele carro
– Apaga a luz, apaga a luz…
– Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho…
– Vem do lado das docas…
– Pai, repara, as gaivotas pousaram todas…
– … e parou em frente ao forte
É a hora das gaivotas
É a hora das gaivotas
– O homem está a sair do carro, pai…
– Sim. Vai fechar a mala, certamente…
– Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente
– São misteriosas as campainhas do destino
Allegro molto vivace
Em todas as casas há um coração suspenso
pelo medo e pela saudade
e uma boca amarrada às paredes cegas
– Francisco, rasga esses lençóis
que nos fizeram para sudários.
Todas as palavras são medidas
como as sardinhas
e quase nunca é domingo
– Vá, tu sabes dar os nós de pescador
Une as tiras e dá-lhes um nó no meio
para que as mãos encontrem mais firmeza
A terrina ocupa o centro da mesa
as crianças são servidas primeiro
Apenas o tilintar das colheres
abre feridas no silêncio das casas
E as côdeas de pão dormido
quando estalam no céu-da-boca
– Somos 10, estamos contados
A corda tem de servir 10 vezes, camarada
O jantar é em silêncio
Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas
ouve-se a sua pulsação
a estalar o coração das gentes
– Pai, posso ir à janela?
– O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa
– Há, pai! As gaivotas não se calam
E as ondas batem sem conta certa
– Deixa-me apagar a luz…
– Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o
outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas
– Esperam alguém. É gente de bem
Finale — Adagio lamentoso
– Não olhes para baixo, camarada
E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
– Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte…
Em todas as casas há um coração suspenso
e um lugar vazio à mesa
– Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa
Não olhes para baixo
– Pai, o homem pôs o carro a trabalhar…
Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule
os ruídos dos ossos contra as pedras
É a natureza do lado certo
– Pai, outro homem… e outro… e outro…
É o medo contaminado pela esperança
e a espada líquida da noite virada de feição
– Pai, ajuda-me… não entendo, não entendo…
– É a hora das gaivotas, meu amor!
João Monge
Friday 1 January 2021
LIBERDADE
Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.
Armindo Rodrigues