Thursday 30 December 2021

Revolução

Havia uma palavra fundamental.
Dissemo-la uma noite perto da mulher
que soluçava junto do cadáver
do filho morto a tiro.
Dissemo-la uma tarde quando os sicários
lançaram sobre o cais o afogado,
porque estava nas pálpebras
e no vazio da boca.
Repetimo-la quando o sangue dos nossos camaradas
corria sobre os ladrilhos de San Lorenzo
arrastando pequenos fragmentos encefálicos,
filamentos de vísceras fugazes
urina e rum e alentos rancorosos.
Fomo-la repetindo nas enfermarias,
nos prostíbulos com ébrios e marujos,
nos cinemas e nas fábricas.
Dissemo-la um dia entre estampidos e clarins
à hora de uma das vitórias,
gritámo-la à porta dos escritórios,
das embaixadas e das escolas
até que vimos uma coluna de gente
erguida pela palavra persistente.
À nossa volta reinava o silêncio
que cerceia todo o som,
o silêncio sem parques,
sem escolas, sem fábricas,
o silêncio sem rotativas,
sem carabinas, sem crianças,
o silêncio sem recordações
sem quandos nem mais tardes,
em que começámos a repetir
a esclarecer a esgrimir a acariciar
essa ardente palavra.

Aldo Menéndez

Monday 27 December 2021

Antes que seja tarde

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca

Friday 24 December 2021

A existência alheia....

A existência alheia,
a alheia dignidade,
os direitos alheios pouco são
para os orgulhosos governantes
de hoje, como de sempre.
Por isso,
toda a ordem que de um mando provém,
toda a autoridade que alguém exerça,
e, em consequência, toda a dominação,
são um abuso e um esbulho.
Na sociedade de classes é a lei
a grande prostituta.

Armindo Rodrigues

Tuesday 21 December 2021

Sentença

 Quem pense e não aja
conforme ao que pensa
faz aos mais ofensa
e a si próprio ultraja.

Bem haja, bem haja
quem o medo vença.

Armindo Rodrigues

Saturday 18 December 2021

NA FÁBRICA ONDE EU TRABALHAVA

na fábrica onde eu trabalhava havia muito frio
mas os meus camaradas sorriam e contávamos histórias uns aos outros
de vez em quando encandeávamo-nos e esfregávamos os olhos
depois olhávamos admirados a perfeição da soldadura

medíamos dobrávamos batíamos o ferro
e era como se pouco a pouco algo dentro de nós se construísse
tínhamos ali as nossas entranhas e o nosso jardim

e aquilo era como a nossa horta ou a nossa casa à hora do almoço

José Vultos Sequeira

Wednesday 15 December 2021

Aviso

A noite que precedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que estava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos punhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
que o seu rosto num sorriso se lhe abriu
Não tinha apenas um único camarada
mas sim milhões e milhões de camaradas
para o vingarem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a alvorada

Paul Éluard

Sunday 12 December 2021

Gorila

 O gorila é um animal
quase inteiramente humano.
Não tem patas quase pés,
não tem garras quase mãos.
Estou-lhes a falar
do gorila do bosque africano.

O animal que aqui se mostra,
por pouco
é inteiramente um gorila.
Patas em lugar de pés
e quase garras em lugar das mãos.
Estou-lhes a mostrar
o gorila americano.

Adquiriu-o
num quartel o nosso agente
para o Grande Zoo.

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Thursday 9 December 2021

Poema

Anda, vá, conta uma história
conta uma história qualquer,
conta lá, mamana Elisa

«Uma vêgi uma muilher
ficou triste, triste, triste
qui nunca mais tinha filho...»
(Mamana: a tristeza existe?
existe, mamana? existe?)
«Homi não qu'ria mais ela
porqui filho não nascia...»
(Que história!... Não gosto dela,
não era essa que eu queria...)
«Está bem, eu vai contar
aquela... da flor de rosa
qui vinha à noite dançar...

Mas óia, minino, óia
qui tu já tem muita idade...
Porque é qui tu nunca gosta
da história qui são virdade?...»

Guilherme de Melo
(In Poetas de Moçambique)

Monday 6 December 2021

Linc(h)e

Linc(h)e do Alabama.
Rabo em forma de chicote
e garras terciárias.
Costuma manifestar-se
com uma grande cruz em chamas.
Alimenta-se de negros, cilhas,
fogo, sangue, cravos,
alcatrão.

Capturado
junto a uma forca. Macho.
Castrado.

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Friday 3 December 2021

O Caraíba

No aquário do Grande Zoo,
nada o Caraíba.

Este animal
marítimo e enigmático
tem uma crista de cristal,
lombo azul, cauda verde
ventre em coral compacto,
barbatanas cinzentas de ciclone.

No aquário, esta inscrição:
«Cuidado: morde».

Nicolas Guillén
(In O Grande Zoo)

Wednesday 1 December 2021

Necrologia

A poesia está aí, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...

Para exemplo
de pura ocasião
a poesia está, todos os dias
na necrologia dos jornais:
é crianças e mais crianças...
na relação dos feridos
nas catacumbas das prisões
e nos bancos dos hospitais:
«acometido de doença súbita
no Musseque da Lixeira,
foi transportado na ambulância,
Domingos João, que morreu
hoje, quinta-feira»

A poesia está aí, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...

E, até por ironia,
está escondida nas necrologias dos jornais!...


António Cardoso
(In Economia Política Poética)

 

Tuesday 30 November 2021

Cantiga do ódio

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração:
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

Carlos de Oliveira

Saturday 27 November 2021

Diálogo quase poesia

 Tu sabes, mãe - disse o pássaro - os aviões
também voam.
- Voam mas não têm coração. Engolem homens
aos milhares.
- Para quê?
- Para que o voo seja pago.
- Voo pago? Como pode ser pago e ser voo?
- É por isso que os aviões não cantam. Só nós
cantamos
porque ninguém pode comprar o nosso voo.

Sidónio Muralha

Wednesday 24 November 2021

Versos sobre o passaporte soviético

Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis».
Menos aquele...

Passando ao longo
dos compartimentos
e cabinas,
um funcionário,
e que polido,
avança.
Cada um apresenta o passaporte,
e eu,
dou
o meu
pequeno bilhete escarlate.

Para alguns passaportes
há sorrisos,
para outros -
vontade de os cuspir.
Têm, por exemplo,
o direito ao respeito
os passaportes
com o leão inglês
em dois lugares.
Devorando
com os olhos o grande personagem,
fazendo saudações e curvaturas
pega-se,
como numa gorjeta,
no passaporte
de um americano.
Para o polaco
há o olhar
da cabra frente ao edital.
Para o polaco -
uma fronte enrugada
num elefantismo policial -
de onde vem este
e que são
estas inovações na Geografia?
Mas é sem voltar
a abóbora-cabeça,
sem experimentar
qualquer emoção forte,
que se aceita
sem pestanejar
os papéis do dinamarquês
e dos suecos
de todas
as espécies.

Súbito,
como lambida
pelo fogo,
a boca
do cavalheiro
se torce.
O senhor
funcionário
tocou
a púrpura deste meu passaporte.
Toca nele
como se fosse bomba,
toca nele
como se fosse ouriço,
toca nele
como em cobra cascavel,
de vinte dentes,
de dois metros e mais de comprimento.
Cúmplice
piscou
o olho do carregador
que está pronto
a carregar, de graça as minhas malas.
O agente
contempla o chui,
e o chui
o agente.

Com que volúpia
me teria,
a espécie policíaca,
batido, crucificado,
porque
tenho nas mãos,
trazendo foice
e trazendo martelo,
o passaporte soviético.

Podia devorar
como um lobo
toda a burocracia,
não é comigo
o respeito
por mandatos,
e mando
para o diabo
que os carregue
todos os «papéis»,
menos aquele...

Das minhas
profundas algibeiras tirarei
o atestado
deste enorme viático.
Leiam-no bem,
Invejem -
eu
sou um cidadão
da União Soviética.

Maiakovski
 

Sunday 21 November 2021

Carta de um contratado

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloua
dos teus olhos doces como maconde
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por hí...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos dias na capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o kilombo
outra a ela não tivesse merecimento.

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajús e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos do nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é
meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh desespero! - não sei escrever também!

António Jacinto

Thursday 18 November 2021

Havemos de voltar

Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

Às nossas terras
vermelhas do café
brancas do algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente.

Agostinho Neto
(Cadeia do Aljube, Outubro de 1960)

Monday 15 November 2021

A um Papa

Poucos dias antes que morresses, a morte
tinha posto os olhos num teu coetâneo:
aos vinte anos, eras estudante,
ele servente,
tu, nobre, rico,
ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma que se tornava assim nova.

Vi os seus despojos, pobre Zuccheto.
Girava de noite, bêbedo, em volta dos Mercados,
e o eléctrico de São Paulo atropelou-o
e arrastou uma parte pelas linhas entre os plátanos:
algum tempo ali ficou, sob as rodas:
alguma gente se reuniu em torno a olhá-lo
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque tu existes,
um velho polícia, desleixado como um «guapo»,
gritava a quem se encostava muito: «Larguem-lhe a braguilha!»
Depois veio o automóvel dum hospital a carregá-lo:
a gente dispersou, ficou qualquer frangalho aqui e ali,
e a dona de um bar nocturno,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto acabara sob um eléctrico, finara-se.
Poucos dias depois acabavas tu.

Zuccheto era um
da tua grande grei romana e humana,
um pobre bebedola, sem família e sem leito,
que girava de noite, vivendo quem sabe como.
Tu não sabias nada: como não sabias nada
de outros tantos e tantos cristos como ele.
Talvez seja feroz ao perguntar-te por que razão
a gente como Zucchetto era indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem numa poeira antiga, em lama de outra época.
Precisamente não longe donde viveste,
à vista da bela cúpula de S. Pedro,
há um destes lugares, o Gelsomino...
Um monte talhado ao meio por uma mina e, em baixo,
entre pedras e uma fila de novos prédios,
um grupo de míseras construções, não casas mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto teu, uma palavra tua,
para que aqueles teus filhos tivessem uma casa:
tu não fizeste um gesto, não disseste uma palavra.
Não te pedíamos que perdoasses a Marx! Uma onda
imensa que se refracta por milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas na tua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
perante os teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu o sabias: pecar não significa fazer mal:
não fazer bem, isso significa pecar.
Quanto bem podias fazer! E não o fizeste:
não houve um pecador maior do que tu.

Pier Paolo Pasolini

Friday 12 November 2021

Tempo de rusgas

I

Era tempo de rusgas.
Havia ordens terminantes
mas era preciso não andar desarmado.

A revista nas estradas era intensa.

Bem armado
passei sem licença de porte de arma
minha mão comprimindo no bolso
as coronhas de 3 poemas.

II

Os que não são poetas
ignoram o que é estarmos em reclusão
armados de conluios até aos dentes.

E na sua imprevidência
não sabem que um poema detido
mesmo de cor na cabeça
também é uma forma
dialéctica
de lhes armar o cerco.

III

Sou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.
A raça dos homens ao natural
que amam o amor sem as mil
fictícias boas maneiras
burguesas.

Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.

Raça de revolucionários cheios de defeitos
e apenas uma pequeníssima qualidade:
Mesmo inseridos em molduras de alvenaria
com uma força de segurança no exterior
não compramos o Amor
e não nos vendemos!


José Craveirinha
(In Cela 1)

Tuesday 9 November 2021

Um Homem nunca chora

Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!

José Craveirinha
(In Cela 1)

Saturday 6 November 2021

Uma certa maneira de cantar

Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho
com egoísmo de fonte.

Quando sente voos na garganta
desce ao caminho
da solidão do seu monte,
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária
outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão -
para explicar a reforma agrária
no Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar.

José Gomes Ferreira

Wednesday 3 November 2021

Infância

Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!

Ary dos Santos

Monday 1 November 2021

Vossos nomes

No chumbo, no terror, na morte, com sangue escrevo,
Alfredo e Catarina,
vossos nomes.

Na pedra, no ácido, neste branco muro escrevo,
Humberto e Militão,
vossos nomes.

Nas trevas, no medo, na raíz da aurora, escrevo,
Maria e Lourenço,
vossos nomes.

No sonho, nos ventos, na flor do trigo escrevo,
Pedro e Guilherme,
vossos nomes.

No aço das duras tarefas, no relâmpago escrevo,
Álvaro e Rui,
vossos nomes.

No amor, na cólera, na fome desta ave escrevo,
Virgínia e António,
vossos nomes.

No sol que levamos, na verde esperança escrevo,
Paula e Dinis,
vossos nomes.

No riso, nas lágrimas, no coração da pátria escrevo
e semeio
vosso nomes.

No ventre em flor da minha amada semeio, escrevo
e multiplico
vossos nomes.

Papiniano Carlos

Saturday 30 October 2021

Um dia virá...

Um dia virá, como uma borboleta,
em que através dos campos um hálito benigno,
caricioso e doce, tudo fecundará.
Então, pedras, ou nuvens, ou rios, ou estrelas
obedecerão aos homens, nunca mais divididos
em senhores e escravos, em ambiciosos e humildes.
Será a era fácil de uma felicidade
feita de farto pão, de paz, de amor fraterno,
dificilmente obtida por uma luta tenaz.
Deixarão de existir a cobiça, a inveja,
o gosto de domínio, a intriga, a traição,
a petulância, o espanto, o desalento, a ira.
Mas quando é que virá esse dia final?

Armindo Rodrigues

Wednesday 27 October 2021

Poema

Neste ano de 1962
primeiro de Maio
ao começo da noite
podemos finalmente olhar no espelho a nossa imagem
sem temor nem vergonha

Na solidão do quarto meu Amor
podemos pela primeira vez
deixar de recear futuros julgamentos
e as perguntas silenciosas nos olhos dos vindouros
esquecer a humilhação o insulto sem resposta
que foi o nosso pão quotidiano e áspero

Agora podemos ser de novo homens
livres ainda que presos
mastigando a comida sem o sabor a lágrimas
antes com o sal da esperança
merecido tempero paga justa da luta

Renegamos o passado maculado de angústias
esquecemos as pequenas diárias covardias
os negócios onde tudo se perde e até a honra

Neste primeiro de Maio de 1962
podemos finalmente sorrir sem amargura

Daniel Filipe
(«Pátria, lugar de exílio»)

Sunday 24 October 2021

Uma vez eu tive um cravo

Uma vez eu tive um cravo
cravado no coração,
e eu não me acordo já se aquele cravo era
de ouro, de ferro ou de amor.
Só sei que ele me fez um mal tão fundo,
que tanto me atormentou,
que eu dia e noite sem cessar chorava
qual chorou Madalena na Paixão.

«Senhor, Vós que podeis tudo -
pedi a Deus numa ocasião -
dai-me valor para arrancar de um golpe
cravo de tal condição».
E deu-mo Deus e arranquei-mo.
Mas... quem pensara?... depois
já não senti mais tormentos
nem mais soube o que era dor;
soube só que não sei quê me faltava
onde o cravo me faltou,
e até penso que tive saudades
ai, meu Deus! da antiga dor.

Este barro mortal que envolve o espírito
quem o entenderá, Senhor!...

Rosalia de Castro

Thursday 21 October 2021

Caçando gambozinos

Vem caçar gambozinos
jovem d'olhar brilhante
e eterno coração
vem sem nada trazer na mão
e esperes não
que eu t'empreste
meu alçapão
vem
e aprende à tua custa
que a vida não é senão
uma eterna caçada
aos gambozinos
esse animal feito de sonho
e ilusão
e que assim mesmo
vala a pena a perseguição.

João Melo
(Angola)

Monday 18 October 2021

O novo mandamento

Está criado
o novo mandamento. Aos pássaros
dirás: não cantareis; às flores:
não florireis. E florirão
as bombas. E ao sangue
dirás: rio
serás. E sobre
os escombros erguerás
o homem novo, o seu cadáver, desenharás
a ferro e fogo o mapa
do luto e das lágrimas. E imporás,
enfim,
a liberdade. A liberdade
do terror das armas. A liberdade
para matar.

Albano Martins 

Friday 15 October 2021

Perguntas

Onde estavas tu quando fiz vinte anos
e tinha uma boca de anjo pálido?
Em que sítio estavas quando o Che foi estampado
nas camisolas das teen-agers de todos os estados da América?
Em que covil ou gruta esconderam as suas armas
para com elas fazer posters cinzentos e emblemas?
Onde te encontravas quando lançaram mão a isto?
E atrás de quê te ocultavas quando
mataram Luther King para justificar sei lá que agressões
ao mesmo tempo que víamos Música no Coração
mastigando chiclets numa matinée do cinema Condes?
Por onde andavas que não viste os corações brancos
retalhados na Coreia e no Vietname
nem ouviste nenhuma das canções do Bob Dylan
virando também as costas quando arrasaram Wiriamu e
enterraram vivas
mulheres e crianças em nome
de uma pátria una e indivisível?
Que caminho escolheram os teus passos
no momento em que foram enforcados
os guerrilheiros negros da África do Sul
ou Allende terminou o seu último discurso?
Ainda estavas presente quando Victor Jara
pronunciou as suas últimas palavras?
E nem uma vez por acaso assististe
às chacinas dos Esquadrões da Morte?
Fugiste de Dachau e Estalinegrado?
Não puseste os pés em Auschwitz?
Que diabo andaste a fazer o tempo todo
que ninguém te encontrou em lugar algum?

Joaquim Pessoa

Tuesday 12 October 2021

vertigem


a vertigem
é um ponto de fuga
um nadir desimpedido
de espaço nenhum 
entre nós e a mais distante parede do universo
a vertigem 
é um ponto bem debaixo dos teus pés
quando não há chão que pises
a vertigem 
é a expiração 
que não se segue de inspiração.
 
Miguel Tiago
 

Saturday 9 October 2021

estética do domínio II

toda a pobreza é bela aos olhos do homem que negoceia peles, ossos, braços e cérebros de outros homens.

Miguel Tiago

Wednesday 6 October 2021

sem título

apesar dos olhos fechados
pulverizei de estrelas a escuridão.

Miguel Tiago

Sunday 3 October 2021

sem título

há um barco que nos leva
através da vaga.
sob a maresia há portos de abrigo.
ao longe. após as fragas. 

Miguel Tiago

Friday 1 October 2021

acordo ortográfico

bem sei que a escrita não faz parte da Língua
ainda bem.
escrever ato não escrevo
persisto no acto
não gosto de ser lambido por uma língua morta.

Miguel Tiago

Thursday 30 September 2021

As armas - tradução de "Des Armes", de Léo Ferré.

As armas, as bonitas, as brilhantes
As que devemos limpar amiúde para o prazer
E que devemos acarinhar como para o prazer
E são, ainda, o que faz sonhar os que vivem em comunhão.

As armas, azuis como a Terra
As que devemos guardar no calor do fundo da alma
Nos olhos, nos corações, nos braços de uma mulher
Que guardamos dentro de nós como se guarda um mistério.

As armas, no segredo dos dias
Sob a erva, no céu e na escrita
As que te farão sonhar muito tarde nas leituras
E que trazem a poesia ao discurso.

As armas, as armas, as armas
E os poetas de serviço ao gatilho
Para acender os últimos cigarros
No fim de um verso francês brilhante como uma lágrima.

Miguel Tiago

Monday 27 September 2021

sem título

as flores caem
o fim é o princípio
e as flores nascem
o princípio é o fim
só a morte semeia a vida

o espaço entre os corpos é o vazio
o mais sólido dos preenchimentos
deixar que me tome nos braços o medo e o precipício
para nos meus tomar o voo da coragem

Miguel Tiago

Friday 24 September 2021

segunda semana

da janela por onde olho
o longe quase me toca a ponta dos dedos
o beijo no ombro
o cheiro da manhã
de maio mesmo aqui
enquanto passa ao longe uma semana
que navega as águas do rio. 

Miguel Tiago

Tuesday 21 September 2021

sem título

que as lâminas de água dos rios se perturbem
e a turbulência agite as moléculas do tempo

do tempo
esse companheiro assassino
que nos enfia o veneno oxidante
pela alma adentro
até aos pulmões.

Miguel Tiago

Saturday 18 September 2021

claridade


quando respiramos fundo
a estrada nunca é demais.
 
Miguel Tiago

Wednesday 15 September 2021

sem título

de quantas vozes o destino
é assassino
de quantos destinos as mãos
são o martelo e o escopro
de todos o céu escuro só mostra
pequenos pontos

a astronomia e o bom senso negam relação

de todos é o sopro
que trazemos dentro do coração
o mais constante
o mais fiel e dedicado artesão

 Miguel Tiago

Sunday 12 September 2021

sem título

quando o futuro é um espinho
que se te crava na garganta
e o presente um peso
que te amarra ao fundo do mar
toda a tua esperança é o passado
e o passado nunca é esperança

Miguel Tiago

Thursday 9 September 2021

sem título

das frases
dos ventos
e das rosas
sopras um beijo
da raiz
da estrada
que me leva
inexorável a ti
como um fruto
ou uma praia
de cujas ondas a espuma
apaga um beijo na areia
que efémero
fica para sempre
escrito
nas letras
de um poema épico
que por falta de dom
nunca saberei escrever.

Miguel Tiago

Monday 6 September 2021

da arte poética

um poema é um conjunto de palavras que requer um trabalho que não tenho, não sei ter, nem ambiciono conseguir ter. a poesia enquanto arte é um fascínio a que felizmente muitos nos podemos entregar porque há quem a ela se entregue como a um cuidado ofício, como a um esforço de uma vida porque um verso perfeito é como uma peça única, com horas de trabalho de concepção, execução, aperfeiçoamento.
o exercício que realizo está muito aquém do esforço dos poetas, tal como estaria aquém do esforço de um escultor eu partir uma rocha casualmente com um escopro.
no entanto é a esse exercício que quero e posso dedicar-me.
não é dizer uma coisa na sua forma perfeita, no seu estado poético. é dizer uma coisa no momento em que ela surge e me toma, mesmo que no estado sólido.

é uma questão mais de tempo que de forma ou conteúdo. se a palavra tem espaço, e tem forma certa, também tem de ter tempo. tempo certo.

esculpir cuidadosamente o verbo, a forma, adaptá-la magistralmente ao conteúdo, é um dom que dificilmente se adquire e, certamente, não é para preguiçosos. 

Miguel Tiago

Friday 3 September 2021

(o-som-da-pequena-flauta-do-amolador)

uma alvorada cortada pelo gume
da coragem afiada
na pedra de amolar corações
e o homem que assobia
e faz chover já não precisa de pedalar mais
na bicicleta parada
porque o tempo acabou
e de ora em diante
só chove. 

Miguel Tiago

Wednesday 1 September 2021

respiração


sem inspiração
asfixia o verbo
 
Miguel Tiago

Monday 30 August 2021

última página

 

esta é a última página deste livro
que no horizonte falso acendeu madrugadas
e estrelas
e no fogo consumiu manhãs e noites que nunca foram frias
esta é a última página deste livro
a primeira da minha vida
rasguei-a
ao vento que te agitava os cabelos
e entrava vindo do mar na casa em que não escrevi prefácio
a última página do livro não é a melhor
é a última
sem ela restaria a edição póstuma reunida pelos familiares sobreviventes.
 
Miguel Tiago

Friday 27 August 2021

o passado é para sempre

sob a pele nos ficam as tatuagens
por cada vez que no peito nos bate outro coração.

Miguel Tiago

Tuesday 24 August 2021

silêncio

um fio de céu
escorre nos ponteiros da bomba-relógio
que bate no peito
dos descoraçoados
a cada segundo
do primeiro suspiro
sob o mar de copas
por onde os raios da noite
penetram agudos
os pulmões exaustos
lâminas frias que rombas
rasgam o som que fazemos
quando estamos em silêncio 

Miguel Tiago

Saturday 21 August 2021

sem título


das raízes da sombra à luz da folha
pudesse tanta dignidade
contagiar outras florestas
 
Miguel Tiago
 

Wednesday 18 August 2021

História

o homem constrói o mundo
o tempo é simultaneamente matéria-prima, meio e substrato
é o materialismo poético. 

Miguel Tiago

Sunday 15 August 2021

sem título


é natural quartzo hialino
ser vidro 
cacau ser chocolate de leite
é natural alma ser corpo
e pele ser apenas superfície
é natural no mundo de plástico
flores verdadeiras 
não merecerem água.
 
Miguel Tiago
 

Thursday 12 August 2021

sem título

ainda tenho na ponta dos dedos
o sabor da tua alma
na língua
o tacto telúrico do teu calor.

do sol raios já deitados douram a minha pele
e nua abraças a minha cor acesa.

até que a luz, de tão rara, se extinga. 

 Miguel Tiago

Monday 9 August 2021

sem título

 o manto que nos imobiliza

é um pensamento 

Miguel Tiago

Friday 6 August 2021

jardim de inferno

enquanto sob os teus pés se contorcem as labaredas
a figueira-do-diabo ferve-te as artérias
e o sono falta-te como te falta o aconchego
de uma voz que murmura
as folhas caídas de um outono distante
crepitam agora toda a noite
a lava ilumina apenas os que fecham os olhos
não é um incandescência qualquer. 

Miguel Tiago

Tuesday 3 August 2021

versos para vermes

 hoje não nos falta poesia, falta-nos coragem
e só isso te dá coragem para que fales de poesia.

Miguel Tiago

Sunday 1 August 2021

no boundaries theory

da mesma árvore os frutos
na estação certa
do mesmo olhar uma chama intensa
na noite certa
não há limite de vezes para morrer de amor
pela pessoa certa. 

Miguel Tiago

Friday 30 July 2021

no meu país

 

aqui no meu país só passa fome quem quer
que migalhas de ricos há espalhadas com fartura
no caixote do lixo da burguesia
que dá pelo nome de i pê ésse ésse
e não falta gente que atire restos aos pobres
como quem manda milho aos pombos
com a diferença que é mais nobre combater a solidão
que a ocupação de tempos livres com gente
para fazer da caridade um penduricalho mais barato que uma sessão de cabeleireiro
ou um passeio da avenida que é da liberdade de alguns
desde que tenham carro comprado após dois mil
no meu país as crianças só passam fome porque querem
ninguém lhes deu ordem de ir nascer na periferia
com tanto condomínio de luxo por aí devidamente licenciado
ou terem ido escolher vir ao mundo só com mãe
e sem pai isto só visto
no meu país os velhos só passam fome porque querem
porque toda a gente sabe que enquanto aqueles corações batem
há uma veia de empreendedorismo a latejar
e um banco pronto prontinho a financiar o arrojo dos septuagenários sem pensão
no meu país
diga-se a bem da verdade
só fica sem emprego quem quer
só vive na solidão quem quer

só morre no mar quem quis viver pescador e ousou ter fome em dia de temporal

só morre de neoplasia maligna quem quis ser mineiro e inspirar urânio 
como quem respira o ar do jardim do hotel de seis estrelas

no meu país só fica à porta do hospital quem quer
pode sempre entrar
nem que seja pela porta da morgue

no meu país só é despedido quem quer porque escolheu precisar de trabalhar
em vez de ter um banco ou pelo menos uma cadeia de hipermercados

no meu país só entrega casa ao banco quem quer
podia sempre comprar a pronto 
aqui neste país
só passa fome quem quer
enquanto diz merda quem pode.
 
Miguel Tiago

Tuesday 27 July 2021

ars moriendi

das nuvens
dos raios de sol que chovem
das ondas do som que nos agita
nos perpassam como
varas rombas
dos cheiros
e das flores mortas
dos buracos escuros
e copos vazios
dos troncos robustos
do carvalho
do olhar dos homens perdidos
das mulheres amigas
do significado das letras
das palavras
das figuras
das sombras
das luzes
de cada braço da respiração
que nos arqueia
de cada flecha que suspiramos
em direcção ao vazio
que enche os peitos dos outros
e os outros somos nós
para os outros
do mundo
e das folhas avermelhadas do outono
que ano após ano se abate sobre
o nosso dorso já cansado
do tamanho
do volume
do abismo
do tempo
da fugacidade
da areia ser uma forma de luz
e os corpos nus uma recordação
do paraíso
e da impossibilidade de conter nos livros a velocidade.

e da aceitação.
do abraço. 

Miguel Tiago

Saturday 24 July 2021

hegemonia

vieram os lobos
esta é uma noite fria.
depois de a voz se ouvir
como um punho
que podia destruir com a verdade
todas as correntes e cadeias,
não sobreviveu um grito
de testemunho nos manuais escolares.
nas voz dos homens uivam os lobos
que, infelizmente, também são homens.
a pele nua contudo é perene.
irrompe o sol de onde sempre nasce
aquecerá os campos e as cidades
não voltam os lobos a uivar
na voz dos homens. 

Miguel Tiago

Wednesday 21 July 2021

sem título

 

tenho um pé já assente sobre a vertigem.

Miguel Tiago

Sunday 18 July 2021

sem título

viemos sabemos do horizonte
um som desenhado no vazio
uma molécula de infinito
que se acendeu
uma fracção de matéria que se apropriou
da consciência sobre si mesma
um fio de presente
uma árvore de raízes enfiadas no passado
criança de braços estendidos ao futuro
uma ave antes de ter nome

não retornamos ao nascer do sol
apesar da madrugada

a origem é cada ponto da pele
onde as agulhas do tempo se espetam
gravando minutos numa tinta espessa
até que a casca nos envolva como a um sobro
e o horizonte nos tome em contra-luz no poente

Miguel Tiago

Thursday 15 July 2021

cosmos

é indiferente existirem fronteiras entre pessoas
ou pessoas entre fronteiras
o limiar divide nada
nem da terra aparta o céu o mar o voo das aves
ou os fluídos seminais
que na osmose constante fundem
todos os corpos
na fecundidade do pensamento
na afinal totalidade que as estrelas trazem no bojo
a que demos o nome de humanidade.

Miguel Tiago

Monday 12 July 2021

fogo e mar

todos os dias são nevoeiro
e ao fundo um navio
sobre águas escondidas
sob o espesso branco.
na lonjura dilui-se no horizonte
a esparsa luz.
albatroz a maior envergadura das aves marítimas
e do reino animal maior agoiro.
todo o mar é nosso.
não. todos somos do mar.

foi sob o céu negro que a história ardeu
sobre as águas tranquilas da baía. 

Miguel Tiago

Friday 9 July 2021

tempo

o mesmo tempo que consome os dias que te faltam
dá-te os dias que tens vividos.

Miguel Tiago

Tuesday 6 July 2021

a questão é a resposta é a questão


a substância radical dos homens
a seiva sanguínea das almas
é em si mesma destino e origem
é procurar essência na terra funda
mergulhar na escuridão universal 
com uma candeia apagada
e tactear o mundo com as pontas do cérebro
a finalidade
o sentido
a resposta
corpórea matéria de tão densa 
é a pergunta.
 
Miguel Tiago
 

Saturday 3 July 2021

cardiofrágio

naufragar.
nave desfaz-se contra fragas.
há-de se fazer um verbo para quando
nas fragas se desfaçam corações.

Miguel Tiago

Thursday 1 July 2021

curta é a viagem quando ansiamos a lonjura

as bermas da estrada fundem-se
passado o rubicão da miragem
do ponto de fuga sobrará
a falta de esconderijo
não importa o destino
nem a viagem.

quantas milhas faltam para o horizonte?
e as bermas da estrada que se desentrelaçam
na vertigem de chegar
não há milhas que cheguem para confortos que não existem. 

Miguel Tiago

Wednesday 30 June 2021

mar

essa maresia de sal
essa habituação de água
essas fragas firmes
que nunca vencem a batalha
esse fundo escuro
essa lua espalhada
esses cardumes dúcteis
que perderam o caos no dia em que nasceram
do meu sangue os elementos químicos e as moléculas. 

Miguel Tiago

Sunday 27 June 2021

teoria

só quem nunca sentiu os teus lábios pode dizer que tudo é relativo. 

Miguel Tiago

Thursday 24 June 2021

sem título

de um naufrágio podem salvar-se as almas
havendo arrependimento
mas salvam-se corpos
havendo terra firme

tu és terra firme. 

Miguel Tiago

Monday 21 June 2021

o futuro escrevemos nós

 

chegou por estes dias
um envelope selado com o lacre dos séculos
chegou de mão em mão porque privatizaram os correios
no destinatário lia-se "presente",
no remetente, "futuro".
no interior, uma carta em branco em que faltava apenas escrever uma palavra.
"comunismo".
 
Miguel Tiago

Friday 18 June 2021

sem título

a montanha
porém
o rio

 Miguel Tiago

Tuesday 15 June 2021

sem título

há lá nome de bebida quente mais poético
do que
café sem princípio?

para mim é um, se faz favor. sem princípio nem fim.

Miguel Tiago

 

 

 

 

Saturday 12 June 2021

sem título

a casa abandonou-me, vazia. e os lençóis tremem de frio nas mais quentes noites de verão. frio ou solidão.
já nada habita o interior e apenas o verde das plantas na varanda lembram, ainda que remotamente, alguém. ou a projecção da sua sombra no vidro fosco da porta da sala, porque ao vento, ligeiramente, ondulam e agitam as pequenas folhas.
resta-me um último refúgio, onde ainda respiro, como se de lá pudesse sorver o oxigénio que me leva a ausência, ainda que em doses curtas. é a gaveta esquerda, a mais próxima da minha cabeça e a única onde deixaste o que quer que seja. 

Miguel Tiago

Wednesday 9 June 2021

os sonhos

os sonhos os sonhos
que se nos desfazem ou nos desfazem
em pó

Miguel Tiago

Sunday 6 June 2021

vazio


apaguei as luzes
e só ouvi o soprar de um vento nas velas
sobre um mar de silêncio um barco pleno 
de ninguém, de gente nenhuma, 
nem eu lá sigo, e não tem leme,
nem na verdade               velas.
 
Miguel Tiago
 

Thursday 3 June 2021

inconsequência

das ondas do mar
o vento a vela e as nuvens
como se dali nascessem os naufrágios
e chorassem naus a plenos pulmões
enquanto o fundo do mar abre os braços
dos abismos
e as profundezas murmuram as últimas lembranças
da luz  e da superfície.

esse mar
eu naufragado, fragmentado contra uma fraga
de rochas feitas de sonhos que não cumpri. 

Miguel Tiago

Tuesday 1 June 2021

história


quantas vozes o ar me guarda
como um eco
dos homens?
 
Miguel Tiago
 

Sunday 30 May 2021

- sem título -

viremos o mar do avesso.
ficam as nuvens por dentro
dos nossos estômagos,
e a saliva tornar-se-á sal
feito de pessoa,
halite humana
hálito salino.

Miguel Tiago

Thursday 27 May 2021

ao H.

de tantas vozes
as de um mundo inteiro
a que nos sussurra
amizade
é o mais poderoso pilar dos continentes,
e de todos o mares o mais
seguro cais. 

Miguel Tiago

Monday 24 May 2021

meu poema

eis a luz que de ondas pelas artérias faz dos homens
coração dos pássaros
e estrelas dos olhos das pedras da montanha
lido um verso um verbo                     um fruto
uma semente nua que no ventre
traz chamas                     ao vento. 

Miguel Tiago

Friday 21 May 2021

das que foram necessárias

de quantas tempestades terão os cravos de brotar
até romper a crusta de chumbo que nos reveste os pulmões?

Miguel Tiago

 

Tuesday 18 May 2021

homens de plástico

 os homens de plástico
que podem ser mulheres
e às vezes são cães
são feitos na fábrica da psicopatia
construídos a preceito
no molde da fingida e sempre presente simpatia
mostram os dentes sem qualquer sentimento
para esconder o pensamento
mesmo que sejam mulheres
podem ser cães
os homens de plástico
não são andróides
são filhos da puta
não são máquinas
podem ser mulheres
e na maior parte das vezes são cães
os homens de plástico agradecem a quem lhes dá de comer
e devem-lhes eterna gratidão
como um cão
os homens de plástico são criados de pequeninos
habituados a ter criados para serem criados de alguém
os homens de plástico são todos iguais
podem ser mulheres e muitas vezes são cães
fabricados na linha de montagem sabujo topo-de-gama
fato cintado ou saia fato
a coleira e a trela  disfarçadas sob a gravata ou o lenço
ou mesmo escondidos na mama
e sempre à margem da lei sem açaime
que dispensaram ao alfaiate
os homens de plástico seduzem-nos a carne e a alma
o predador atrai a presa
indefesa no meio da lama
humana
o homem de plástico
pode ser mulher
e muitas vezes é cão
e ter-nos-á cerrados na mandíbula
até que em vez de nos foder
o comermos nós com pão 

Miguel Tiago

Saturday 15 May 2021

"enquanto estás à espera ninguém te pode ajudar"

vieram aos montes do outro lado do rio, sobre solas desfeitas,
vieram arrastando as pernas magras pesadas,
vieram em multidões, atravessaram desertos e a sede e a fome e o sol,
vieram nessa marcha longa de mãos dadas, de todos os cantos do mundo, principalmente do poente,
vieram com o mundo nas mãos sem força para segurar um pão
eram escravos,
eram servos,
eram operários,
vieram do mais longe do tempo,
de uma floresta devastada,
de um caminho de ferro
(a perder de vista),
vieram dos campos gelados e dos mares revoltos,
no dorso de um cavalo esquálido,
vieram da máquina,
de uma fábrica, do ruído,
vieram de uma bancada, de um torno,
vieram de enxada,
de enxurrada,
vieram da raiva, das mãos duras e dos olhos tristes,
vieram de longe até chegar aqui.
e quando aqui chegaram fizeram o mundo
que toda a vida tinham esperado de deus. 

Miguel Tiago

Wednesday 12 May 2021

sem título

já os caminhos são sombras
uma ruína no futuro
um castelo

já o abismo nos tomou nos braços
um trapo branco ondula
sobre o terreno sanguíneo das batalhas perdidas

o braço pende
o teu sorriso morreu de uma apneia demasiado longa
e o copo onde guardavas a alma derramou-se
sobre a nudez dos poemas 

 Miguel Tiago

Sunday 9 May 2021

sem título


onde as cinzas descansam esteve aceso o lume

nos espinhos de hoje ainda há sangue de messias
e talvez antes do lume houvera já cinzas
e antes dos espinhos messias em sangue

 

Miguel Tiago

 


Thursday 6 May 2021

espelho

tal é o silêncio que o espelho na pele nos retribui
e vazios os corpos se somos nós enchê-los de alma
tão vagaroso é o vento nas folhas do meu livro
que só nos outros posso ver os meus cantos
ver os outros eu pudera não ser desconhecido de ninguém.
 
Miguel Tiago

Monday 3 May 2021

sem título

 

o corvo negro pousou no ramo mais alto
e as suas penas brancas incendiaram
os luminosos raios da lua nova
enquanto o dia espalhava pelos céus a mais funda escuridão
a madrugada chegou sobre os meus lábios
e o horizonte ténue diluíu-se num mar
enquanto o sal puro se espalhou na sombra
de todos os sonhos, dos que nos fazem respirar
o corvo branco acenou
e leve levantou o voo dos grandes pássaros
sem medo do sol
 
Miguel Tiago

Saturday 1 May 2021

vermelho

escala de cinzas
plúmbeos
sobre os ombros dos homens
e mãos abandonadas
acorrentadas 
só a bandeira vermelha 
alta 
sanguínea
liberta a cor 
o vigor 
ainda que sob o peso do chumbo tombem
os que a erguem.
 
Miguel Tiago

Friday 30 April 2021

- sem título -

ainda o vento não cantou poemas
e o fim da primavera de pedra já se anuncia
nas formas das nuvens
que,
negras de um escuro aço,
humedecem com gotas de chumbo
os cheiros da terra de onde teimas
não tirar os pés quando levitas.

Miguel Tiago

Tuesday 27 April 2021

Revolução

 vinte e cinco

de abril

de mil novecentos e setenta e quatro,

o mais belo verso

que o meu povo escreveu
nas páginas da sua vida. 

Miguel Tiago

 

Saturday 24 April 2021

sem título

abro o vinho.

e travo a seco a solidão.
 
Miguel Tiago
 

Wednesday 21 April 2021

da cobardia

os cobardes cheios de palavras
chamar-te-ão à luta que não querem travar.
os verbalistas sem coragem
querer-te-ão na linha da frente
enquanto desertam a rectaguarda.

e enquanto for por ti que clamam,
e contra ti que bramem,
és tu quem, cobarde para eles,
é para nós a esperança e a coragem.

Miguel Tiago

Sunday 18 April 2021

substrato e substância

trago uma mensagem do fim das lágrimas
e um fôlego de um céu aberto carregado de mãos ao alto
de onde a chuva é fresca e alimenta uma terra que sempre
mas sempre
viveu morrendo de sede,
venho da terra das labaredas da conquista
e sou livre do tempo porque a madrugada não tem cárceres.

na praia com os pés descalços na areia molhada
subo às nuvens pela sombra que projectam no mar.

o meu substrato é a realidade.
a anti-realidade a minha substância. 

Miguel Tiago

Thursday 15 April 2021

pangeia

quando damos as mãos
levanta voo a ave marinha sobre um deserto
e somos contidos por um só planeta
em vários continentes
os sorrisos abrem as asas
e adentro entram por todas as casas. 

 Miguel Tiago

Monday 12 April 2021

sem título

vieram-me as lágrimas aos olhos quando ouvi falar de amor
porque o amor é uma espécie de distância que é sempre horizonte
e da lonjura a saudade treme as pálpebras e a água salgada dos nossos corpos.
vieram-me as lágrimas aos olhos quando ouvi falar de coragem
porque a coragem é um diamante que não quebra,
mas não se encontra à superfície do ser humano,
vieram-me as lágrimas aos olhos quando ouvi falar de amizade,
o infinito apesar de escasso,
porque a fibra de que é feito o amigo é o tecido muscular do nosso coração.

e ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos quando ouço falar de poesia
de poesia e das ondas do mar, que são a mesma coisa. 

Miguel Tiago

Friday 9 April 2021

sem título

de um cavalo negro
se espera que voe como fumo.
de um furacão que se extinga em chamas
e labaredas pelo chão.
espero de um coração que deixe de bater 
enquanto o corvo não deixe de voar.
espero de um palácio que se vire do avesso, 
pela porta dos fundos.
do mar que se eleve aos céus trocando de lugar.
espero que dos olhos pendam lágrimas de sangue
que não sejam de santo.
espero que as rosas virem apenas espinhos.
e que a "ave do deserto" nunca parta do "céu".
espero,
enfim,
que dos versos colapsem os limites 
do razoável. 
que do universo se extinga o infinito nas nossas mãos.
 
Miguel Tiago

Tuesday 6 April 2021

obrigado

um poeta com as veias abertas
e exposto
em cada sí-la-ba
dos versos lidos. é o que é.
e a gente nem se apercebe que está a ler as entranhas
de outro, de uma pessoa que, sabe-se lá porquê,
talvez por não conseguir de outra forma,
espetou a alma numa folha de papel. 

Miguel Tiago

Saturday 3 April 2021

convocatória

de todos os momentos que me convocam
o mais compulsivo é o agora,
o hoje enquanto morre gente
por não responder à chamada.
de todos os momentos que nos convocam,
de todos os sussurros que na verdade são gritos
que chegam desmaiados pela distância,
o mais obrigatório é o agora.

o entretanto é tempo de sobra para perder a vida
de uma criança.

às armas. 

Miguel Tiago

Thursday 1 April 2021

Por palabras

Joven poeta
busca voluntarios
para darle muerte
el día en que
se convierta en
un burgués
autoconvencido
de su propia valía
y haya olvidado que
una vez
puso este anuncio.


Pepe Ramos

Tuesday 30 March 2021

sem título

no olho uma lágrima de saudade
um brilho de eternidade
que não se desmentem

Miguel Tiago

Saturday 27 March 2021

pensamento ii

 em certo sentido somos obras de arte, porque ao transcender-se pela arte, o nosso antepassado, gerou um ser mais próximo do que somos hoje. nos riscos, ou canções, nos tambores ou danças, estavam as sementes de todos os sonhos, da celebração da alegria à sagração da tristeza. como o Ouroboros que devora a própria cauda, a arte é o Homem e o Homem é a arte. a experiência criativa, criou outros homens, outras mulheres, novos, com sonhos mais fundos e com mais pincéis para pintar de todas as cores o futuro.

nesse sentido, sorrio, porque algures na minha árvore genealógica está a poesia. 

Miguel Tiago

Wednesday 24 March 2021

sem título

do comboio ficam para trás
todas as paisagens
os homens e as mulheres distantes
os prédios cinzentos
os campos verdes ou amarelos
e a linha do destino vai-se desenhando
lentamente no horizonte
enquanto se desfaz nos carris o desenho
da origem

Miguel Tiago

Sunday 21 March 2021

sem título

 fosse sob as ramagens agitadas
fosse vento
fosse mesmo de noite
em pleno sol e a sombra inexistente
fosse meio despida
a saia levantada
a roupa desviada com a ponta dos dedos
ou nu integral
com vinho
sem água
porta aberta
sem ninguém ver
olhos fechados vendados ou abertos
fosse no leito no peito
no parapeito
e a chuva lá fora
tu molhada
e eu lá dentro
fosse com a língua no sexo
ou a respiração atrás do pescoço
fosse no chão duro
ou na macieza de um areal de seda
sem tremer
quase sem respirar
fosse com o esqueleto ao relento
a vibrar de tanto frio
em pé de pé
de costas
um beijo
uma noite
duas horas
um minuto
uma onda do mar
um toque de veludo
é sempre amor
mas não é todo o amor

Miguel Tiago

Thursday 18 March 2021

sem título

tenho o duro obstáculo das letras
que não posso ordenar em palavras
porque a janela por vezes se fecha
e a brisa não entra 
os pulmões não ardem
e as papilas gustativas não sentem mais
que a textura de um papel em branco
das melodias talvez a mais pura
por ser a do silêncio ausência
tempo de tudo
que traz mensagens do limiar do vazio
que só alguns podem ouvir e decifrar
principalmente escrever nos átomos 
que nos fazem vibrar
e acender 
vazio de todas a mais bela forma
 
Miguel Tiago

Monday 15 March 2021

poema da noite e do egoísmo

é neste último cigarro de vinho
que evapora dos meus ombros o peso das horas
que o fôlego brando do descanso me toma
e o ar limpo me respira
que a noite vem suave pousar-me na têmpora o seu beijo
me entrega no pio das corujas brancas
e finalmente
no silêncio 

Miguel Tiago

Friday 12 March 2021

sem título

da massa que compõe a terra
das mãos que a moldam, 
não há valor que se escreva em números
como dos olhos brilhantes dos vivos
não testemunham os abutres que comem os mortos
 
Miguel Tiago

 

Tuesday 9 March 2021

coragem

 de onde vêm as sombras quando a venda que tens nos olhos te veda a luz e o escuro é uma ilusão de conforto onde até as crianças adormecem? e contudo, nas palavras estão as perturbações do campo electromagnético a que és alheio, no murmúrio do mar e na lonjura do horizonte estão os vultos que te convocam a levantar o rosto. quando semicerras os olhos, vendados, vês os traços do futuro desenhados a carvão pelos teus antepassados. vês nas árvores que pressentes, escrito o amor cravado com navalhas enquanto as folhas agitadas clamam por pássaros que testemunhem que são elas quem se levanta do chão aos céus, com braços ao alto e raízes fundas. são as contradições que nos matam, e o oxigénio que nos alenta. vês esboços de poemas ditos do fundo de um algar onde não podes cair. e os ecos dos gritos mudos dos morcegos despem a rocha da caverna em que tu próprio te escondeste por não teres as mãos atadas e o sossego te impedir de assaltar o ar livre. a humanidade nega-te a tua própria humanidade no conforto. mas tu sabes. no fundo tu sabes. que há luz e há vida. que é uma venda que a luz te nega como nos negamos a um prazer para obter outro, ou como negamos a coragem por medo do que significa coragem. medo. do que significa coragem. 

Miguel Tiago

Saturday 6 March 2021

sem título

a poesia é um ribeiro límpido

laminar, ladeado pelo musgo verde dos bosques húmidos 
e escuros de tranquilidade
ou um fogo cortante
lava incandescente no centro de um vulcão mortal
a poesia é uma mulher nua no meu quarto 
enquanto as cortinas translucidas ondulam com a brisa da primavera
ou a solidão agreste e a garrafa de vinho abandonada
e o cigarro quase apagado fumegando pequenas nuvens 
de tristeza
a poesia não é feita de versos.
 
Miguel Tiago

100 anos de PCP

 


Wednesday 3 March 2021

a AC

 

temem-te os que temem a humanidade;

amam-te os humanos.
em vida, e no exemplo imortal que se projecta 
como uma luz ao fundo da história.
 
Miguel Tiago

 

Monday 1 March 2021

do meu mundo

 do meu mundo não se vê o teu.
do meu mundo levanta-se um muro de ignorância
uma trincheira de egoísmo
um vulcão de escuridão que se levanta pelo céu em furiosas nuvens
de enxofre.

do meu mundo não se vê o mundo dos outros,
separaram-nos em compartimentos estanques,
cubículos, cidades, números, corpos.

os mundos

dos outros,

são afinal iguais aos meus.
para eles, o outro sou eu. 

Miguel Tiago

 

Saturday 27 February 2021

- sem título -

 

um peixe grande sereno
não agita a superfície
do lago.
 
 
Miguel Tiago

Wednesday 24 February 2021

- sem título -

 que o mar se encha de pôr-de-sol,

e que das ondas flamejantes 
os olhos se nos encandeiem. 
pudessem os versos refulgir 
e os teus olhos uniriam as pálpebras
à luz vermelha do astro.
 
Miguel Tiago

Sunday 21 February 2021

sem título

 já não há que dizer,
já não pode bastar escrever.

escrito no sangue dos vivos
está o último fôlego dos mortos.

não há já gritos, nem punhos,
nem protestos, nem discursos,
há poder cativo, e urgente libertação.

não há já palavras que bastem nem vai haver.

só a poesia em movimento,
entrando como ar nos nossos pulmões,

derrubará o dique que represa a pressa de progresso,
incontível rio de sonhos antigos,
e só então nossas mãos se abrirão poderosas alvas asas.

Miguel Tiago

Thursday 18 February 2021

poder (reedição)

 

à luz estranha das tochas decorativas do jardim, sob o ar denso do final das tardes de verão, com as encostas tímidas ainda insinuadas no fim da paisagem onde o sol se pôs, conversámos de pé.

fiz-lhe companhia naquela noite até ali, mas sabia que em breve ele teria de ir aqui e além apertar as mãos dos outros. os fatos escuros passeavam-se por ali, uns sós, outros acompanhados. os gordos encostavam-se a uma coluna ou a uma ombreira de porta – olhando o jardim desinteressados, bocejando o tédio cá para fora, desejando o sono lesto sob o calor húmido. geralmente acompanhados de suas senhoras, que tão bem decoravam o espaço, valha-nos deus com aquelas vestes absurdas de verde, de amarelo, de tantas cores, e aquelas jóias de outros tantos tons que nos passavam diante dos olhos sem que tivéssemos sequer tempo de lhes apreciar a beleza, tal a rapidez com que nos apercebíamos da fealdade do conjunto.

o jardim estava separado por um balcão de pedra esculpido em pilares polidos. Junto à casa, o chão de pedra dificultava os saltos das senhoras e lá em baixo, na relva prateada pelo luar, junto à pequena fonte de inspiração clássica, passeavam de copo em riste os outros que não se rendiam ao sono e ao tédio. por ali voavam palavras distantes dos assuntos do trabalho, pouco importava a situação económica do reino-unido ou as explorações de petróleo no médio-oriente. a situação política do continente asiático também se ficava no chão de pedra onde as senhoras custavam a equilibrar-se.

enquanto ele cumpriu o seu negócio, aproveitei a noite para raros momentos de ócio em tão belo jardim. longe do sol abrasador e das lanças do calor, aproveitei as escadas que desciam até à relva e o caminho escurecido pelas folhagens em arcada para fazer descair, ponderadamente e e com gesto bem cuidado e estudado, um pouco a alsa do ombro direito, anunciando o pescoço, onde descansava o fino e simples fio de prata. o copo seco foi atirado para cima de uma bandeja que passava, trocado por outro, com a dose de martini para desfazer o sabor dos chocolates horríveis que me tinham obrigado a comer, vindos sabe-se lá donde. e ali foi o copo vazio trocado por um cheio, para que se cumprisse o destino das coisas.

a lua brilhava forte, e o ar quente acolhia o seu brilho como num abraço, a relva parecia húmida de tanto luar. sobre a prata da relva e sob o clarão da lua, encostei-me à bancada da varanda, feliz. de ombros nus ao calor, um pouco turva e confusa de sentidos, de alcoól e de conversas alheias. sentia no pescoço aquela brisa de verão que por si só nos faz sorrir. outro se juntou, elegante, gravata escura, cigarro aceso, puxando um fumo calmo e sereno. trazia um e outro copo, cheios. passou-me um com uma boa noite aconchegante e vibrei. tirei apenas uma mão do balcão da varanda, para lhe receber o copo, agradecendo com um olhar nos olhos que se deslocou em aceno para o seu peito. as palavras de circunstância são nestas ocasiões absolutamente desprovidas de qualquer substância, como aliás, lhes costuma ser característico. por isso mesmo, me falou sem enfeites logo após perguntar o meu nome. em tons de sedução tão óbvios quanto motivantes e eu sentia-me o centro, o motor da sua vaidade.

o meu corpo aberto, sob um vestido de ofensiva e pecadora transparência, mostrava-se-lhe com impulso próprio. e eu que era apenas convidada como acompanhante... lá em cima a minha companhia, olhava pelo canto do olho a minha aventura descabida, despreocupado. senti o olhar e abandonei-me. o meu poder era infinito naquele momento. em mim se concentravam as belezas e as forças do mundo todo daquele momento daquelas vidas. e o poder de ser eu, de provocar despreocupação por amor profundo, de suscitar excitação por gozo puro... era esse o meu desígnio por minutos.

o próprio poder era eu. bastava-me querer que o ridículo cobriria de negro aquele homem e nem uma ponta de vergonha o tocaria por isso. não era ele que me excitava, mas sim eu sobre ele. não era amor ali na bancada da varanda, era poder. e mesmo assim, apeteceu-me por instantes o abandono de tudo, entregar-me. encostar nu o peito ao peito forte de outro, dele ali tão perto e tão disponível, tão entregue e desprotegido.

perderia a noção de quem seria afinal o poder. porque o poder de seduzir está na capacidade de negar, mesmo que no último momento os sopros do prazer. a corporização reduz o poder ao mero desejo mortal, comum ensejo de homens e mulheres que não se amam. por isso mesmo, o olhar que diz sim é um corpo que diz não. é isso que me eleva onde nenhum orgasmo promíscuo me levará, porque é esse o meu poder.

os copos já vazios, sob a bancada, lá em baixo o rio ria-se de mim, sentia-me intimamente palpitar.
A conversa durou o tempo exacto para que ninguém desmotivasse, pelo contrário. Virei as costas com boas noites delicadas, um olhar demorado ainda o agarrou uns instantes enquanto me afastava. seguiu-me, e sem que soubesse, tremi e senti o terrível vazio do início de noite. Mas eis que dou os braços à minha companhia. Ao meu homem. E me vou.

Miguel Tiago

Monday 15 February 2021

sem horizentes


o horizonte é a linha a partir da qual não podemos ver o que para lá dela se situa. 
todavia, a que mais nos seduz transpor.
mesmo que de lá a inexorável morte se anuncie, é lá então que quereremos morrer.
 
Miguel Tiago

Friday 12 February 2021

sem título

 tive de deixar os sapatos à porta
para entrar descalço
na minha vida.

agora sangram-me os pés,
tantos os vidros partidos pelo chão. 

Miguel Tiago

Tuesday 9 February 2021

- sem título -

 

nos dias de maresia
junto às muralhas
sentes no rosto o choro das ondas
em revolta

um pequeno frio

salpica-te a alma. 
 
Miguel Tiago

Saturday 6 February 2021

sem título

 

se tudo quanto levas contigo é a morte,

que deixes tudo quanto possas de ti na vida. 

Miguel Tiago

 

Wednesday 3 February 2021

lei da dupla negação


a esperança nasce quando a esperança morre,
como a árvore que se nega para novos rebentos tomarem o seu chão,
longínquos sonhos são os que ficaram para trás,
pois hoje, amanhã é utopia.  

Miguel Tiago

Monday 1 February 2021

- sem título -


nos dias de maresia
junto às muralhas
sentes no rosto o choro das ondas
em revolta

um pequeno frio

salpica-te a alma. 
 
Miguel Tiago

Saturday 30 January 2021

- sem título -

 o sopro que nos enche de novas moléculas
o sangue,

aquele orvalho que se eleva ao céu
no final das madrugadas,

poema.

e é os dias. todos. e as noites. todas.
assim possam os homens. todos. ter poesia. 

Miguel Tiago

Wednesday 27 January 2021

vida de criminoso

 criminoso és tu,
filho de quem jamais escreverá leis
nas assembleias-matilhas,
criminoso és tu que aos portões da fábrica
não deixas partir o que construíste
e enfrentas o escudo e a arma romba do cão-de-fila,
criminoso és tu que não vendes de borla o teu trabalho
e desafias o deus moderno
das santas bolsas e dos benditos mercados.

Cri  mi  no  so!
gritam envoltas na chinchila morta as senhoras
gritam raivosos de charuto gordo os senhores,
ai que nos levam o que nos deram a ganhar,
ai! que nos levam a mansão feita de seus ossos,
ai que nos levam a herdade feita de sua carne,
ai! que nos levam a carteira feita de sua pele,
e o manjar de sangue dos nossos banquetes!

criminoso és tu que ousas cheirar
o esterco em que te enterram e dizer a toda a gente
que um dia ousarás escrever as leis
do povo, nas ruas e nas fábricas,
e que se cada linha dessas leis valer uma vida,
muitas são as dos criminosos prontos a dá-la. 

Miguel Tiago

Sunday 24 January 2021

uma falua


navega falua
tranquilas águas,
e corta com a proa pequenas ondas
de um estuário sem vento.
navega falua 
rumo à foz.
e leva nas velas a nossa voz.
 
Miguel Tiago

 


Thursday 21 January 2021

capitalismo

eu sou vampiro e ando de dia,
não fujo da cruz e nela me refugio.
cobro juros sobre o sangue que te sorvo,
e assim mantenho a ninhada da aristocracia.
 
Miguel Tiago

 

Monday 18 January 2021

lei da dupla negação

a esperança nasce quando a esperança morre,
como a árvore que se nega para novos rebentos tomarem o seu chão,
longínquos sonhos são os que ficaram para trás,
pois hoje, amanhã é utopia.

Miguel Tiago

Friday 15 January 2021

O CAMINHO DAS ESTRELAS

Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda
sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade

Simples nota musical
indispensável átomo da harmonia
partícula
germe
cor
na combinação múltipla do humano
preciso e inevitável
como o inevitável passado escravo
através das consciências
como o presente
Não abstracto
incolor entre ideias sem cor
sem ritmo entre as arritmias do irreal
inodoro
entre as selvas desaromatizadas
dos troncos sem raiz

Mas concreto
vestido do verde
do cheiro novo das florestas depois da chuva
da seiva do raio do trovão
as mãos amparando a germinação do riso
sobre os campos da esperança
A liberdade nos olhos
o som nos ouvidos
das mãos ávidas sobre a pele do tambor
num acelerado e claro ritmo
de Zaires Calaáris montanhas luz
vermelha de fogueiras infinitas nos capinzais violentados
harmonias spiritual de vozes tamtam
num ritmo claro de África
Assim
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo.

Agostinho Neto

Tuesday 12 January 2021

a rapariga e a raposa (reedição)


Ilustração de M.
 
Miguel Tiago

Saturday 9 January 2021

ordem i


plácidos os rostos dos que sofrem,
com uma nuvem de fragilidade cobrindo os olhos,
são cordeiros mansos, folhas ao vento perdidas,
cabisbaixo ajoelha ao senhor, implora migalhas,
sorri ante a escada que nunca subirá.

estende a mão o porco, sacode a cinza do charuto
e lambe dos lábios o último trago do cognac,
o cheiro do ócio a coberto do negócio, tresanda
a uma decadência balofa, escondida sob contas bancárias
imperscrutáveis.

a terra é uma benesse, oremos ao patrão, sem ele não teríamos pão.
dizem-nos aqui rente ao chão, mas consta que se dirá o mesmo no céu.

esta é a ordem natural das coisas que deus traçou,
para os homens inteligentes tudo, para os tapados, nada.
eis que facilmente se explica a relação dos ricos com a inteligência
e dos pobres com a falta dela.

se ainda trabalhas para comer, incapaz foste e continuas a ser,
sorte a tua quem te acolha em imensa bondade.

de resto, não há mais quem destrua a escada da ilusão,
senão tu, cordeiro manso, leão audaz.

Miguel Tiago

Wednesday 6 January 2021

Os Ceifeiros


Curvados sobre a terra,
não sei se o esplendor
do trigo e das papoilas
vos acende nos olhos alegria bastante
quando o sol não é só luz
mas uma carga brutal que se abate
sobre o vosso dorso.
Com a foice na mão, quando o sol é apenas fogo
e meditais no vosso esforço, na abundância
das espigas, no vosso
pão minguado,
talvez uma praga
vos suba
à flor dos lábios.
Com o eco remoto das histórico, das lendas,
procurareis reavivar as profecias
que se vos enraizaram no sangue.
E à hora do sol-pôr,
a caminho das eiras,
continuais a repetir: bom golpe de foice!


«Bom golpe de foice!»
e não temos a menor ideia
de como as palavras nos vieram despertar.
«Bom golpe de foice!»
como quem dá os bons-dias
«Bom golpe de foice!»
Na oficina, na mina, nos andaimes,
alguém ousou gritar: «bom golpe de foice!»
Bom golpe de foice, se nos regateiam o trigo,
bom golpe de foice!

Félix Cucurull

Sunday 3 January 2021

A Hora das Gaivotas


Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
É noite
É a espada líquida da noite
– Chicharro com pão dormido, camarada…
pão dormido…

As gaivotas ensaiam o voo tresloucado
dos papagaios de papel
Parecem ter medo de poisar,
de dar descanso ao seu coração suspenso:
O medo de calar por dentro
– … e rabanadas com três dias
– Tudo nos serve para medir o tempo
Eles não sonham…

É a mais líquida de todas as noites
Nada se conforma no seu próprio destino:
As casas,
O mar,
As gaivotas,
Os homens…
Tudo parece convergir para o ninho inevitável
onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:
A Liberdade


(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do refeitório)


– É tão louco este mundo, camarada
1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch
O maior grito da humanidade
– O inexplicável grito de todos nós

Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e, protegidas pelos pais,
adivinham por detrás das cortinas
um sinal que dê sentido a tudo
Ninguém sabe o que espera
mas toda a gente espera em silêncio
É como se a terra soubesse
que há dias em que o mundo tem de ser redondo
3 de Janeiro de 1960
Às sete em ponto da tarde

 Adágio–Allegro non troppo


– Nada me passa na garganta, só um grito mudo…
– A estrada ainda está deserta, nem uma luz…
Mas ele há-de vir!
– Somos 10, estamos contados
– Contemo-nos de novo:
Álvaro,
Jaime,
Joaquim,
Carlos,
Francisco,
José,
Guilherme,
Pedro,
Rogério,
Francisco.

E eu, e tu, e quem atrás de nós vier
E todos os que hão-de nascer
Com uma côdea no céu-da-boca
É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada
na praia, aos nossos pés
para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade

 Allegro com grazia


– Pai, olha aquele carro, olha aquele carro
– Apaga a luz, apaga a luz…
– Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho…
– Vem do lado das docas…
– Pai, repara, as gaivotas pousaram todas…
– … e parou em frente ao forte
É a hora das gaivotas
É a hora das gaivotas
– O homem está a sair do carro, pai…
– Sim. Vai fechar a mala, certamente…
– Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente
– São misteriosas as campainhas do destino

 Allegro molto vivace


Em todas as casas há um coração suspenso
pelo medo e pela saudade
e uma boca amarrada às paredes cegas
– Francisco, rasga esses lençóis
que nos fizeram para sudários.

Todas as palavras são medidas
como as sardinhas
e quase nunca é domingo
– Vá, tu sabes dar os nós de pescador
Une as tiras e dá-lhes um nó no meio
para que as mãos encontrem mais firmeza

A terrina ocupa o centro da mesa
as crianças são servidas primeiro
Apenas o tilintar das colheres
abre feridas no silêncio das casas
E as côdeas de pão dormido
quando estalam no céu-da-boca
– Somos 10, estamos contados
A corda tem de servir 10 vezes, camarada

O jantar é em silêncio
Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas
ouve-se a sua pulsação
a estalar o coração das gentes
– Pai, posso ir à janela?
– O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa
– Há, pai! As gaivotas não se calam
E as ondas batem sem conta certa
– Deixa-me apagar a luz…
– Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o
outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas
– Esperam alguém. É gente de bem

 Finale — Adagio lamentoso


– Não olhes para baixo, camarada

E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
– Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte…
Em todas as casas há um coração suspenso
e um lugar vazio à mesa
– Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa
Não olhes para baixo
– Pai, o homem pôs o carro a trabalhar…

Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule
os ruídos dos ossos contra as pedras
É a natureza do lado certo
– Pai, outro homem… e outro… e outro…
É o medo contaminado pela esperança
e a espada líquida da noite virada de feição
– Pai, ajuda-me… não entendo, não entendo…
– É a hora das gaivotas, meu amor!

João Monge


Friday 1 January 2021

LIBERDADE


Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.


Armindo Rodrigues