Monday 27 February 2017

O LACRAU


Couraçado como um guerreiro antigo,
o lacrau de orgulhoso e esbelto porte,
no chão, quieto, espreita o inimigo,
para num brusco abraço lhe dar a morte.
Não se lhe chame traiçoeiro e ruim.
É da condição dele ser assim.


Armindo Rodrigues

Friday 24 February 2017

A PRIMEIRA PRISÃO...


A primeira prisão é a pele que nos veste,
a segunda a família que nos coube em sorte,
e, limitado a sul, limitado a norte,
limitado a leste, limitado a oeste,
em seguida o país,
em que habita uma gente
que o que faz ou não faz,
que o que diz ou não diz
nos marca para sempre, irremediavelmente.


Armindo Rodrigues

Tuesday 21 February 2017

INVENTÁRIO DE DOMINGO

No domingo pastoso e lento
há um relógio realejo
redondo como um bocejo
que rói o tempo e o pensamento.

Há o bairro puído e humilhado,
há sempre o disco usado na vitrola
e há uma lágrima que rola
entre o presente e o passado.

E há a chuva, que prevê o calendário,
e há o tédio, e há a monotonia
banal na sua geometria
que vai da gaiola ao aquário.

E há o amor, um amor assim-assim,
burguês, dominical e burocrático
que seria alegre se não fosse dramático,
que seria tudo se não fosse um folhetim.

E há pessoas ancoradas nos salões
horas e horas com olhar fixo e duro
para que os olhos das crianças do futuro
sejam rectangulares como televisões.

Sidónio Muralha
(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

Saturday 18 February 2017

PRIMEIRO RETRATO DO NATURAL


E
la queria perceber o que se passa.
Queria?

Passa a rua às risadas.
«Uscumunistas?»

Gritam flores da jarra.
Estão inocentes?

O telefone terrinta.
É o destino?

Na bandeja de prata, o sedativo.
Por tomar?

Na sala das porcelanas, a senhora.
Por viver.

*
De sentinela à porcelana
está Inês ou Teresa ou Ana
(Maria, deixa-se ver).
Tem à mão uma bengala
para o que der e vier:
«Se os bolchevistas entrarem,
vão ver, vão ver!
As porcelanas inteiras
é que eles não hão-de ter!»

*
Porcelana implora
Senhora insiste.
Até que a levam prà cama,
pauzinho em riste, zangada.

É uma terrina vazia
que em sonhos se suicida
à bengalada.


Alexandre O'Neill

Wednesday 15 February 2017

NA RUA RIACHUELO

Na Rua Riachuelo
passa empinando o vestido:
O meu filho vai ser belo
quem emprega o meu marido?

- Todo o mundo distraído
na Rua Riachuelo.

Lá dentro estrebucha a vida
aos pontapés furiosos,
o seu filho vai ser belo
vai ter os olhos formosos,

- passa a gente distraída
na Rua Riachuelo.

O senhor por gentileza
não emprega o meu marido?
Meu menino vai ser belo
se houver um prato na mesa.

- Todo o mundo distraído
na Rua Riachuelo.

Só faltam cinco semanas
amigos, façam favor,
sem pão nada será belo,
tenham maneiras humanas
tragam um pouco de amor
à Rua Riachuelo.

Menos gente que adormece,
menos gente distraída
e o futuro será belo.

- alguma coisa acontece
são os pontapés da vida
na Rua Riachuelo.

Freme a tarde sonolenta
tudo vibra, o ventre, os seios
e o filho que vai ser belo.

E um rio de esperança rebenta,
rompe e arranca os passeios
da Rua Riachuelo.

Sidónio Muralha
(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

Sunday 12 February 2017

SALAZAR E FRANCO


Criadores de infernos, garras da Pide
trespassando a desarmada presa:
em Lisboa, Augusto Fineza
Julián Grimau em Madride

Salazar e Franco
do Apocalipse a dupla besta nua
cavalgando nas trevas da encruzilhada:
um a matar à luz da rua
outro, de madrugada

Que a nossa dor, pedra que nos oprime
seja a memória também de pedra
e o bronze de uma voz que não se cala:
Assassinos Assassinos


Luís Veiga Leitão

Thursday 9 February 2017

Pirata

Gostava de ser pirata
e viver meu dia-a-dia
no convés de uma fragata...
Gostava de ser pirata,
aproar num cais distante
perfumado de maresia
e ter aquela que passa,
de passagem, por amante...
Não saber do seu passado,
não pisar sua desgraça,
mas pecar no seu pecado
de ser aquela que passa
Gostava de morrer cedo
e de ser lançado ao mar,
e enrolar o meu segredo,
o meu segredo enrolar
nos limos e nas montanhas
que estão no fundo do mar...
- E o mundo ficar, assim,
sabendo as minhas façanhas
sem saber nada de mim...
Depois, gostava de ver
o meu segredo soltar-se,
rolar nas ondas, rolar,
subir, crescer, espraiar-se,
alongar-se pelo mar...

Dormir no luar de prata,
acordar ao sol nascente,
e gritar que fui pirata,
praia em praia, a toda a gente...
E gritar que fui pirata
mas que não soube matar
- Só me matei a mim mesmo,
porque gostava do mar.

E o mar rolou nos meus versos,
rolou nas minhas paixões,
desmantelou universos,
subiu em rudes clarões,
e o mar rolou no meu pranto,
nas minhas falas de louco
que viveu e sofreu tanto
só por ter sofrido pouco.

O mar beijou minha infância,
deu-me as ondas por brinquedo,
deu-me o sol, deu-me a distância,
em troca do meu segredo:
- qual a razão do meu pranto,
das minhas falas de louco...
- e soube que sofri tanto
só por ter sofrido pouco...

E o mar quebrou as amarras,
virou as embarcações,
chorou na voz das guitarras,
rebentou nos corações,
entrou pelo mundo fora,
prendeu-o num rumo certo
e, quando se foi embora,
deixou o mundo deserto...

Só porque ouviu o meu pranto
e as minhas falas de louco,
e soube que sofri tanto
só por ter sofrido pouco.

Sidónio Muralha
(«Beco» - 1941)

Monday 6 February 2017

A LEITURA (brechtiana)



Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra.
Pergunta: «Por que está 'qui?»


Alexandre O'Neill

Friday 3 February 2017

CASA DE PENHORES


I 
Rua estreita - não sei quem lá passou.
Porta aberta - não sei quem lá entrou.
Não sei - não sei dizer e não me importa,
nem a rua, cansada de ser rua,
nem a porta cansada de ser porta.

Mas foi aqui, na rua triste e nua,
e junto à porta aberta, fria e larga,
que me surgiu aquela frase amarga
e nunca mais me deixou:

- Schubert empenhou o violino e o mundo não estoirou!

II 
Mas não falemos de Schubert... Falemos da velha tonta...
- A velha tonta que perdeu a neta
e anda, de porta em porta, a imitá-la...

Diz assim, aflautando a sua fala:

«Ó velha, conta... ó velha, conta
aquela história triste do poeta...»

- A velha tonta que perdeu a neta
todos os dias ajoelha
em frente da lamparina...

(O Cristo empenhou-o a velha
para salvar a neta pequenina...)

E a velha tonta reza à lamparina:

- «Meu Deus, perdoa-me a audácia
de ter teu Filho empenhado...
- Foi por causa da conta da farmácia...
Perdão, meu Deus, perdão!»

- E o Cristo, resignado,
em três meses de juro crucificado,
espera o dia do leilão.

Sidónio Muralha
(«Beco» - 1941)

Wednesday 1 February 2017

A TRAIÇÃO


quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro de si
os quatro cavalões do vosso apocalipse


Alexandre O'Neill