Friday 9 October 2015

Dia 267


O galo é um artista. Consagrado artista já sem palco, já sem público, crista roxa, rasa, sem rito nem relâmpago. Amo o galo pelo seu entendimento do tempo, pelo seu coração de fábula, o sangue quente, e o furor do pressentimento escavando a noite, enterrando os esporões nos flancos da vigília. Nada resta ao galo que não seja produto de conquista, orgulho e sapiência. Por isso recebe ainda a manhã como terra de irmãos, sem desânimo nem abandono.
O galo, aqui se sente, aqui se sabe. Alma louca e usada, ousada teimosia que não guarda lembranças, que escuta os vermes da terra em espaço de sombra, que acende o bico justo com suprema alegria. A si mesmo se inventa o galo, vestido de limites, coxas fixadas como gritos, e um canto vermelho e jovem contemplando o mais ínfimo cansaço de Deus. No corpo de vertigem, agitam-se mil bandeiras, mil penas, mil palavras.
Um veneno de giestas matará o galo. No momento em que se encontre a moer alegrias, a discutir com a noite em pleno dia.
O galo há de morrer da nossa inquietação. E da nossa infeliz vontade de condenar o mais imparcial dos corações livres.


Joaquim Pessoa