Wednesday 30 January 2013

ANA E ANTÓNIO


A Ana e o António trabalhavam
na mesma empresa.
Agora foram ambos despedidos.
Lá em casa, o silêncio sentou-se
em todas as cadeiras
em volta da mesa vazia.

«Neo-realismo!» dirão os estetas
para quem ser despedido
é o preço do progresso.

Os estetas, esses, nunca
serão despedidos.

Ou julgam isso, ou julgam isso.


Mário Castrim

Sunday 27 January 2013

OS ESTATUTOS DO HOMEM



Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade,
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
de duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com o seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal do seu suor.
Mas sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begónia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.


Thiago de Mello

Thursday 24 January 2013

Viagem através de uma tipografia clandestina



Gritar Liberdade!, é fácil
quando existe liberdade.
É fácil defender a liberdade de expressão
num off-set sofisticado
com ar condicionado, telex, telefones,
salário, hora para almoço, avales bancários,
protecção das leis e do governo
amplas janelas para o Sol, quebrado
por estores de alumínio, docemente.

Assim
ser pela liberdade de expressão
é cómodo e é fácil.

Mas do que eu estou a falar é doutra coisa.
Se entendeste, o poema está cumprido.
Se não, o poema espera
com a paciência tradicional de todos os poemas.

Mário Castrim

Monday 21 January 2013

Viagem através de uma inscrição a lápis em Caxias


«Encontramo-nos
nesta sala
setenta e dois camponeses
do Couço
e de Montemor.
Sempre
sempre nos demos
como irmãos.

Vocês devem continuar
a fazer o mesmo»


Mário Castrim

Friday 18 January 2013

DA DEMOCRACIA



Descendia o rei
de outros reis e senhores
matadores
de Índios
(pois já o diz a sabedoria
das grandes nações:
que o único índio bom
é o índio morto).
E então o bom rei quis
silenciar o índio.
Mas a era dos índios
calados
acabara
e o rei saiu da sala
com a coroa entre as
pernas
e a fama de democrata -
como convém a um rei
por um grande democrata
nomeado.
Os democratas, em
uníssono,
aplaudiram.
O índio?
Não! O rei.

José António Gomes

Tuesday 15 January 2013

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA LÁGRIMA


Nós, comunistas,
não habitamos
o deserto
nunca.

Há sempre
alguma coisa
alguém
uma palavra
uma canção
um nome
que de repente
se transforma
em lágrima.

A lágrima
ao sol
é um pequeno punho
de cristal.

Mário Castrim

Saturday 12 January 2013

CANTAR DE AMIGO



Eu e tu: milhões!...
Entre nós - perto ou longe -
entre nós, rios e mares,
montanhas e cordilheiras...

Eu e tu, perdidos
nesta distância sem fim do desconhecido;
eu e tu, unidos
para além das cordilheiras,
por sobre mares de diferença,
na comunhão de nossos destinos confundidos
- a minha e a tua vida
correndo para a confluência
num mesmo Norte.

Eu e tu, amassados,
nesta angústia que é de nós,
minha e tua,
e mais do que de nós...

Eu e tu,
carne do mesmo corpo,
amor do mesmo amor,
sangue do mesmo sacrifício!...

Eu e tu,
elos da mesma cadeia,
grãos da mesma seara,
pedras da mesma muralha!...

Eu e tu, que não sei quem és,
que não sabes quem sou:
Eu e tu, Amigo! Milhões!


Joaquim Namorado

Wednesday 9 January 2013

REVOLUÇÃO

Entre tu e mim
há um montão de contradições
que se juntam
para fazer de mim o sobressalto
que fica de testa suada
e te edifica.
Miguel Barnet

Sunday 6 January 2013

IRENE NO CÉU



Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.


Manuel Bandeira

Thursday 3 January 2013

Como nascem as bandeiras


São assim agora as nossas bandeiras.
O povo bordou-as com a sua ternura,
Coseu os panos com o seu sofrimento.

Gravou a estrela com a sua mão ardente.

E tirou, da camisa ou do céu,
Azul para a estrela da pátria.

O vermelho nascia, gota a gota.


Pablo Neruda, em Canto Geral

Tuesday 1 January 2013

AMIGO


Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já, uma grande festa!

Alexandre O'Neill