Thursday 30 January 2020

EU DISSE-TE, MÃE

Eu disse-te, mãe, a minha boca já não sabe
falar de amor. E agora desconheço o caminho
para regressar ao passado. O silêncio deixou
tudo intacto, sem rasto que eu possa seguir.
Mas este silêncio tem feridas, é um território
opaco, um amontoado de sombras. A terra
procura dormir em mim como se desejasse
cantar e possuir-me, tal como quando o vento
abraça as árvores. E eu, que sempre possuí um
coração de luz, começo a ter medo do futuro
porque já não há primaveras nem rios de palavras
que me inundem os olhos. Sei apenas estreitar o
corpo e dar a outra face que agora sangra nomes
e nomes, muitos nomes, que não escondem a
dificuldade de cantar porque os dedos não
estão já iluminados e as vozes florescem em
canções com ritmos mais ferozes. Restam
as doces labaredas da memória e as frias
brincadeiras da infância para ajudar-me a sorrir.
Por isso sei como é pesada a lua e quantas
noites são precisas para fabricar uma nesga
de luz. Mãe, tantas vezes eu quis dizer-te sem
que pudesses ouvir-me: a minha boca já não sabe
falar de amor, não é mais que um pedaço de terra
junto ao mar em busca de equilíbrio para que
não se torne uma ilha, ou o místico caminho
que levou Alfonsina (1) a procurar refúgio
num leito escuro de estrelas apagadas.
*
(1) Alfonsina Storni, poetisa modernista argentina
que se suicidou nas águas do Mar del Plata, em
Buenos Aires, em 1938.

Joaquim Pessoa
in QUE NOME DAR A ESTE LIVRO?, a publicar
pela Editora Edições Esgotadas.

Monday 27 January 2020

A Festa do Silêncio


Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.


Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

António Ramos Rosa

Friday 24 January 2020

Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano


Geir Nuffer Campos

Tuesday 21 January 2020

DÚVIDA

Uma dúvida, fêmea feroz, altíssima
estrela negra, fogo essencial para tudo
o que não é ainda coisa redonda, magnífica,
que se instala devagar na fala, no peito, nos
domínios da luz. Cresce em redomas de
ansiedade, viscoso animal que rasteja sinuoso,
até se enroscar nas húmidas pupilas e dormir
em nós como a criança oculta que nos liberta
e nos percorre enquanto praia ou um pedaço
de primavera, desfolhando tensões, sinais,
coisas cinzentas que o silêncio sabe e justifica.
Tudo me é fundamental quando interrogo
a dúvida, quando me pergunto onde é o
meu lugar. É assim a palavra mais doce
e furiosa, a palavra dúbia, a palavra dúvida,
essa que cria em si mesma uma forma de
fado, de fuga, de fósforo, de fluxo mental
como constelação branca entornada no
soalho do tempo, nódoa inconsolável, o
exaspero de um crime. Essa dúvida tece,
gasta, transfigura, fere. Essa dúvida é
filha com coração de diamante, que já
de nós saíu mas ainda não voltou.

Joaquim Pessoa
in QUE NOME DAR A ESTE LIVRO?, a publicar
pela Editora Edições Esgotadas.

Saturday 18 January 2020

GOLPE DE MÃO


Conforme o destino me derruba
e eu me ergo
ignorando o pancada com um golpe de mão

A febre das folhas na raiz
do silêncio

O negrume do medo
a ferir de raspão

De borco fica a morte
a finura da asa
a fissura da alma que me enleia

A dúvida acesa
sem que nunca se acalme
e me vai magoando a vida inteira

Maria Teresa Horta

Wednesday 15 January 2020

LEONOR


Não há cravos nem peixes. Não há erva
que alimente os cavalos da poesia.
Não há cornos que marrem esta merda
nem palavras que se enforquem de alegria.


Leonor vai descalça. E mutilada.
Nem formosa nem segura. Minha dor!
Não há cravos nem peixes. Não há nada.
As palavras morrem todas, meu amor.

Não há cravos nem peixes. Não há erva
que alimente os cavalos da poesia.
Não há cornos que marrem esta merda
nem palavras que se enforquem de alegria.

Leonor: antes ser morta que ser serva!
Mil vezes mais a dor que a cobardia!

Joaquim Pessoa
in AMOR COMBATE

Sunday 12 January 2020

Ao António Ramos


Folha que escuta o vento o som do muro
erguido ao sol da erva nuvem clara
feita o instante verde a pedra rara
sobre o anel do tempo e do futuro.


Boca do ar espuma das palavras
na janela do fogo abelha dura
voando sobre os beijos mão que lavras
na polpa das cerejas a mais pura

morte que se escreve com a mágoa
do medo sobre o rosto a longa asa
rasando os lábios soltos pela água
de quem faz com versos uma casa.

Joaquim Pessoa
in POEMAS DE PERFIL, 1975

Thursday 9 January 2020

CONSEQUÊNCIAS DA FUGA DE PENICHE

Álvaro Cunhal foi um dos dez dirigentes comunistas que, no dia 3 de Janeiro, se evadiram do Forte de Peniche - e que, como todos os outros, retomou de imediato a actividade clandestina antifascista.

É sabido que, pela vasta e importante obra teórica produzida e pelo papel singular que desempenhou na construção do PCP como partido marxista-leninista, Álvaro Cunhal se afirmou como figura maior do movimento comunista internacional e como «o mais relevante operário da notável construção colectiva que é o PCP».
Os seus 75 anos de militância revolucionária - desde o início dos anos 30, altura em que aderiu ao Partido, até ao fim dos seus dias - foram marcados pela preocupação dominante de, integrando o colectivo partidário, fazer do PCP o partido revolucionário que é.
E a sua singular intervenção foi de tal modo impressiva que falar da sua vida e da sua acção significa falar da vida e da história do Partido.

Na sequência da fuga de Peniche, Álvaro Cunhal desempenhou um papel crucial no combate, e na posterior correcção, do desvio de direita em que o PCP mergulhara - desvio caracterizado por uma errada avaliação da situação nacional que via como «traço dominante da situação política nacional, a desagregação irreversível do regime fascista» e apontava a «via pacífica» como caminho para pôr fim à ditadura salazarista.
A partir de dois notáveis trabalhos de Álvaro Cunhal - A Tendência Anarco-Liberal na Organização do Trabalho de Direcção e O Desvio de Direita nos Anos 1956-1959 (1) - desenvolveu-se um intenso debate interno que, apesar das limitações impostas pela clandestinidade, envolveu parte grande do colectivo partidário.

O desvio de direita foi corrigido, foi retomada a linha do «levantamento nacional» como caminho para o derrubamento da fascismo, o Partido voltou a assumir o seu papel de vanguarda.
Os efeitos da correcção do desvio de direita foram visíveis desde logo na acção, na dinâmica e no conteúdo da intervenção do PCP: na vaga de lutas dos anos de 1961 e de 1962 - neste caso com o maior 1º de Maio de sempre na história do movimento operário português e com a formidável conquista das oito horas de trabalho pelo proletariado rural do Sul.

Os efeitos da correcção do desvio projectaram-se igualmente em todo o processo que conduziu à construção do histórico VI Congresso do Partido, cuja influência na revolução portuguesa iria ser determinante.
O VI Congresso - que viria a consagrar a correcção ao desvio de direita - contou, no seu processo preparatório, com um precioso contributo de Álvaro Cunhal: o Rumo à Vitória.
Trata-se de um trabalho no qual Álvaro Cunhal procede à abordagem da «linha política e táctica do Partido na actual etapa da revolução» e em que, a partir da caracterização rigorosa da situação política portuguesa - natureza de classe da ditadura fascista; definição da sua base económica e da arrumação de forças sociais, do papel forças antifascistas, da classe operária e do Partido - define os objectivos da revolução democrática e nacional, aponta a via para o derrubamento do fascismo, define uma política de unidade antifascista e define as tarefas do Partido... rumo à vitória.

«E o Rumo à Vitória foi isso mesmo: rumo à vitória que chegaria em Abril de 1974 e se desenvolveria no processo transformador da revolução portuguesa.
O Rumo à Vitória esteve nas ruas, nas fábricas, nos escritórios, nos campos, nas escolas; esteve nas políticas dos governos provisórios; esteve na acção dos militares revolucionários e progressistas e no Programa do MFA; esteve nas importantes conquistas revolucionárias alcançadas pelo movimento operário e popular, ou seja: o processo revolucionário seguiu a par e passo os passos rigorosamente definidos dez anos antes.
E é ainda rumo à vitória esta luta que há (mais de) trinta anos travamos contra a política de direita, que é a política da contra-revolução de Abril».


(1) Estes dois trabalhos integram o II Volume das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, recentemente publicado pelas Edições Avante - livro que, tal como o 1º Volume, é de leitura imprescindível.
 

Monday 6 January 2020

A FUGA DE PENICHE

A 3 de Janeiro de 1960 ocorreu a célebre Fuga de Peniche.
Pela sua superior organização; pelo facto de o Forte de Peniche ser a prisão de mais alta segurança do fascismo; por ter restituído à liberdade e à luta um valioso conjunto de quadros dirigentes do PCP, esta fuga espectacular constituiu um dos mais relevantes acontecimentos ocorridos durante a longa ditadura fascista.

Eis os nomes dos «10 de Peniche», como ficaram conhecidos:
Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Joaquim Gomes, Jaime Serra, Francisco Miguel, Guilherme Carvalho, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, José Carlos e Francisco Martins Rodrigues
(que posteriormente abandonaria o PCP).

A Fuga só foi possível graças a um planeamento extremamente rigoroso e a uma coordenação perfeita entre as organizações do PCP no interior e no exterior do Forte.
No interior, organizaram e dirigiram a Fuga, Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes e Jaime Serra.
No exterior, intervieram Pires Jorge, Dias Lourenço, Octávio Pato e o actor e militante comunista Rogério Paulo.

As consequências da Fuga de Peniche - quer no reforço interventivo, ideológico e político do PCP, quer na subsequente intensificação da luta antifascista - foram imediatas. Delas falarei aqui, no próximo post.
 

Friday 3 January 2020

«FUGA DE PENICHE - RUMO À VITÓRIA»

A fuga de Peniche - de que hoje se assinala o 50º aniversário - foi uma importante vitória da resistência antifascista.

Eis os nomes dos dez militantes comunistas que, no dia 3 de Janeiro de 1960, após um cuidado trabalho de preparação - sempre em estreita coordenação com a organização do Partido no exterior - lograram evadir-se daquela que era, então, a prisão fascista mais vigiada de Portugal:

Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Jaime Serra, Carlos Costa, Francisco Miguel, Guilherme Carvalho, Pedro Soares, Francisco Rodrigues, Rogério de Carvalho e José Carlos.

Eram, todos, quadros destacados ou dirigentes do PCP - e todos fugiram não para alcançar a sua liberdade individual, mas para, integrando a acção clandestina contra a ditadura fascista, lutar pela liberdade do povo e do País.

A fuga viria a ter repercussões assinaláveis na luta contra o fascismo.
Com efeito, na sequência desse acontecimento memorável, o PCP procedeu a um amplo e profundo debate interno, no decorrer do qual o colectivo partidário procedeu à crítica e à correcção do «desvio de direita de 1956/1959» - e os resultados desse debate foram visíveis desde logo no reforço orgânico, ideológico e interventivo do Partido.
De todo esse processo, destaca-se o contributo singular dado por Álvaro Cunhal que, na reunião do Comité Central de Março de 1961, viria a ser eleito secretário-geral do Partido.

Retomando a via do levantamento popular como caminho para o derrubamento do fascismo e assumindo a sua identidade comunista, o PCP levou por diante um vasto conjunto de acções de massas de grande dimensão e impacto, que viriam a atingir expressões superiores quer nas grandes lutas dos estudantes de Lisboa, Porto e Coimbra, em princípios de 1962, que nas gigantescas manifestações do 1º de Maio desse ano, logo seguidas pela histórica conquista das oito horas de trabalho pelo proletariado agrícola do Sul - lutas que abalaram e fizeram tremer o regime e deram mais força às forças antifascistas.

É ainda na sequência da fuga de Peniche e do desenvolvimento da luta por ela gerado que, em 1964, Álvaro Cunhal escreve o «Rumo à Vitória», texto notável que constituirá as teses para o VI Congresso do PCP, realizado no ano seguinte e no qual foi aprovado o Programa para a Revolução Democrática e Nacional - que a Revolução de Abril veio a confirmar plenamente.

Foi certamente tendo tudo isto em conta que o PCP designou a iniciativa com que hoje, assinalou, em Peniche, o 50º aniversário da fuga, por «Fuga de Peniche - Rumo à Vitória»

Wednesday 1 January 2020

Provavelmente

Provavelmente
não terei a força, o verbo, o tamanho para falar duma revolução
que rebentou no coração daqueles que, desde o primeiro vagido, a desejaram.

Provavelmente
esquecerei nomes, trocarei datas, falarei dos heróis que o não foram
e dos cobardes que tiveram a coragem de não puxar gatilhos,
de permanecerem poetas e não matarem
ainda que com essa negação da morte ficassem
com os corpos presos, que a alma não.

Provavelmente
louvarei demasiado os que me são queridos, cantarei as paisagens
onde nasci e chegarei mesmo ao despudor de gritar
que o Alentejo é o mais lindo país do mundo,
que uma papoila vermelha floresce diariamente
nos dedos dos que trabalham a terra.

Provavelmente
deixarei nas margens deste recado essoutros que em Marços
e Setembros saíram para a rua agarrados à estrela da manhã
para com ela (somente com ela) defenderem a liberdade.

Provavelmente
não saberei pronunciar os nomes das crianças
que num mês de Abril inventaram novos símbolos,
debruaram de cravos as redacções escolares, as paredes dos jardins,
os troncos dos abetos, e inundaram com as aguarelas da ternura
os olhos dos homens cansados.

Provavelmente
e porque não? direi que vi soldados vestindo a farda que o povo usa,
essa camisa lavada e branca dos nossos irmãos operários,
camponeses, trabalhadores de todos os misteres.

Provavelmente
trocarei as notas à melodia que semeou o luar, desvirtuarei
a cor da baioneta que defendeu o sol, não saberei agarrar
o espanto das mãos que seguravam o vento como quem
agarra essas bandeiras de carne a que chamamos filhos.

Provavelmente
não citarei nomes de capitães, dragonas de almirantes,
siglas dos partidos, as multidões dos comícios, as cores
dos panfletos, o eco dos gritos que rebentaram a veia tensa
deste quase meio século que sufocou o pulmão
da nossa Pátria sempre adiada.

Provavelmente
só vos falarei dum Homem com rosto de homem, palavra
de homem, o gesto simples do Homem simples e sincero
que todos esperámos na lonjura da esperança,
como o Criador esperou o nascimento do mundo.

Provavelmente
escreverei: Vasco Gonçalves.

Provavelmente
acrescentarei: - Por aqui passou um Homem!

Eduardo Olímpio
(Fevereiro de 1976)