Saturday 30 November 2019

MANGA, MANGUINHA...


A manga é um símbolo de África:
no seu sabor
no seu aroma
na sua cor
na sua forma.

A manga tem o feitio do coração!
A África também.
Tem um sabor forte, quente e doce!
A África também.
Tem um tom rubro-moreno
como os poentes e as queimadas
da minha Terra apaixonada.

Por isso te gosto e te saboreio
ó manga!
Coração vegetal, doce e ameno.

Tu és o amor do abacate
porque ele guarda no seu meio
um coração que por ti bate;

bate, bate, que bate!
Ó manga, manguinha,
amor do abacate!

Tomás Jorge

Wednesday 27 November 2019

PAREDES ALTAS...


Paredes altas, ou baixas,
estacarias, tapumes, redes de arame,
grades,
meros marcos, cães de guarda,
sinais de posse,
quando acabareis?
Quando acabarás, cobiça?
Quando acabarás, satisfação reles
e ostentosa
de explorar os outros?

Armindo Rodrigues

Sunday 24 November 2019

A BOMBA


O primeiro sopro arrancou-lhe a roupa;
o imediato levou também a carne.
Ao longo da rua
durante alguns segundos correu o esqueleto.
Mas a rua já não estava,
estava toda no ar;
de lá caíam bocados de prédios, bocados
de crianças, restos de cadilaques...
O esqueleto não compreendia sozinho
aquela situação:
deixou-se tombar sobre algumas pedras radioactivas
e permitiu na queda o extravio de alguns ossos.

(Caso curioso: o coração
pulsou ainda três ou quatro vezes
entre o gradeamento das costelas.)

Egito Gonçalves

Thursday 21 November 2019

A QUEIMA DOS LIVROS


Quando o Regime ordenou que queimassem em público
os livros de saber nocivo, e por toda a parte
os bois foram forçados a puxar carroças
carregadas de livros para a fogueira,
um poeta expulso, um dos melhores,
ao estudar a lista
dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
livros tinham sido esquecidos.
Correu para a secretária
alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não me façais isso! Não me deixeis de fora!
Não disse eu sempre a verdade nos meus livros?
E agora tratais-me como um mentiroso! Ordeno-vos:
Queimai-me!

Brecht

Monday 18 November 2019

IN MEMORIAM


Esses mortos difíceis
que não acabam de morrer
dentro de nós; o sorriso
de fotografia,
a carícia suspensa, as folhas
dos estios persistindo
na poeira; difíceis;
o suor dos cavalos, o sorriso,
como já disse, nos lábios,
nas folhas dos livros;
não acabam de morrer;
tão difíceis, os amigos.

Eugénio de Andrade

Friday 15 November 2019

OS CANTOS DOS HOMENS


Os cantos dos homens são mais belos do que os homens,
mais densos de esperança,
mais tristes,
com uma vida mais longa.

Mais do que os homens eu amei os seus cantos.
Consegui viver sem os homens
nunca sem os seus cantos;
aconteceu-me ser infiel
à minha bem amada
mas nunca ao canto que para ela cantei;
nunca também os cantos me enganaram.

Qualquer que fosse a língua
sempre compreendi os cantos.

Neste mundo,
de tudo o que pude beber e comer,
de todos os países por onde andei,
de tudo o que pude ver e ouvir,
de tudo o que pude tocar e compreender,
nada, nada
conseguiu fazer-me tão feliz como os cantos...

Nazim Hikmet

Tuesday 12 November 2019

MAIS TARDE SIM


Escreverei mais tarde
simples poemas claros
e falarei das aves
sem sofisma.

Escreverei mais tarde
de navios, lagunas,
das tuas roupas soltas
manchadas de luar...

Escreverei mais tarde
saudades da infância
e de pedras e rosas
sem dúbios sentidos.

Escreverei mais tarde
de um anel muito simples
e das tardes plenas
em que o amor se inscreve.

Mas agora deixai-me
chorar sobre estas lágrimas.

Egito Gonçalves

Saturday 9 November 2019

AS PESSOAS SENSÍVEIS


As pessoas sensíveis não são capazes
de matar galinhas
Porém são capazes
de comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
à roupa do seu corpo
aquela roupa
que depois da chuva secou sobre o corpo
porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
a roupa
que depois do suor não foi lavada
porque não tinham outra.

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
assim nos foi imposto
E não:
«com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday 6 November 2019

VOU A CANTAR...


Vou a cantar! Vou a cantar!

... mas cada vez mais próximo da Esquina
onde está talvez à minha espera...
a Garra.
Saída do outro lado do Ar...
a Garra.
Pendida da pele da sombra...
a Garra.
Implacável no silêncio curvo...
a Garra.

Mas talvez não seja ainda naquela esquina.
Talvez só na outra mais adiante
onde se vê uma ave a esvoaçar
na sombra do muro...

(O melhor é cantar! O melhor é cantar!)

José Gomes Ferreira

Sunday 3 November 2019

FICAM AS SOMBRAS...


Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
e da alma,
e do nome,
e da terra da própria sepultura,
fica a memória de uma criatura
que viveu,
e sofreu,
e amou,
e nunca se dobrou
à dura tirania que a venceu.

Fica dentro de vós a consciência
de que ali onde o mundo é mais vazio
havia um homem.
E sabeis que se comem
os frutos acres da recordação...

Fantasmas invisíveis que atormentam
o sono leve dos que se alimentam
da liberdade de qualquer irmão.

Miguel Torga

Friday 1 November 2019

NINGUÉM


Andaimes
até ao décimo quinto andar
do moderno edifício de betão armado.

O ritmo
florestal dos ferros erguidos
arquitectonicamente no ar
e um transeunte curioso
que pergunta:
- Já caiu alguém dos andaimes?

O pausado ronronar
dos motores a óleos pesados
e a tranquila resposta do senhor empreiteiro:
- Ninguém. Só dois pretos.

José Craveirinha