Tuesday 30 June 2009

Tempo fluvial

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos.

Nuno Júdice

Saturday 27 June 2009

Aldeia

Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.
Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.

Manuel da Fonseca

Wednesday 24 June 2009

Minha mãe que não tenho

Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.

Ai água que não bebo em vez do fel
qua a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que não oiço ai mãe ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que egipto vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão dostante me pariste
minha mão minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 21 June 2009

Eu sei, não te conheço, mas existes

Eu sei, não te conheço, mas existes.
Por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas nada, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
Em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
Tenho feito amor de muitas maneiras
docemente,
lentamente,
desesperadamente,
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim, que é em mim que devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti
que eu amo.

Joaquim Pessoa

Thursday 18 June 2009

POEMA

(Pastoral escrita de propósito para uma
canção de protesto de Fernando Lopes-Graça
que mantém, inflexível, um coro de canções
populares e revolucionárias.)

Ó pastor que choras,
o teu rebanho onde está?
- Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há.

Uns de finos modos,
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.

Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.

Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
vai pintar de luto
as papoilas dos trigais.

José Gomes Ferreira

Monday 15 June 2009

Os homens amo por respeito meu

Os homens amo por respeito meu
e não por mentirosa obrigação
da piedade a que uns subtis se dão
dessa ficção a que se chama céu.
Mais exigente que esses sou-o eu,
senhor da minha determinação.
De que paz é penhor uma explosão?
Que luz acende a escuridão de breu?
Vale-me quanto com trabalho ganho
aleivosia, inveja, ódio, arreganho,
incompreensão, repúdio, sangue, fel.
Ao destino cruel não me submeto.
Enquanto o mundo for assim abjecto
me esforçarei em submetê-lo a ele.

Armindo Rodrigues

Friday 12 June 2009

VIAGEM ATRAVÉS DE CATARINA

Não quiseste ser valente
não quiseste o amor do perigo
que tanta gente
conquista
- quiseste apenas estar de bem contigo
ser comunista.

E não quiseste a aventura
o gesto da eterna face
de Graça pura vestido
- quiseste apenas estar onde mandasse
o teu Partido.

Novas searas aqui
se levantaram.

Nós falamos de ti porque não te mataram.

Mário Castrim

Tuesday 9 June 2009

ALEMANHA: UM CONTO DE INVERNO

Amigos, quero compor para vós uma canção,
uma canção nova, uma canção melhor!
Queremos instaurar aqui na terra,
agora mesmo,o reino dos céus.

Queremos ser felizes nesta terra,
aqui queremos derrotar a fome
e que o ventre preguiçoso não devore
o que mãos trabalhadoras produziram.

Cresce, aqui em baixo, pão que chega
para os filhos dos homens.
E ainda há rosas e mirtos,
beleza, alegria e ervilhas-de-cheiro.

Sim, ervilhas-de-cheiro para todos.
Logo ao abrir das vagens!
O céu, não o queremos para nada,
fiquem com ele os anjos e os pardais.

Uma nova canção, uma canção melhor!
Dir-se-iam flautas e violinos...
O miserere terminou,
calou-se o dobre fúnebre dos sinos.

Heinrich Heine

Saturday 6 June 2009

ENCORAJAMENTO

... E a poesia lá vai - tão amada e detestada -
livre, como se marchasse nua contra o vento,
vai levar aos que se cansam da longa caminhada
a água pura e fresca do encorajamento.

E ela lá vai... Lá vai, e luta, quer queiram ou não,
contra a lassidão e a doença do sono,
e a quem tiver sede oferece a canção
do futuro sem grades e dos homens sem dono.

Sidónio Muralha

Wednesday 3 June 2009

UM DIA DE MAIO

Recordo esse momento, esse
terrível entusiasmo. Eram
milhares, dezenas de milhar
e todos se esticavam, todos
tentavam ver o carro, sentiam
o solene momento, gritavam
da alegria mais pura. Era
um som de pólvora liberta,
uma explosão de esperança,
de loucura, de vida - sim,
por uma vez, a vida -. Lembro
esse gosto de pão, o corte
brusco na inércia, o fogo
da presença em oferenda,
a compressão da ira vinculada
agora a um caminho. Hoje
contemplo esta praça, estas
ruas que a tristeza semeou
de novo e espero a multidão
que uma vez aqui floresceu.
Confio em que virá. O vento
fala já nos seus passos, faz
da espera alimento; o ar
vai encher-se de vozes, vai
ver-nos todos juntos, livres,
respirando através das mãos
unidas, através do ardente
fluido de alegria que liberta
as raízes do canto estagnado.


Egito Gonçalves

Monday 1 June 2009

A FÁBRICA

Da alavanca ao tear da roda ao torno
da linha de montagem ao cadinho
do aço incandescente a entrar no forno
à agulha a trabalhar devagarinho.

Da prensa que se fez para esmagar
à tupia no corpo da madeira
do formão que nasceu a golpear
à força bruta de uma britadeira.

Do ferro e do cimento até ao molde
que é quase um esgar de plástico sereno
do maçarico humano que nos solda
à luz da luta e não do acetileno

nasce este canto imenso e universal
sincopado enérgico fabril
sereia que soou em Portugal
à hora de pegarmos por Abril.

Transformar a matéria é transformar
a própria sociedade que nós fomos
ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos.

Um braço é muito mas por si não chega
por trás da nossa mão há uma razão
que faz de cada gesto sempre a entrega
de um pouco mais de força. De mais pão.

Estamos todos num único universo
e não há uns abaixo outros acima
pois se um poema é uma obra em verso
um parafuso é uma obra-prima.

Operários das palavras ou do aço
da terra do minério do cimento
em cada um de nós há um pedaço
da força que só tem o sofrimento.

Vamos cavá-la com a pá das mãos
provar que em cada um nós somos mil
é tempo de alegria meus irmãos
é tempo de pegarmos por Abril.

José Carlos Ary dos Santos