Sunday 30 June 2013

CANTIGA DE ABRIL


Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz do cemitério
toda prisão e censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Jorge de Sena

Thursday 27 June 2013

Viva Abril!


Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de Abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade

Monday 24 June 2013

Nesta hora


Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
a metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção -

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.

20 de Maio de 1974

Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 21 June 2013

COM FÚRIA E RAIVA



Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Junho de 1974


Sophia de Mello Breyner Andresen

Tuesday 18 June 2013

DRAMA


A quem falo no mundo? Por quem foi
esta bandeira branca de poeta?
A quem descubro a chaga que me rói
por não ser seu artista e seu profeta?

A quem arranco com beleza a seta
do calcanhar humano que lhe dói?
A quem vejo chegado à sua meta,
novo senhor da terra e novo herói?

A nenhum homem, que a nenhum conheço.
Água de um rio que não tem começo,
nas duas margens sinto o mesmo não.

Mas na direita a vida é gasta e velha...
Só na outra uma chama se avermelha
capaz de me aquecer o coração.


Miguel Torga

Saturday 15 June 2013

QUADRILHA



João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 12 June 2013

O BURGUÊS


A gravata de fibra como corda
amarrada à camisa mal suada
um estômago senil que só engorda
arrotando riqueza acumulada.

Uma espécie de polvo com açorda
de comida cem vezes mastigada
de cadeira de braços baixa e gorda
de cómoda com perna torneada.

Um baú de tolice. Uma chatice
com sorriso passado a purpurina
e olhos de pargo olhando de revés.

Para dizer quem é basta o que disse
é uma besta humana que rumina
é um filho da puta é um burguês.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday 9 June 2013

Liberdade


Quem marca uma fronteira
àquela nuvem
a asa que é a sua sombra
onde mora?


Sob as mordaças
calam-se as palavras
mas ninguém te cala
pensamento.

Quem manda à semente
não germines
ao fruto dela
que o não seja?

Amarram-se os pulsos
com algemas
mas ninguém te amarra
pensamento.

Quem impõe ao dia
que não nasça
ao sol que é a sua fonte
que não brilhe?

Fecham-se as janelas
com tapumes
mas ninguém te cega
pensamento.

Quem diz ao amor
é impossível
à lembrança que é seu laço
que o não seja?

Separam-se os amantes
na distância
ninguém te roubará
meu pensamento.

Joaquim Namorado
In “A Poesia Necessária”



Thursday 6 June 2013

As palavras que eu cantei



Quanto caminho cantado que eu andei
Quanta palavra secreta te inventei
Quando eu parti transportava
Uma angústia que não sei
E não era mais que as palavras que eu cantei

A palavra amor pôs-me os olhos rasos de água
A palavra ausência pôs-me as mãos cheias de mágoa
E quando as cantei eu vivi tudo quanto pressenti
Dentro das palavras que eu cantei mas não escrevi

A palavra dor que era minha foi dos outros
Soltei as palavras como asas, como potros
Arranquei de mim e cantei, cantei até ao fim
A canção de amar, de cantar por ser assim...

Foi por ti que eu lutei
Foi por ti que eu parti
Foi por ti que eu calei
E morri!

Foi por ti que eu voltei
Foi por ti que eu nasci
A canção que eu conquistei
Porque a sofri!

Canção é sol, é água, é fúria, é vento
Canção é mar do sal do sofrimento
E por isso eu sou quando canto
A lança que lancei
Como se vingasse as palavras que eu cantei.

José Carlos Ary dos Santos

Monday 3 June 2013

ENVENENA-ME


Aperta-me forte
ao coração
Abraça-me depressa sobre as asas
*
Debruça-te em mim
e porque não?
Envenena-me de ti porque me salvas
*

Maria Teresa Horta
In "Só de Amor" - 1999

Saturday 1 June 2013

QUEM SE DÁ AO QUE SE DEVE


Quem se dá ao que se deve
nada deve ao que se dá.
Não raro a distância é breve
da decisão boa à má.
A simples espinha sugere
à razão um peixe inteiro.
Para a pobreza entender
há que sofrê-la primeiro.
O mal é que algo se acate
apenas por boa fé.
Se mau for, má morte o mate.
Se for bom, prove que o é.

Armindo Rodrigues