Wednesday 30 March 2022

sem título

sim podes regressar
apesar de não teres partido
esta é a última viagem
dos amantes perdidos
pode durar para sempre
nunca navegará duas vezes a mesma onda. 

Miguel Tiago

Sunday 27 March 2022

pensamento sobre o estado da arte


não me preocupa, do ponto de vista estético, que as combinações de palavras tristes, frases de auto-ajuda e inspiração, componham os livros mais vendidos do mercado como resultado de uma receita repetida ao expoente da loucura.
preocupa-me do ponto de vista social. só uma sociedade carregada de frustrados, tristes, deprimidos e carentes pode ver inspiração em parasitismo. 
sim, quem usa as palavras para explorar a dor alheia, ou a carência alheia, em vez de o fazer para expressar o que sente, para expressar as coisas com aquela verdade que até assusta o próprio autor, está a parasitar as necessidades do outro e não a dar um pedaço ao mundo. está a tirar do mundo para si.
 
Miguel Tiago

 

Thursday 24 March 2022

a luz é um lugar sombrio

 

até passar a ombreira
das portas que ninguém quer abrir
                                                       principalmente eu
nunca pensei que o escuro tivesse um som tão duro
tão rombo
como terra se abatesse sobre o corpo
na ponta de uma pá
segura nas minhas próprias mãos

sempre necrófago devorei corações mortos
agora em recuperação
habituo-me a custo
a corações ressuscitados.

a luz habita a voz da escuridão

e vice-versa. 
 
Miguel Tiago

Monday 21 March 2022


Se não puderes ser um pinheiro, no topo da colina,
Sê um arbusto no vale — mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um arbusto, se não puderes ser uma árvore.

Se não puderes ser um arbusto, sê um pouco de relva,
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser almíscar, sê, então, apenas uma tília —
Mas a tília mais viva do lago!

Não podemos ser todos capitães; temos que ser tripulação.
Há algo para todos nós aqui.
Há grandes e pequenas obras a realizar,
E é a próxima a tarefa que devemos empreender.

Se não puderes ser uma estrada, sê apenas uma senda.
Se não puderes ser Sol, sê uma estrela;
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso —
Mas sê o melhor do que quer que sejas!

Douglas Malloch


Friday 18 March 2022

sem título


a flor efémera
sobre o solo
da memória persistente. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 15 March 2022

cifra


quero que morras depois de mim
sabendo o que se lerá no teu epitáfio
depois de beber-te do crânio nu o sangue vivo. 
 
Miguel Tiago

Saturday 12 March 2022

sem título


abre o guia completo para a solidão
na página sobre multidão
se puderes, sê um pássaro
e voa sobre todos os animais 
mas vê uma floresta.
 
Miguel Tiago

Wednesday 9 March 2022

casa


regresso a casa pela porta dos fundos
para não dar pela chegada
que é como quem acaba por não dar pela saída
nem os cães ladram nem a caravana passa
e as labaredas do sossego descem pelas paredes
como um aconchego
que banalidade essa a da casa
do lar
onde miam todos os gatos que importam no mundo
e encaixam as almas nos corpos
para por fim meditarem as virtudes e os pecados de mãos dadas
caminhando pelo álamo da consciência
e seguirem sem deslizar para as bermas
em que rastejam os animais que vivem de solidão.

Miguel Tiago

Sunday 6 March 2022

sem título


em quantas paredes
de quantas casas
pintaste o teu nome com o sangue de quem lá mora
em quantas muralhas
abriste a fenda da derrota
quantos milhares de gotas de chuva
morreram às tuas mãos
por teres a garganta seca
por ires por essa noite afora
na treva unida e límpida
de archote aceso ao vento
ofegante e ligeiro com os pés descalços
pelo ladrilho molhado
como quem grita ao mundo
que está aqui.

Miguel Tiago

Thursday 3 March 2022

m.a.r.


depois dos faróis apagados
é que as estrelas são úteis
e a navegação tolera a vaga
que já não esconde o horizonte

que importa o horizonte
no mar quando não há terra. 
 
Miguel Tiago

Tuesday 1 March 2022

Por Abril - Éramos cinquenta mil

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a afirmar o que se ouviu:
«agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu»

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
cada um mostrando,
bem à vista,
o cartão de militante comunista.

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a explicar
o sentido e os porquês
de sermos
o Partido Comunista Português.

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a garantir
que a luta continua.  


Fernando Samuel
1.3.2008

sem título


no inverno
as rochas voltam à placenta do musgo

a respiração vê-se ao longe
e nada reveste o coração.

Miguel Tiago