Thursday 27 February 2014

CONFISSÃO


No silêncio pesado do caminho,
ouviu-se um passo, cadenciado
na firmeza das horas decisivas.

A sentinela bradou:
- Quem vem lá?...

O Homem podia ter respondido
qualquer coisa parecida
com: «gente de paz»...

Mas não. Onde a paz,
se no seu peito ardiam agonias
enraivadas,
se no seus olhos boiavam
visões de fogo e de morte,
e as suas mãos,
(ó belas, generosas mãos!)
vinham ainda tintas
do sangue dos camaradas?...

Não trocou portanto as falas.

Respondeu simplesmente, sombriamente:
- EU!

E a sentinela, varou-o com três balas.

Alda Lara

Monday 24 February 2014

HÁ DIAS


Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima: Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.

Eugénio de Andrade

Friday 21 February 2014

JORNADA (VARIAÇÕES)


O dia sai da casca,
toma corpo
e começa a andar
distribuindo ventos, ondas, ternura,
distribuindo canções
e demolindo bastiões
do tempo absurdo
tem que deter-se lentamente,
sua e sorri
e começa a dar a mão aos amigos
e tudo começa a mudar,
e a pessoa que toma um táxi
já não se senta atrás
mas ao lado do chofer
com quem fala amistosamente
com uma amizade mui velha
que acaba de começar,
e que o dia contempla com prazer.

Alguns basiliscos
alguns verdugos
alguns comerciantes
alguns generais
tentam bloquear o caminho ao dia
mas ele desliza entre eles
como a água entre os dedos
que não a podem agarrar;
e só quando ele se realizou
é que se vai, voluntariamente,
deixando um rastro de cores.


Alcides Iznaga

Tuesday 18 February 2014

SENHORA DAS PROFECIAS


Há pegadas de animais
à sua volta
pequenas garras rapaces
*
e cicatrizes rasteiras
causadas pelos espinhos
de pegadas e roseiras
*
Mas é só quando ela chega
pelo trilho do luar
que se cala o sobressalto
*
e se escuta uivar à lua
em horas de descosura
*
Senhora das profecias
sabendo da desmesura
atravessa a vã lisura
e vive do outro lado


Maria Teresa Horta

Saturday 15 February 2014

TODAS AS FERRAMENTAS DO HOMEM


Aqui estão todas as ferramentas deste mundo,
todas as ferramentas que o homem fez
para se firmar bem neste mundo.
Aqui estão as navalhas de gume fino com que
fazemos a barba ao tempo.
E aqui as tesouras para cortar o pano,
para cortar os hipogrifos e as flores
e cortar as máscaras e todas as tramas e, por fim,
para cortar a própria vida do homem, que é um fio.
Aqui estão as serras e serrotes - também facas
sem dúvida, mas imaginadas
de tal modo que os próprios defeitos do borde sirvam
o seu fim.
E aqui está uma colher que alude aos princípios
e aos fins e em resumo
ao inqualificável desvalimento do homem.
Aqui está um fole para atiçar o fogo que serve para
animar o ferro
que serve para fazer o machado
com que se corta a generosa cabeça do homem.
Aqui está um compasso que mede a beleza justa
para que não ultrapasse e quebre e desfaça
o humilde coração do homem.
E aqui está uma trolha de pedreiro com que se unem
os materiais necessários
para que seja feliz e se proteja
de todo o dano.
Aqui está uma balança, chaves, canivetes e binóculos
(se é que o são, que não se sabe)
que na realidade não servem para nada senão para estabelecer
de uma vez para sempre a sólida posição do homem.
Aqui estão uns óculos que se têm de usar para ver
se já se fez o imaginável, o previsível, simples e
impossível
para tratar de garantir todas as ferramentas do homem.

E aqui está, finalmente, o almofariz a que confiamos
a mistura
com que uniremos os pedaços, migalhas, minúcias e despojos
se é que por fim e a tempo, se é que às cegas e por fim
não aprendemos a usar, domar, suavizar e manejar
todas as ferramentas do homem.

Eliseo Diego

Wednesday 12 February 2014

Entre Patrão e Operário


Entre patrão e operário,
entre operário e patrão,
o que é extraordinário
é pretender-se união.


Não vista a pele do lobo
quem do lobo a lei enjeita.
A propriedade é um roubo.
Ladrão é quem a aproveita.

Negar a luta de classes
é negar a evidência
de um mundo de duas faces,
de miséria e de opulência.

Armindo Rodrigues

Sunday 9 February 2014

HAMLET NA ESCADA


Félix Contreras, meu amigo, companheiro,
pareces o jovem mais velho do mundo.
Na tua cara de máquina do tempo
revela-se prematura
uma velha e carnuda sabedoria,
porque a fome que passaste é antológica.

Essa fome impertinente, indecifrável,
que sempre esteve ao nosso lado;
que ninguém sabe donde vem
nem para onde vai;
nem se fica ou se parte,
burilou-te sem consideração,
com rugas cuneiformes,
a pele escura do rosto.

Essa relíquia, essa fome antiga,
todos a passámos mais ou menos.
Essa praga não alterou
o sereno fulgor do teu olhar.
As malvadas bruxarias
furaram-te a pele, que é a tua fronteira;
mas não te assomaram aos olhos,
que contêm o melhor que o homem tem:
o amor, a amizade, o alegre riso.

Entre a fome que te chegava por ráfegas,
como os ciclones tropicais,
e o misterioso desejo de ser poeta,
parecias um Hamlet de província
no meio de uma escada alta
declamando para um público invisível.

Subir ou descer a escada
que leva a reinos diversos.
Subir à glória ou à fome
ou descer ao jornalismo
frutífero das jantaradas.
Era assim no passado colonial.

Submerso em rios de café com leite
e no tédio atroz do quotidiano
deambulavas numa pobre bicicleta,
tão fraca como tu, mensageiro de farmácia,
por ruas soalhais, cheias de pó.
A tua única festa: livros emprestados.
Por alguém, por muito poucos, por qualquer.
Por alguém, por muito poucos, por qualquer,
por aquela velha do fonógrafo.

Agora a escada já não existe.
E o rumo está marcado em nova bússola,
vejo-te de pé, bem no teu tempo,
saboreando o que outros poetas auguraram.
Ninguém o merece mais do que tu.
No teu estilo não há ódio nem vazio
apesar dos chuvascos que passaste,
mas a aura serena do poeta.
Eu agradeço ter-te conhecido
a esta Revolução, maior do que nós,
pois conhecer um poeta é habitar um oásis
num mundo de loucos perigosos.

Oscar Hurtado

Thursday 6 February 2014

A longa espera

AINDA UM POEMA...

Ontem, ao final da tarde, recebi uma boa notícia.
Tão boa que me fez voltar aqui para, antes da anunciada pausa, a assinalar devidamente - e não há coisa melhor para o fazer do que um poema...
Aqui fica, então, para o Serioja, meu grande amigo, este belo poema que pedi emprestado ao Armindo Rodrigues e que nos fala da nossa longa espera... - e da certeza de um futuro em que os meninos de hoje, com vozes de alvorada, proclamarão o novo dia...
Porque «a vitória é difícil, mas é nossa».



A LONGA ESPERA

Até onde chegará a nossa
resistência?
Até onde
suportaremos nós,
homens de carne e osso,
a tortura inumana?
Até onde, pacientes,
metódicos,
secretos,
seremos capazes de levar
as nossas palavras
firmes e consoladoras?
Até onde ecoarão elas,
e em que ouvidos?
Até onde teremos de mascarar-nos,
de mentir,
de fingir?
Revolução
porque tardas?
Já escarva o chão,
pronto a investir,
o gigantesco toiro,
de baba espessa,
de olhos chispantes
e frementes músculos.
Já desabrocham cravos
no silêncio contido.
Já as ocultas labaredas
se preparam para desfraldar-se
resgatadoras,
ao vento solto.
Já as multidões,
com a sua ira,
quebram em estilhaços
o lavado cristal do dia atento.
Revolução,
porque tardas?
Desdobra, cotovia amável,
como um harmónio,
a tua alacridade,
sob o frio dos escombros.
Semeia, sol,
a luz e o calor fertilizadores
pelos campos lavrados.
Dai as mãos e anunciai,
trabalhadores de todo o mundo,
o grande recomeço.
Soldados,
quebrai com ímpeto
as vossas armas arrependidas
e pisai-as.
E tu, menino, proclama,
com a tua voz de alvorada,
para além dos teus desejos,
os teus sonhos realizados.


Armindo Rodrigues

Monday 3 February 2014

18 DE ABRIL


O passado na costa? A fome, o frio,
o crime e a dor? Não, companheiros!
Fora latifundiários e banqueiros!
Fora gusanos do ontem sombrio!

O Povo avança como um imenso rio
e há que aguentá-lo nos seus impulsos feros.
Marcham os camponeses, os operários
e desata-se o furacão do brio!

As milícias são rios de leões
que destroem seus tanques e aviões,
e lhes afundam barcaça após barcaça.

Tudo se ergue contra a ousadia
e até a Primavera os rechaça
como uma mancha no fulgor do dia!


Jesús Orta Ruiz
(Índio Naborí)

Saturday 1 February 2014

COMPANHEIRO VASCO


Da memória do 25 de Abril de 1974 - desse tempo novo de povo nas ruas conquistando as liberdades exercendo-as e dando os primeiros passos no caminho do processo que fez da Revolução de Abril o momento de maior modernidade da nossa história colectiva - emerge, límpida e transparente, a figura ímpar de VASCO GONÇALVES, General de Abril, Soldado do Povo, Companheiro Vasco.

Dignidade e verticalidade, coragem e patriotismo, inteligência e cultura, modéstia e vontade de saber, lucidez e coerência: eis alguns dos atributos pessoais que, aliados a uma total e permanente postura solidária e fraterna, fazem do Companheiro Vasco, pela sua vida, pela sua acção, pelo seu exemplo, o mais puro e fiel intérprete dos ideais libertadores e transformadores de Abril e uma figura maior da História de Portugal.

Os quatro governos provisórios de que foi primeiro-ministro - de 18/7/74 a 11/9/75 - corresponderam ao período mais exaltante, inovador, avançado e criativo do processo revolucionário.
Nesse tempo, pela primeira - e, até agora, única - vez, Portugal teve um primeiro-ministro que se identificava totalmente com os interesses e aspirações da classe operária, dos trabalhadores, do povo e do País.

Por ocasião do lançamento, em 1977, do livro Doze Poemas para Vasco Gonçalves, da autoria de «alguns dos maiores nomes da nossa poesia actual», Óscar Lopes perguntava: «Seria fácil imaginar Ramos Rosa, Silva Carvalho ou Eugénio de Andrade, por exemplo, a dedicar um poema a qualquer dos outros responsáveis políticos e militares que depois do 25 de Abril disputaram o poder a Vasco Gonçalves?».
E respondia, naturalmente, pela negativa.

Aqui fica - em homenagem ao Companheiro Vasco - um desses doze poemas.


O COMUM DA TERRA

Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esses eras tu: inclinação da água. Na margem
ventos areias mastros lábios, tudo ardia.

Eugénio de Andrade