Thursday 30 May 2019

sem título


esse prado, esse chão de labareda, ou deserto, que importa, até mesmo um oceano inteiro levantado em vagas crestadas até à espuma, são a brasa com que marcamos na carne o valor do caminho e os obstáculos que nos fazem crescer as asas que nos erguem por esses céus acima, por sobre a muralha. da china ao outro lado do mundo. como um cavalo resfolegante e aceso. ou uma nave a remos de milhões de escravos, onde cada um deles somos nós carregados de vigor e suor com os braços a puxar e a empurrar a madeira lascada ao batimento do músculo cardíaco obediente ao clamor do bombo que também somos nós que tocamos.
o tom épico das linhas dos poemas é apenas o clímax da montanha, fica após uma escalada trabalhosa e nem sempre entusiasmante e antes de uma queda de fazer a gravidade entrar pelo corpo adentro e o sangue sair pelo corpo afora. essa é a maravilha da dor e do amor, poder encerrar num punho fechado e forçosamente vazio, todo o significado das coisas e um pouco dos fluídos originários do universo.
 
VL

Monday 27 May 2019

sangue


uso sempre a mesma tinta quando escrevo.

VL

Friday 24 May 2019

sem título


a pele é a mais osmótica
das superfícies
em nenhum outro deserto
nasceria de uma flor
um oásis

semente certa
a carne
desse rio
que encontra entre as dunas
um caminho oculto

vem-te no meu coração
e não precisarás de água
nem bússola.

VL

Tuesday 21 May 2019

anda


anda
deixa a manta do alentejo 
cobrir o pássaro cansado
que trazes no peito
e abraçar o teu músculo fremente 
no fresco da água
no calor do campo
a terra pensa as chagas
e sara a vida.
 
VL

Saturday 18 May 2019

sem título


vou-me embora
não pra Pasárgada
mas de volta ao musgo
do silêncio
onde ainda se estendem os meus rizomas
serenos
alheios ao oxigénio
da multidão.

VL

Wednesday 15 May 2019

R.


escreve-me um poema
com voz grave
e língua tímida entre dentes miúdos.
no seu corpo um astro morto
acende-se de asas abertas e plumagem de chamas
palavras âmnio
nascidas na maternidade de estrelas
dos teus pulmões.

VL

Sunday 12 May 2019

sem título


quarenta mil quilómetros pelo meridiano
uma revolução completa
das auroras boreais não podes dizer que não existem
mas resta-te pequena uma memória incerta
como do tempo em que os animais falavam
uma volta intacta com dois equadores pelo meio,
quatro trópicos, 
e nem um achado arqueológico sobre o medo
ou tratado sobre a lama
só a fuligem de enxofre dos vulcões te recorda o que vieste fazer ao mundo.
eis a tarefa dos mortais. cuspir como a terra as entranhas e deixar que o vento espalhe as cinzas.
 
VL

Thursday 9 May 2019

sem título


o meu gato preto
o lua-cheia
à meia-noite acende-se
azul como o dorso de uma alcateia
de corvos no cio.

VL

Monday 6 May 2019

sem título


a tua voz
incandescente libertou em lava
o meu nome
que ao arrefecer
no meu peito em vez de basalto
fez um coração. 

VL

Friday 3 May 2019

sem título


há coisas que nunca mudam
os teus olhos
a tua voz
as tuas mãos em concha
dentro do meu peito
berço que acende o meu coração

vês essa incandescência se apagares as luzes em volta.

VL

Wednesday 1 May 2019

às vezes


é preciso o naufrágio 
para saber o valor da praia.
 
VL