Friday 30 November 2012

- sem título -


são desprovidos de adorno os versos da minha vida,
e muitas vezes de sentido.

mas nuas são tão mais belas as palavras.

Miguel Tiago

Tuesday 27 November 2012

sangue e silêncio (reedição)


anda, entra! dizia a mãe ao miúdo assustado que chorava à porta da escola convertida em abrigo. anda depressa! continuava em desespero e o miúdo, de cara suja, chorava e teimava em ficar de fora. lá para dentro estavam todos amontoados, como objectos que se guardam nos armários quando os já não queremos.

como as velharias que se colocam nos sótãos quando não tencionamos tornar a usá-las.


pela mão puxou-o para dentro, quase à força, quase em pranto. afinal de contas, os soldados tinham sugerido que se refugiassem ali. numa escola, cuidada pelas nações unidas, onde só os civis caberiam. uma antiga escola onde houvera um dia aulas, servia agora de casa de abrigo para os seus antigos e futuros alunos.

os soldados ocupantes, de arma em punho, capacete moderno, haviam-lhe entrado em casa no terceiro dia dos bombardeamentos. sugeriram que apenas procuravam terroristas e militares escondidos. que as bombas serviriam apenas para destruir esses alvos perigosos, diziam. recomendaram-lhe, e a mais umas boas centenas de mães e crianças, que se refugiassem na escola, que aí não cairiam as bombas.

ao quarto dia dos bombardeamentos, a mãe puxou o miúdo para o colo. lembrou que já perdera o filho mais novo e o marido. que queria proteger este puto com tudo o que tinha, com todas as suas forças. carregou numa mochila uns mantimentos ligeiros e no braço levou o rapaz. atravessou uma ex-cidade quase de ponta-a-ponta. ouviu silvos de balas mortais perto dos seus cabelos, saltou por cima de corpos moribundos e cadáveres cobertos de sangue. encostou-se a paredes devastadas, ouviu os gritos das velhas desesperadas, ainda deu água a um rapaz que corria perdido nos escombros.

chegou finalmente à escola, à segurança. os soldados, apesar de ocupantes, queriam apenas suprimir a ameaça que viam nas nossas estruturas militares ou para-militares, pensou. contrariada, refugiou-se, por não poder largar a criança, por não poder pegar o destino e a revolta nos seus braços, por não poder, não ter as forças, para expulsar da sua terra os soldados dos capacetes, metralhadoras, caças e bombardeiros, os tanques da opressão. conformou-se à sua condição de fraca, oprimida, mas mãe forte e fonte de coragem para proteger o que é seu porque lhe nasceu de dentro.

conseguiu finalmente trazer o miúdo para dentro, embora o seu choro fosse agora ainda mais agudo. dentro da escola-abrigo, juntou-se às centenas de mães que traziam ao colo ou pela mão os filhos e as filhas, aos outros pequenos que por ali choravam agarrados às mães. lá dentro uma massa de gente que abandonara tudo, que perdera já muito. gente que não sabia o que lhes reservaria o amanhã.

dois dias depois, depois de ali comer e dormir, ou não dormir, uns segundos de silêncio acompanharam um olhar colectivo, surpreendido, revoltado e choroso, para o bombardeiro que passou nos céus acima da escola. as lágrimas não tiveram tempo de escorrer, as mãos mal tiveram tempo de se cerrar. o silêncio tomou-os todos, mães e crianças. um assobio de morte ao cair da noite converteu a escola em ruínas de sangue e silêncio.

Miguel Tiago

Saturday 24 November 2012

causa efeito


quanto mais pobres somos, por menos vendemos a nossa dignidade.

Miguel Tiago

Wednesday 21 November 2012

noite


a noite é a derradeira poesia dos deuses.

Miguel Tiago

Sunday 18 November 2012

viagem


viajo-me nas ondas ao longe
e respiro o sol na pele,
enquanto o sol me quiser
e o vento me levar às ondas do mar.

vaga, maré, onda,
sopro, vento, fúria
viagem.

Miguel Tiago

Thursday 15 November 2012

"lirismos"


apesar dos espinhos, das dúvidas,
apesar dos tropeços e enganos,
certos de que voltar atrás é apagar a alma colectiva
caminharemos sempre em frente,
rumo à chama acesa da vitória.

Miguel Tiago

Monday 12 November 2012

turbulências


se te sabe a mar o céu da boca,
serão ondas ou lágrimas que te enchem?

se por dentro te faltam as forças,
ou tremem as vigas que te sustentam,
serão sismos ou dúvidas que te esvaziam?

são fantasmas,
são ventos,
são rios caudalosos de águas lamacentas,
turbulentas.


Miguel Tiago

Friday 9 November 2012

não me digam "abre os olhos"


ninguém traz os olhos fechados,
mas é complexa a paisagem,
e ofusca tanto a luz do sol,
como nos tolda a escuridão.

niguém traz fechados os olhos,
mas no breu vislumbrar é capacidade
dos morcegos e lobos.
ofusca tanto a luz do sol, quanto nos tolda a escuridão.


Miguel Tiago

Tuesday 6 November 2012

- sem título -


cerro as mãos e agarro o vazio,
volto-as abertas e olho o rodopio
de nada que as abandona.

escuto-me em vão,
nem o vento.

sopra apenas um ar parado,
no lugar que me esgota o peito.

em vão,
nem o vento.

acordo de um delírio
e percebo que afinal nunca dormi, estive sempre acordado.

em vão,

nem

o

vento.


Miguel Tiago

Saturday 3 November 2012

Thursday 1 November 2012

visão do vazio


o vazio é um fascínio,
uma visão inimaginável
de ausência
de cor de tempo
ou movimento.

o vazio enche quem não tem espaço por dentro.

Miguel Tiago