anda,
entra! dizia a mãe ao miúdo assustado que chorava à porta da escola
convertida em abrigo. anda depressa! continuava em desespero e o miúdo,
de cara suja, chorava e teimava em ficar de fora. lá para dentro estavam
todos amontoados, como objectos que se guardam nos armários quando os
já não queremos.
como as velharias que se colocam nos sótãos quando não tencionamos tornar a usá-las.
pela mão puxou-o para dentro, quase à força, quase em pranto. afinal de
contas, os soldados tinham sugerido que se refugiassem ali. numa escola,
cuidada pelas nações unidas, onde só os civis caberiam. uma antiga
escola onde houvera um dia aulas, servia agora de casa de abrigo para os
seus antigos e futuros alunos.
os soldados ocupantes, de arma em punho, capacete moderno, haviam-lhe
entrado em casa no terceiro dia dos bombardeamentos. sugeriram que
apenas procuravam terroristas e militares escondidos. que as bombas
serviriam apenas para destruir esses alvos perigosos, diziam.
recomendaram-lhe, e a mais umas boas centenas de mães e crianças, que se
refugiassem na escola, que aí não cairiam as bombas.
ao quarto dia dos bombardeamentos, a mãe puxou o miúdo para o colo.
lembrou que já perdera o filho mais novo e o marido. que queria proteger
este puto com tudo o que tinha, com todas as suas forças. carregou numa
mochila uns mantimentos ligeiros e no braço levou o rapaz. atravessou
uma ex-cidade quase de ponta-a-ponta. ouviu silvos de balas mortais
perto dos seus cabelos, saltou por cima de corpos moribundos e cadáveres
cobertos de sangue. encostou-se a paredes devastadas, ouviu os gritos
das velhas desesperadas, ainda deu água a um rapaz que corria perdido
nos escombros.
chegou finalmente à escola, à segurança. os soldados, apesar de
ocupantes, queriam apenas suprimir a ameaça que viam nas nossas
estruturas militares ou para-militares, pensou. contrariada,
refugiou-se, por não poder largar a criança, por não poder pegar o
destino e a revolta nos seus braços, por não poder, não ter as forças,
para expulsar da sua terra os soldados dos capacetes, metralhadoras,
caças e bombardeiros, os tanques da opressão. conformou-se à sua
condição de fraca, oprimida, mas mãe forte e fonte de coragem para
proteger o que é seu porque lhe nasceu de dentro.
conseguiu finalmente trazer o miúdo para dentro, embora o seu choro
fosse agora ainda mais agudo. dentro da escola-abrigo, juntou-se às
centenas de mães que traziam ao colo ou pela mão os filhos e as filhas,
aos outros pequenos que por ali choravam agarrados às mães. lá dentro
uma massa de gente que abandonara tudo, que perdera já muito. gente que
não sabia o que lhes reservaria o amanhã.
dois dias depois, depois de ali comer e dormir, ou não dormir, uns
segundos de silêncio acompanharam um olhar colectivo, surpreendido,
revoltado e choroso, para o bombardeiro que passou nos céus acima da
escola. as lágrimas não tiveram tempo de escorrer, as mãos mal tiveram
tempo de se cerrar. o silêncio tomou-os todos, mães e crianças. um
assobio de morte ao cair da noite converteu a escola em ruínas de sangue
e silêncio.
Miguel Tiago