Saturday 30 January 2021

- sem título -

 o sopro que nos enche de novas moléculas
o sangue,

aquele orvalho que se eleva ao céu
no final das madrugadas,

poema.

e é os dias. todos. e as noites. todas.
assim possam os homens. todos. ter poesia. 

Miguel Tiago

Wednesday 27 January 2021

vida de criminoso

 criminoso és tu,
filho de quem jamais escreverá leis
nas assembleias-matilhas,
criminoso és tu que aos portões da fábrica
não deixas partir o que construíste
e enfrentas o escudo e a arma romba do cão-de-fila,
criminoso és tu que não vendes de borla o teu trabalho
e desafias o deus moderno
das santas bolsas e dos benditos mercados.

Cri  mi  no  so!
gritam envoltas na chinchila morta as senhoras
gritam raivosos de charuto gordo os senhores,
ai que nos levam o que nos deram a ganhar,
ai! que nos levam a mansão feita de seus ossos,
ai que nos levam a herdade feita de sua carne,
ai! que nos levam a carteira feita de sua pele,
e o manjar de sangue dos nossos banquetes!

criminoso és tu que ousas cheirar
o esterco em que te enterram e dizer a toda a gente
que um dia ousarás escrever as leis
do povo, nas ruas e nas fábricas,
e que se cada linha dessas leis valer uma vida,
muitas são as dos criminosos prontos a dá-la. 

Miguel Tiago

Sunday 24 January 2021

uma falua


navega falua
tranquilas águas,
e corta com a proa pequenas ondas
de um estuário sem vento.
navega falua 
rumo à foz.
e leva nas velas a nossa voz.
 
Miguel Tiago

 


Thursday 21 January 2021

capitalismo

eu sou vampiro e ando de dia,
não fujo da cruz e nela me refugio.
cobro juros sobre o sangue que te sorvo,
e assim mantenho a ninhada da aristocracia.
 
Miguel Tiago

 

Monday 18 January 2021

lei da dupla negação

a esperança nasce quando a esperança morre,
como a árvore que se nega para novos rebentos tomarem o seu chão,
longínquos sonhos são os que ficaram para trás,
pois hoje, amanhã é utopia.

Miguel Tiago

Friday 15 January 2021

O CAMINHO DAS ESTRELAS

Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda
sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade

Simples nota musical
indispensável átomo da harmonia
partícula
germe
cor
na combinação múltipla do humano
preciso e inevitável
como o inevitável passado escravo
através das consciências
como o presente
Não abstracto
incolor entre ideias sem cor
sem ritmo entre as arritmias do irreal
inodoro
entre as selvas desaromatizadas
dos troncos sem raiz

Mas concreto
vestido do verde
do cheiro novo das florestas depois da chuva
da seiva do raio do trovão
as mãos amparando a germinação do riso
sobre os campos da esperança
A liberdade nos olhos
o som nos ouvidos
das mãos ávidas sobre a pele do tambor
num acelerado e claro ritmo
de Zaires Calaáris montanhas luz
vermelha de fogueiras infinitas nos capinzais violentados
harmonias spiritual de vozes tamtam
num ritmo claro de África
Assim
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo.

Agostinho Neto

Tuesday 12 January 2021

a rapariga e a raposa (reedição)


Ilustração de M.
 
Miguel Tiago

Saturday 9 January 2021

ordem i


plácidos os rostos dos que sofrem,
com uma nuvem de fragilidade cobrindo os olhos,
são cordeiros mansos, folhas ao vento perdidas,
cabisbaixo ajoelha ao senhor, implora migalhas,
sorri ante a escada que nunca subirá.

estende a mão o porco, sacode a cinza do charuto
e lambe dos lábios o último trago do cognac,
o cheiro do ócio a coberto do negócio, tresanda
a uma decadência balofa, escondida sob contas bancárias
imperscrutáveis.

a terra é uma benesse, oremos ao patrão, sem ele não teríamos pão.
dizem-nos aqui rente ao chão, mas consta que se dirá o mesmo no céu.

esta é a ordem natural das coisas que deus traçou,
para os homens inteligentes tudo, para os tapados, nada.
eis que facilmente se explica a relação dos ricos com a inteligência
e dos pobres com a falta dela.

se ainda trabalhas para comer, incapaz foste e continuas a ser,
sorte a tua quem te acolha em imensa bondade.

de resto, não há mais quem destrua a escada da ilusão,
senão tu, cordeiro manso, leão audaz.

Miguel Tiago

Wednesday 6 January 2021

Os Ceifeiros


Curvados sobre a terra,
não sei se o esplendor
do trigo e das papoilas
vos acende nos olhos alegria bastante
quando o sol não é só luz
mas uma carga brutal que se abate
sobre o vosso dorso.
Com a foice na mão, quando o sol é apenas fogo
e meditais no vosso esforço, na abundância
das espigas, no vosso
pão minguado,
talvez uma praga
vos suba
à flor dos lábios.
Com o eco remoto das histórico, das lendas,
procurareis reavivar as profecias
que se vos enraizaram no sangue.
E à hora do sol-pôr,
a caminho das eiras,
continuais a repetir: bom golpe de foice!


«Bom golpe de foice!»
e não temos a menor ideia
de como as palavras nos vieram despertar.
«Bom golpe de foice!»
como quem dá os bons-dias
«Bom golpe de foice!»
Na oficina, na mina, nos andaimes,
alguém ousou gritar: «bom golpe de foice!»
Bom golpe de foice, se nos regateiam o trigo,
bom golpe de foice!

Félix Cucurull

Sunday 3 January 2021

A Hora das Gaivotas


Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
É noite
É a espada líquida da noite
– Chicharro com pão dormido, camarada…
pão dormido…

As gaivotas ensaiam o voo tresloucado
dos papagaios de papel
Parecem ter medo de poisar,
de dar descanso ao seu coração suspenso:
O medo de calar por dentro
– … e rabanadas com três dias
– Tudo nos serve para medir o tempo
Eles não sonham…

É a mais líquida de todas as noites
Nada se conforma no seu próprio destino:
As casas,
O mar,
As gaivotas,
Os homens…
Tudo parece convergir para o ninho inevitável
onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:
A Liberdade


(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do refeitório)


– É tão louco este mundo, camarada
1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch
O maior grito da humanidade
– O inexplicável grito de todos nós

Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e, protegidas pelos pais,
adivinham por detrás das cortinas
um sinal que dê sentido a tudo
Ninguém sabe o que espera
mas toda a gente espera em silêncio
É como se a terra soubesse
que há dias em que o mundo tem de ser redondo
3 de Janeiro de 1960
Às sete em ponto da tarde

 Adágio–Allegro non troppo


– Nada me passa na garganta, só um grito mudo…
– A estrada ainda está deserta, nem uma luz…
Mas ele há-de vir!
– Somos 10, estamos contados
– Contemo-nos de novo:
Álvaro,
Jaime,
Joaquim,
Carlos,
Francisco,
José,
Guilherme,
Pedro,
Rogério,
Francisco.

E eu, e tu, e quem atrás de nós vier
E todos os que hão-de nascer
Com uma côdea no céu-da-boca
É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada
na praia, aos nossos pés
para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade

 Allegro com grazia


– Pai, olha aquele carro, olha aquele carro
– Apaga a luz, apaga a luz…
– Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho…
– Vem do lado das docas…
– Pai, repara, as gaivotas pousaram todas…
– … e parou em frente ao forte
É a hora das gaivotas
É a hora das gaivotas
– O homem está a sair do carro, pai…
– Sim. Vai fechar a mala, certamente…
– Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente
– São misteriosas as campainhas do destino

 Allegro molto vivace


Em todas as casas há um coração suspenso
pelo medo e pela saudade
e uma boca amarrada às paredes cegas
– Francisco, rasga esses lençóis
que nos fizeram para sudários.

Todas as palavras são medidas
como as sardinhas
e quase nunca é domingo
– Vá, tu sabes dar os nós de pescador
Une as tiras e dá-lhes um nó no meio
para que as mãos encontrem mais firmeza

A terrina ocupa o centro da mesa
as crianças são servidas primeiro
Apenas o tilintar das colheres
abre feridas no silêncio das casas
E as côdeas de pão dormido
quando estalam no céu-da-boca
– Somos 10, estamos contados
A corda tem de servir 10 vezes, camarada

O jantar é em silêncio
Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas
ouve-se a sua pulsação
a estalar o coração das gentes
– Pai, posso ir à janela?
– O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa
– Há, pai! As gaivotas não se calam
E as ondas batem sem conta certa
– Deixa-me apagar a luz…
– Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o
outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas
– Esperam alguém. É gente de bem

 Finale — Adagio lamentoso


– Não olhes para baixo, camarada

E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
– Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte…
Em todas as casas há um coração suspenso
e um lugar vazio à mesa
– Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa
Não olhes para baixo
– Pai, o homem pôs o carro a trabalhar…

Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule
os ruídos dos ossos contra as pedras
É a natureza do lado certo
– Pai, outro homem… e outro… e outro…
É o medo contaminado pela esperança
e a espada líquida da noite virada de feição
– Pai, ajuda-me… não entendo, não entendo…
– É a hora das gaivotas, meu amor!

João Monge


Friday 1 January 2021

LIBERDADE


Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.


Armindo Rodrigues