o sopro que nos enche de novas moléculas
o sangue,
aquele orvalho que se eleva ao céu
no final das madrugadas,
poema.
e é os dias. todos. e as noites. todas.
assim possam os homens. todos. ter poesia.
Miguel Tiago
o sopro que nos enche de novas moléculas
o sangue,
aquele orvalho que se eleva ao céu
no final das madrugadas,
poema.
e é os dias. todos. e as noites. todas.
assim possam os homens. todos. ter poesia.
Miguel Tiago
criminoso és tu,
filho de quem jamais escreverá leis
nas assembleias-matilhas,
criminoso és tu que aos portões da fábrica
não deixas partir o que construíste
e enfrentas o escudo e a arma romba do cão-de-fila,
criminoso és tu que não vendes de borla o teu trabalho
e desafias o deus moderno
das santas bolsas e dos benditos mercados.
Cri mi no so!
gritam envoltas na chinchila morta as senhoras
gritam raivosos de charuto gordo os senhores,
ai que nos levam o que nos deram a ganhar,
ai! que nos levam a mansão feita de seus ossos,
ai que nos levam a herdade feita de sua carne,
ai! que nos levam a carteira feita de sua pele,
e o manjar de sangue dos nossos banquetes!
criminoso és tu que ousas cheirar
o esterco em que te enterram e dizer a toda a gente
que um dia ousarás escrever as leis
do povo, nas ruas e nas fábricas,
e que se cada linha dessas leis valer uma vida,
muitas são as dos criminosos prontos a dá-la.
Miguel Tiago
a esperança nasce quando a esperança morre,
como a árvore que se nega para novos rebentos tomarem o seu chão,
longínquos sonhos são os que ficaram para trás,
pois hoje, amanhã é utopia.
Miguel Tiago
Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda
sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade
plácidos os rostos dos que sofrem,
com uma nuvem de fragilidade cobrindo os olhos,
são cordeiros mansos, folhas ao vento perdidas,
cabisbaixo ajoelha ao senhor, implora migalhas,
sorri ante a escada que nunca subirá.
estende a mão o porco, sacode a cinza do charuto
e lambe dos lábios o último trago do cognac,
o cheiro do ócio a coberto do negócio, tresanda
a uma decadência balofa, escondida sob contas bancárias
imperscrutáveis.
a terra é uma benesse, oremos ao patrão, sem ele não teríamos pão.
dizem-nos aqui rente ao chão, mas consta que se dirá o mesmo no céu.
esta é a ordem natural das coisas que deus traçou,
para os homens inteligentes tudo, para os tapados, nada.
eis que facilmente se explica a relação dos ricos com a inteligência
e dos pobres com a falta dela.
se ainda trabalhas para comer, incapaz foste e continuas a ser,
sorte a tua quem te acolha em imensa bondade.
de resto, não há mais quem destrua a escada da ilusão,
senão tu, cordeiro manso, leão audaz.
Miguel Tiago
Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
É noite
É a espada líquida da noite
– Chicharro com pão dormido, camarada…
pão dormido…
As gaivotas ensaiam o voo tresloucado
dos papagaios de papel
Parecem ter medo de poisar,
de dar descanso ao seu coração suspenso:
O medo de calar por dentro
– … e rabanadas com três dias
– Tudo nos serve para medir o tempo
Eles não sonham…
É a mais líquida de todas as noites
Nada se conforma no seu próprio destino:
As casas,
O mar,
As gaivotas,
Os homens…
Tudo parece convergir para o ninho inevitável
onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:
A Liberdade
(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do refeitório)
– É tão louco este mundo, camarada
1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch
O maior grito da humanidade
– O inexplicável grito de todos nós
Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e, protegidas pelos pais,
adivinham por detrás das cortinas
um sinal que dê sentido a tudo
Ninguém sabe o que espera
mas toda a gente espera em silêncio
É como se a terra soubesse
que há dias em que o mundo tem de ser redondo
3 de Janeiro de 1960
Às sete em ponto da tarde
Adágio–Allegro non troppo
– Nada me passa na garganta, só um grito mudo…
– A estrada ainda está deserta, nem uma luz…
Mas ele há-de vir!
– Somos 10, estamos contados
– Contemo-nos de novo:
Álvaro,
Jaime,
Joaquim,
Carlos,
Francisco,
José,
Guilherme,
Pedro,
Rogério,
Francisco.
E eu, e tu, e quem atrás de nós vier
E todos os que hão-de nascer
Com uma côdea no céu-da-boca
É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada
na praia, aos nossos pés
para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade
Allegro com grazia
– Pai, olha aquele carro, olha aquele carro
– Apaga a luz, apaga a luz…
– Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho…
– Vem do lado das docas…
– Pai, repara, as gaivotas pousaram todas…
– … e parou em frente ao forte
É a hora das gaivotas
É a hora das gaivotas
– O homem está a sair do carro, pai…
– Sim. Vai fechar a mala, certamente…
– Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente
– São misteriosas as campainhas do destino
Allegro molto vivace
Em todas as casas há um coração suspenso
pelo medo e pela saudade
e uma boca amarrada às paredes cegas
– Francisco, rasga esses lençóis
que nos fizeram para sudários.
Todas as palavras são medidas
como as sardinhas
e quase nunca é domingo
– Vá, tu sabes dar os nós de pescador
Une as tiras e dá-lhes um nó no meio
para que as mãos encontrem mais firmeza
A terrina ocupa o centro da mesa
as crianças são servidas primeiro
Apenas o tilintar das colheres
abre feridas no silêncio das casas
E as côdeas de pão dormido
quando estalam no céu-da-boca
– Somos 10, estamos contados
A corda tem de servir 10 vezes, camarada
O jantar é em silêncio
Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas
ouve-se a sua pulsação
a estalar o coração das gentes
– Pai, posso ir à janela?
– O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa
– Há, pai! As gaivotas não se calam
E as ondas batem sem conta certa
– Deixa-me apagar a luz…
– Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o
outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas
– Esperam alguém. É gente de bem
Finale — Adagio lamentoso
– Não olhes para baixo, camarada
E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
– Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte…
Em todas as casas há um coração suspenso
e um lugar vazio à mesa
– Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa
Não olhes para baixo
– Pai, o homem pôs o carro a trabalhar…
Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule
os ruídos dos ossos contra as pedras
É a natureza do lado certo
– Pai, outro homem… e outro… e outro…
É o medo contaminado pela esperança
e a espada líquida da noite virada de feição
– Pai, ajuda-me… não entendo, não entendo…
– É a hora das gaivotas, meu amor!
João Monge