Thursday 30 December 2010

ABRAHAM LINCOLN

Negros de carapinha branca
levantaram braços esguios ao céu
e crianças balbuciaram espirituais;

E um rachador de lenha
suspendeu o machado no ar
e quis viver seus cantos de amargura:

Lincoln os brancos o chamaram;
Abraham os negros disseram!


Francisco José Tenreiro

(«Coração em África»)

Monday 27 December 2010

DE MÃOS DADAS


Era um carreiro,
era um atalho,
era um caminho,
é uma estrada larga por onde
caminhamos de mãos dadas.

Era um fio de água,
era uma fonte,
era um ribeiro,
é um rio imenso de sangue correndo
nas veias dos homens de mãos dadas.

Era um sopro,
era uma aragem,
era um vento,
é um vendaval levando-nos
por sobre o mundo de mãos dadas.

Era uma chama,
era uma faísca subtil,
era uma fogueira,
é um incêndio, é uma aurora cobrindo
os que marcham invencíveis de mãos dadas.


Papiniano Carlos

Friday 24 December 2010

UMA CHAMA NÃO SE PRENDE

rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50
inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950
só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção
e a sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
e o vigor da inteligência Responde por si
e pelos seus como quem acusa
e ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11 anos seguidos, preso,
14 meses incomunicável,
8 anos em isolamento
E não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina

Não cede lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela
Não cede e escreve
A Questão Agrária
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve
Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu enfim
colectivamente
a 3 de Janeiro de 1960
e nunca mais foi apanhado


Manuel Gusmão
(de «Três Curtos Discursos em Homenagem Póstuma a Álvaro Cunhal»)

Tuesday 21 December 2010

LOGINDO O LADRÃO


Os olhos de Logindo
saltam a noite
como dois bichinhos luminosos.

Chiu!
Só o eco do mar!

O corpo de Logindo
segue os olhos
como caçô atrás de homem!

Chiu!
Só o rumor do palmar!

A mão de Logindo
estendeu-se prà frente
os olhos saltando na noite!

Ui!
Um tiro de carabina!

O coração de Logindo
começou batendo
e a navalha cantou de encontro à pele.

Hum!
Um tiro de carabina!

Logindo fechou um olho.
Depois o outro.
O branco o perdeu na escuridão!...

Ah!
Só o ronco-ronco do mar!

Francisco José Tenreiro

Saturday 18 December 2010

Homem

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.


António Gedeão

Wednesday 15 December 2010

VIDRO CÔNCAVO

Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Sabor a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Dói esta corda vibrante.
A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.


António Gedeão

Sunday 12 December 2010

TEMPO DE POESIA

Todo o tempo é de poesia.


Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.


Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.


Todo o tempo é de poesia.

Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.


António Gedeão

Thursday 9 December 2010

PEDRA FILOSOFAL

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.


António Gedeão

Monday 6 December 2010

INTERMEZZO

Hoje não posso ver ninguém:
sofro pela Humanidade.
Não é por ti.
Nem por ti.
Nem por ti.
Nem por ninguém.
É por alguém.
Alguém que não é ninguém
mas que é toda a Humanidade.


António Gedeão

Friday 3 December 2010

Carne viva

Aconchego-me nos andrajos. Procuro
(inútil) não tiritar de frio.
A vida é longa e fria. Um longo e frio muro
a marginar, ao longo, um longo e frio rio.

Aconchego-me nos andrajos. Puxo. Repuxo.
Estendo os olhos, implorativos, à caridade.
Perto, em confortáveis silogismos de luxo,
capitalistas da Verdade.


António Gedeão

Wednesday 1 December 2010

ESCOPRO DE VIDRO

Estou aqui construindo o novo dia
com uma expressão tão branda e descuidada
que dir-se-ia
não estar fazendo nada.
E, contudo, estou aqui construindo o novo dia.

Porque o dia constrói-se; não se espera.
Não é sol que deflagre num improviso de luz.
É um orfeão de vozes surdas, um arfar de troncos nus,
o erguer, a uma só voz, dos remos da galera.

Cantando entre os dentes
um refrão anidro
abro linhas quentes
com um escopro de vidro.
Abro linhas quentes
sem tremer a mão,
com um escopro de vidro
de alta precisão.


António Gedeão

Tuesday 30 November 2010

PORTA DA TRAIÇÃO

Quero encontrar-me com vocês
no desregrado convívio,
na balbúrdia dos cafés.

Nos altos bancos dos bares,
nos transportes colectivos,
nos recintos populares.

Nos corredores dos cinemas,
nos inóspitos lugares
onde se mascam problemas.

Juventude, juventude!
Fogo de santelmo vivo
num mastaréu de virtude.

Braços meus, cálices brancos,
aguardam corolas rubras
no declive dos barrancos.

Vinde, vinde, ó flor mimosa,
ó cavaleiro Galaaz,
que em dentes cerrados traz
a promessa de uma rosa.
Vinde, ó fugaz claridade,
antes que a Vida vos tome
e transforme a vossa fome
em «coisas da mocidade».


António Gedeão

Saturday 27 November 2010

REFLEXÃO TOTAL

Recolhi as tuas lágrimas
na palma da minha mão,
e mal que se evaporaram
todas as aves cantaram
e em bandos esvoaçaram
em torno da minha mão.
Em jogos de luz e cor
tuas lágrimas deixaram
os cristais do teu amor,
faces talhadas em dor
na palma da minha mão.


António Gedeão

Wednesday 24 November 2010

FALA DO HOMEM NASCIDO

(Chega à boca de cena, e diz:)


Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!!
Com rumo à estrela polar.


António Gedeão

Sunday 21 November 2010

ARMA SECRETA

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis da furalina.

Erecta, na torre erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.


António Gedeão

Thursday 18 November 2010

VENTO NO ROSTO

À hora em que as tardes descem,
noite aspergindo nos ares,
as coisas familiares
noutras formas acontecem.

As arestas emudecem.
Abrem-se flores nos olhares.
Em perspectivas lunares
lixo e pedras resplandecem.

Silêncios, perfis de lagos,
escorrem cortinas de afagos,
malhas tecidas de engodos.

Apetece acreditar,
ter esperanças, confiar,
amar a tudo e a todos.


António Gedeão

Monday 15 November 2010

ENQUANTO

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão

Friday 12 November 2010

PASTORAL

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.


António Gedeão

Tuesday 9 November 2010

POEMA DA MORTE NA ESTRADA

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo de fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só monento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.


António Gedeão

Saturday 6 November 2010

POEMA NUMA ESQUINA DE PARIS

Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.
Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HERÓS DE LA RESISTENCE.
VIVE LA FRANCE.


António Gedeão

Wednesday 3 November 2010

ESTÁTUA DA LIBERDADE

Em
Nova Iorque
há uma gigantesca
estátua da Liberdade à vista.


dentro da pedra
o coração de Al Capone
extraordinariamente muito pequenino
vende à grande os Estados Unidos.


José Craveirinha
(In «Cela 1»)

Monday 1 November 2010

A PABLO NERUDA, COM O CHILE NO CORAÇÃO

Não dormireis, ó malditos da espada,
corvos nocturnos de sangrentas unhas,
tristes covardes das sombras tristes,
violadores de mortos.

Não dormireis.

Seu nobre canto, sua paixão sincera,
sua estatura mais alta do que os cumes,
como cântico livre do seu povo
hão-de afogar-vos um dia.

Não dormireis.

Vinde ver a sua casa assassinada,
a miséria fecal do vosso ódio,
seu imenso coração espezinhdo,
sua pura mão ferida.

Não dormireis.

Não dormireis porque ninguém dorme.
Não dormireis porque a sua luz vos cega.
Não dormireis porque a morte é a vossa
única vitória.

Não dormireis jamais porque estais mortos.


Rafael Alberti

Saturday 30 October 2010

CONFIANÇA

O que é bonito neste mundo, e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova...

Miguel Torga

Wednesday 27 October 2010

CANÇÃO DO PEDAÇO DE ESPERANÇA

Sou operário da pena.
Outros o são da enxada,
do martelo.

Que cada um crie
com a sua ferramenta um pedaço
de esperança.

Jesus Lopez Pacheco

Sunday 24 October 2010

FESTA ALEGÓRICA

O bobo do imperador Maximiliano
organizou uma festa alegórica
que o povo e a corte do soberano à frente
saborearam em grandes gargalhadas:
juntou na praça todo o cego pobre,
prendeu a um poste um porco muito gordo,
e anunciou ganhar o dito porco aquele
que à paulada o matasse. Os cegos todos
a varapau se esmocaram uns aos outros,
sem acertar no porco por serem cegos,
mas uns nos outros por humanos serem.
A festa acabou numa sangueira total:
porém havia muito que o imperador
e a corte e o povo não se riam tanto.
O bobo, esse tinha por dever bem pago
o fabricar as piadas para fazer rir.

Jorge de Sena

Thursday 21 October 2010

O RICO GASTA O QUE QUER...

O rico gasta o que quer,
o pobre gasta o que tem.
Como se pode achar bem
um ter e outro não ter?
O mundo foi sempre assim?
É uma explicação alvar.
Porque se há-de conservar
o que se tem por ruim?
Alguma vez houve alguém
sem precisão de comer?
O rico gasta o que quer,
o pobre gasta o que tem.

Armindo Rodrigues

Monday 18 October 2010

VIAGEM ATRAVÉS DE UM COMÍCIO


O sol em chapa ou o aperto da sala.
O camarada que fala
a pesar as palavras numa balança de precisão
multiplicada cem mil vezes a atenção.
O comício é muito importante.
Vezes sem conta dissemos PCP.
Comprámos o emblema, o autocolante.
Gritámos as palavras de ordem correctas
e ainda outras que enfim...
A nossa força torna-se evidente, real.
A nossa consciência sabe melhor porquê.
Cantar o «Avante», mesmo desafinado
mas em coro, levanta-nos o moral.

Os camaradas que ficaram de vigilância
aos Centros de Trabalho, aguardam ansiosos
que venha alguém: «Correu tudo bem?
Estava cheio? Não houve novidade?»

Ouvem tudo, recolhem dos nossos gestos
o eco da alegria. À sua guarda
o Centro de Trabalho é uma enorme colmeia.


Mário Castrim

Friday 15 October 2010

PRESS AMERICANA

Vejam! Ali! Ali surgiu um rato!

Será possível que os seus olhos,
cinicamente luminosos,
transportem duas bombas atómicas?

Temos de vigiar; impedir o desacato.
O inimigo atinge as nossas portas.

São portadores de vírus; são leprosos;
como da química nascidos proliferam
em traiçoeiras retortas;
em cada guerra aumentam, extravasam
da gafaria e adulteram
das nossas ambições os melhores veios.

(O roedor é uma infiltração. Sabemos
que o inimigo não escolhe meios
- ou melhor, sabemos que os escolhe.)

Concedei inspiração e orçamento
aos nossos sábios. Que cada um olhe
somente o bem comum e se dedique
a encontrar a novel fórmula, o eficaz
raticida; de preferência em drageias
de aspecto fino e venda garantida.

Olhem bem! Ali! Atrás daquela moita
não é outro que se acoita?

Egito Gonçalves

Tuesday 12 October 2010

Um homem só no segredo


Um homem só no segredo
sabe um segredo profundo:
nunca está só nem tem medo
quem ama os homens e o mundo.

Carlos Aboim Inglês
(Poema escrito com um prego na parede de um segredo 
das casamatas de Caxias, em Dezembro de 1959) 

Saturday 9 October 2010

NÓS

Nós,
os que temos agora vinte e trinta anos
e nos arrasta a inquietação de um mundo mais justo,
não vivemos nunca a liberdade.

Temo-nos andado a chatear, escondidos
ao fundo deste vexado país, e muita vez
nos espantámos da indiferença dos irmãos,
tornados insensíveis e mudos pelo medo.

Algumas vezes tentámos levantar voo
mas topámos com força contra velhas paredes de ódio.
Conhecemos o fel da tranca, a amargura da impotencia,
e os mais ousados conheceram também a sufocação de dias longos
e cinzentos à sombra de geladas grades.

Proclamaremos, porém, que enquanto um fio de lucidez ponha a fé
acima da nossa vontade, não temeremos o veneno
da serpe, porque nos sabemos possuidores da razão.
Proclamaremos, também, que cada dia seremos mais
os que querem, com exigência, um mundo mais justo,
um mundo mais nosso, onde possamos saber pela primeira vez
o que é, e como se vive, a liberdade.

Àlvar Valls

Wednesday 6 October 2010

CRIAÇÃO

Criar não é sonhar, mas, ao invés,
atento construir o que se sonha.
Fugir alguém ao sonho é que é vergonha,
pois sonhar é fugir à pequenez.


Armindo Rodrigues

Sunday 3 October 2010

EXORTAÇÃO


Não te escondas em vão
por detrás do teu véu,
rosto velado!
A luz suprema, o sol que se levanta
deste lado,
apenas desencanta
o que de si é já desencantado.

Miguel Torga

Friday 1 October 2010

ODE À ESPERANÇA

Crepúsculo marinho,
no centro
da minha vida,
as ondas como uvas,
a solidão do céu,
enches-me
e transbordas,
todo o mar,
todo o céu,
movimento
e espaço,
os brancos batalhões
da espuma,
a terra cor de laranja,
a cintura
incendiada
do sol agonizante,
dádivas
sobre dávidas,
aves
que aos seus sonhos
acorrem,
e o mar, o mar,
aroma
ondulante,
coro de sal sonoro,
enquanto nós,
os homens,
à beira da água
vamos lutando
e esperando,
à beira do mar,
esperando.

«Tudo se realizará»,
dizem as ondas ao duro litoral.

Pablo Neruda

Thursday 30 September 2010

CONQUISTA

Livre não sou, que nem a própria vida
mo consente.
Mas a minha aguerrida
teimosia
é quebrar dia a dia
um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
que se afogou, e flutua
entre nenúfares de serenidade
depois de ter a lua.

Miguel Torga

Monday 27 September 2010

1936

Lembra-o tu e lembra-o aos outros,
quando enojados da baixeza humana,
quando furiosos pela dureza humana:
Este homem único, este acto único, esta fé única.
Lembra-o tu e lembra-o aos outros.

Em 1961, numa cidade estranha,
mais de quarto de século
depois. Vulgar a circunstância,
obrigado tu a uma leitura pública,
por causa dela conversaste com esse homem:
um antigo soldado
na Brigada Lincoln.

Há vinte e cinco anos, este homem,
sem conhecer a tua terra, para ele distante
e estranha, resolveu ir para lá
e nela, se chegasse o momento, decidiu apostar sua vida,
julgando que a causa que lá estava em jogo
então, digna era
de lutar pela fé que enchia a sua vida.

Que essa causa pareça perdida,
nada importa;
Que tantos outros, pretendendo crer nela,
apenas trataram de si mesmos,
importa menos.
O que importa e nos basta é a fé de alguém.

Por isso outra vez hoje a causa te parece
como naqueles dias:
Nobre e tão digna de lutar por ela.
E a sua fé, aquela fé, ele a manteve
através dos anos, da derrota,
quando tudo parece atraiçoá-la.
Mas essa fé, a ti mesmo dizes, é o que somente importa.

Obrigado, Companheiro, obrigado
pelo exemplo. Obrigado por me dizeres
que o homem é nobre.
Nada importa que tão poucos o sejam:
Um homem, um só, basta
como testemunho irrefutável
de toda a nobrez humana.

Luis Cernuda

Friday 24 September 2010

Contratados

Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos

Sobre o dorso
levam pesadas cargas

Vão
olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas

Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam

Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam

Cheios de injustiças
calados no imo das suas almas
e cantam

Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam

Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes

Ah!
eles cantam...

Agostinho Neto
In "Sagrada esperança"

Tuesday 21 September 2010

DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.

Eugénio de Andrade

Saturday 18 September 2010

A ELIONOR

A Elionor tinha
catorze anos e três horas
quando começou a trabalhar.
Estas coisas ficam
registadas para sempre no sangue.
Ainda usava tranças
e dizia: «sim, senhor» e «boas tardes».
As pessoas gostavam dela,
da Elionor, tão meiga,
e ela cantava enquanto fazia correr a vassoura.
Os anos, porém, dentro da fábrica,
diluem-se no opaco
griséu das janelas,
e ao fim de pouco a Elionor não teria
sabido dizer de onde lhe vinha
a vontade chorar,
nem aquele irreprimível
aperto de solidão.
As mulheres diziam que aquilo
era porque estava a crescer e que aqueles males
se curavam com marido e filhos.
A Elionor, de acordo com a mui sábia
predição das mulheres,
cresceu, casou-se e teve três filhos.
O mais velho, que era uma rapariga,
só havia três horas
fizera os catorze anos
quando começou a trabalhar.
Ainda usava tranças
e dizia: «sim, senhor» e «boas tardes».

Miquel Marti I Pol

Wednesday 15 September 2010

MAS QUEM É O PARTIDO?

Mas quem é o Partido?
Está ele numa casa com telefones?
São secretos os seus pensamentos, incógnitas as suas decisões?
Quem é ele?

Nós somos ele.
Tu e eu e vós - nós todos.
Está metade no teu fato, camarada, e pensa dentro da tua cabeça.
Onde eu moro é a sua casa, e onde tu és atacado, aí luta ele.

Mostra-nos tu o caminho que devemos seguir, e nós
segui-lo-emos como tu, mas
não sigas sem nós o caminho exacto.
Sem nós é ele
o mais errado.
Não te afastes de nós!
Nós podemos errar, e tu podes ter razão, portanto
não te afastes de nós!

Que o caminho curto é melhor que o comprido, ninguém o nega.
Mas quando alguém o conhece
e não é capaz de no-lo mostrar, de que nos serve a sua sabedoria?
Sê sábio connosco!
Não te afastes de nós!

Brecht

Sunday 12 September 2010

NÃO ME PEÇAM RAZÕES

Não me peçam razões, que não as tenho,
ou darei quantas queiram: bem sabemos
que razões são palavras, todas nascem
da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
a força de maré que me enche o peito,
este estar mal no mundo e nesta lei:
não fiz a lei e o mundo não o aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
deste modo de amar e destruir:
quando a noite é de mais é que amanhece
a cor de primavera que há-de vir.

José Saramago

Thursday 9 September 2010

DA SEMÂNTICA

Recentemente
na fábrica
melhoraram muito as relações humanas.
Agora, por exemplo,
ao tirar-se o prémio semanal
a uma operária,
por uma mistura de fios,
por exemplo,
ou por qualquer acto menor de indisciplina,
já não se diz impor um castigo;
diz-se:
estimular o sentido
da responsabilidade.

Miquel Martí I Pol

Monday 6 September 2010

HOMEM COM MÁQUINA


Estes homens que estão junto das máquinas
Estes homens que trabalham por causa das máquinas
Estes homens que choram por causa das máquinas
Estes homens que não vivem por causa das máquinas
Estes homens que morrem por causa das máquinas
Estes homens que não sabem a razão das máquinas
Estes homens que só sabem o preço das máquinas

Estes homens, quando chegar a hora, serão máquinas


Joaquim Horta

Friday 3 September 2010

VIAGEM ATRAVÉS DA FESTA

Reivindicamos a alegria.
Reivindicamos as canções de liberdade.
Reivindicamos a música ordenadora do universo.
Reivindicamos as mãos dadas dos amantes.
Reivindicamos o sabor descoberto de todas as coisas.
Reivindicamos as pontes tranquilas.
Reivindicamos a invenção das cidades habitáveis.
Reivindicamos a palavra, o poema, o livro.

Reivindicamos a festa.
Reivindicamos esta arma.

Mário Castrim
(In «Viagens»)

Wednesday 1 September 2010

QUERO FALAR DOS HERÓIS

Quero falar dos heróis
que fazem o edifício, dos homens
quero falar mas não para dizer
que são heróis mas para os citar
e pôr aqui uns com os outros
e comigo e com todos
o que semeia a cana,
o que a corta,
o que a carrega,
e que a leva de um lado para o outro
de camião, de carroça, de vagão,
o que enche a balança,
o que nutre a esteira,
o que alimenta os moínhos,
o que lubrifica as porcas,
o que trata dos fornos,
o que se ocupa do bagaço,
o que prepara a cal,
o cozinheiro,
o que vigia,
o que filtra a massa,
e que a clarifica,
o que controla a espessura com os dedos,
o que os enlouquece girando nas centrífugas,
o que dirige as operações
e todos os que ajudam estes homens
de uma forma ou de outra
- amando-os, citando-os.

David Chericián
(In Poesia Cubana da Revolução)

Monday 30 August 2010

OS PRAZERES DA JUVENTUDE

Ao fim de 24 jogos perdidos,
o time ganhou o desafio.
O público inundou o campo, desceu à cidade,
e durante horas interrompeu o trânsito, bebeu na rua,
quebrou montras, partiu mesmo os faróis de carros
da polícia que, risonha, comungava
naquele entusiasmo regional e jovem
por um triunfo tão longamente ansiado.

Uma centena de pessoas manifesta-se na rua
(contra uma «vitória» que não se vê no Viet-Nam)
e os cacetes desabam, a prisão enche-se,
porque interromperam o trânsito, incitaram à desordem,
e resistiram malignamente à autoridade
que os mandou dispersar.

Jorge de Sena

Friday 27 August 2010

ÁLVARO

 
Hoje apeteceu-me falar do Álvaro. 
Porquê?: sei lá, razões para falarmos dele e sobre ele todos os dias, há muitas...
Tantas quantas as que existem para os seus (e nossos) inimigos dizerem dele e sobre ele o que é hábito dizerem...

Porquê, então, me apeteceu, hoje, falar do Álvaro?
Talvez porque estamos em Maio, mês que todos os anos começa por ser Dia do Trabalhador e este ano, antes de partir, vai encher a Avenida da Liberdade de trabalhadores: milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de trabalhadores, vindos de todo o País, em luta por direitos que o governo do grande capital lhes quer roubar.

Talvez, também, porque nestes dias de Maio de 2010 passam 60 anos sobre aqueles dias de Maio de 1950, em que o Álvaro, frente aos juízes fascistas, passou de acusado a acusador...

Começou assim o julgamento:

«Juiz - Sabe de que é acusado? Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?

AC - Sim. Quero começar por referir neste tribunal que, desde a minha prisão em 25 de Março de 1949, há, portanto, mais de um ano, me encontro ilegalmente submetido a um regime de rigoroso isolamento.

Juiz - Sabe certamente que há peças no processo relativas a isto.

AC - Perfeitamente. Não há qualquer exagero em dizer que esse regime é uma nova forma de tortura. Uns resistem a ela, outros, como esse grande patriota que foi Militão Ribeiro, perdem nela a vida, conforme tomei conhecimento já depois de me encontrar neste tribunal.
Da primeira vez que fui preso, como me negasse a prestar declarações, algemaram-me, meteram-me no meio de uma roda de agentes e espancaram-me a murro, pontapé, cavalo-marinho e com umas grossas tábuas com uns cabos apropriados. Depois de me terem assim espancado longo tempo, deixaram-me cair, imobilizaram-me no solo, descalçaram-me sapatos e meias e deram-me violentas pancadas nas plantas dos pés. Quando cansados, levantaram-me, obrigando-me a marchar sobre os pés feridos e inchados, ao mesmo tempo que voltavam a espancar-me pelo primitivo processo. Isto repetiu-se numerosas vezes, durante largo tempo, até que perdi os sentidos, estando 5 dias sem praticamente dar acordo de mim. Desta vez não fui sujeito aos mesmos processos. Mas estou em condições de comparar, avaliar e aqui dizer que um ano de isolamento não é menos duro que os referidos tratos. Não há, pois, qualquer exagero ao dizer que o referido regime de isolamento é uma nova forma de tortura»...

E terminou assim:

«Vamos ser julgados e certamente condenados. Para nossa alegria basta saber que o nosso povo pensa que se alguém deve ser julgado e condenado por agir contra os interesses do povo e do país, por querer arrastar Portugal a uma guerra criminosa, por utilizar meios incosntitucionais e ilegais, por empregar o terrorismo, esse alguém não somos nós, comunistas. O nosso povo pensa que, se alguém deve ser julgado por tais crimes, então que se sentem os fascistas no banco dos réus, então que se sentem no banco dos réus os actuais governantes da nação e o seu chefe Salazar».


Depois do julgamento de Maio de 1950, o Álvaro voltou para a Penitenciária de Lisboa, onde foi mantido na «nova forma de tortura» que era o «regime de isolamento» até ser transferido para a Cadeia do Forte de Peniche, em 27 de Julho de 1956 - donde viria a evadir-se, integrando a histórica fuga colectiva de 3 de Janeiro de 1960.


Hoje apeteceu-me falar do Álvaro.
Porquê?: sei lá...

Tuesday 24 August 2010

A Terra

É da terra sangrenta. Terra braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
uma vezes petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante.

Porque a terra não é de quem trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia.

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro pude respirar
com as narinas dum cavalo à solta.

Quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria de força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpera dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão-de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução.

José Carlos Ary dos Santos

Saturday 21 August 2010

A GUERRA QUE AÍ VEM

A guerra que aí vem
não é a primeira. Antes dela
houve outras guerras.
Quando a última acabou
houve vencedores e vencidos.
Entre os vencidos o povo baixo
passou fome. Entre os vencedores
passou fome também o povo baixo.

Brecht

Wednesday 18 August 2010

CONFIDÊNCIA

Absorto, chegou-se ao pé de mim
e disse:
«Sabe, não sei se o patrão tem culpa ou não
de ser patrão;
mas a sarna também não tem culpa de ser sarna
- e é uma chatice!»

Francisco Viana

Sunday 15 August 2010

ADEUS


Fiquem em paz, meus amigos,
fiquem em paz
Eu vou partir
convosco no coração
e a minha luta na cabeça.
Fiquem em paz,
amigos meus,
fiquem em paz.
Não quero ver-vos na praia
alinhados como aves num postal.
Não quero os vossos lenços a acenar, não, isso não.
Vejo-me inteiro nos olhos dos meus amigos.
Ó meus amigos
meus irmãos de luta
meus companheiros de trabalho
adeus sem uma palavra.

As noites vão fechar o ferrolho da porta
Os anos vão criar teias de aranha nas janelas
e eu cantarei na prisão a minha canção de combate.
Tornaremos a ver-nos, amigos, tornaremos a ver-nos.

Juntos, sorrindo, olharemos o sol
bater-nos-emos lado a lado.
Ó meus amigos
meus irmãos de luta
meus companheiros de trabalho
Adeus.


Nazim Hikmet

Thursday 12 August 2010

Meus irmãos


É preciso atrelar os nossos poemas
à charrua do boi magro
É preciso que este se enterre até aos joelhos
na vaza dos arrozais
É preciso que eles façam todas as perguntas
É preciso que recolham toda a luz
É preciso que os nossos poemas como marcos quilométricos
balizem as estradas
É preciso que sejam o sinal a anunciar a aproximação do adversário
É preciso que batam tambor na selva

E enquanto na terra houver um único país ou um único homem escravo
E enquanto no céu restar nem que seja uma única nuvem atómica
É preciso que os nossos poemas dêem tudo por tudo, corpo e alma para a grande liberdade.

Nazim Hikmet

Monday 9 August 2010

COMPANHEIRO VASCO

Além de tudo o mais
reiventaste a pureza das palavras
e fizeste com elas pedras e tijolos
de onde nasceriam pouco a pouco as casas.
Além de tudo o mais
tu foste o poeta da verdade
o homem que se bate corpo a corpo
sem medo, sem ódio, com ternura
com a força que o vento dá ao trigo
a força de quem pode estar de frente
e olhar de olhos nos olhos toda a gente.
Além de tudo o mais
tu és o companheiro
o camarada, o homem verdadeiro
o herói anónimo que nunca terá estátua.
Depois de tu falares
e mostrares que fazes o que falas
nenhum de nós se pode desculpar
ninguém pode dizer que não sabia
fomos todos carrascos da pátria
que tu querias libertada!
E ou enchemos as ruas
com o teu nome na ponta da espingarda
ou morremos aos poucos de saudade
desse cravo vermelho que arrancámos
raíz, tronco, semente, Liberdade!

José Barreiros

Friday 6 August 2010

(Fragmento do Poema «O Dia Mundial da Paz em Custóias e Caxias")

(...) Grande foi Vasco
e também o ódio, e também a mácula, e também a morte
(intelectual, seminal) de várias e desvairadas gentes
o destruíu. Ou
talvez não. A glória, a corrupção
em centros ciáticos sedimentada
outros corrompeu. Astutos pescadores de pégasos
em águas turvas. O vento passa. O povo porém
finca os pés na terra. Canto
para ti: Vasco igual a povo. Para que não se esqueça
a sábia floração
de um mar (mármore) jamais em repouso - a força, a determinação
do homem novo. Pobre. Dissolvido
em palavras de névoa. Pobre. Camuflado
em buracos de sótãos e caves; em bairros de lata; em arcos de ponte
e choupanas de palha; esterco; barcaças apodrecidas... Esse,
o proleta, o campesino
eleva-se na sombra, ouve, entende
a tua voz, a palavra Revolução; e transmite o fogo, a fábula
a seus camaradas mais descuidosos: ambulantes, desocupados...

Os próprios burgueses, os mais pequeninos, os que se vendem
por um prato de lentilhas
um dia compreenderão o fenómeno
da Independência Nacional; (tal qual és - Brecht,
sem ironia - não poderás continuar a ser) - um dia, dizia,
haveis de compreender que também os vossos filhos
serão a seu tempo devastados
pela Besta Imunda. Transparente
foi Vasco
em sua luta sem cálculo nem quartel
contra a garra imperial. A usura. A erosão. A
decadência pusilânime. Apenas o povo,
apenas o exército vulnerável
dos explorados
aceitou a claridade, entendeu a palavra límpida
do futuro. O búzio
da Revolução.

Casimiro de Brito

Tuesday 3 August 2010

PROVAVELMENTE

Provavelmente
não terei a força, o verbo, o tamanho para falar duma revolução
que rebentou no coração daqueles que, desde o primeiro vagido, a desejaram.

Provavelmente
esquecerei nomes, trocarei datas, falarei dos heróis que o não foram
e dos cobardes que tiveram a coragem de não puxar gatilhos,
de permanecerem poetas e não matarem
ainda que com essa negação da morte ficassem
com os corpos presos, que a alma não.

Provavelmente
louvarei demasiado os que me são queridos, cantarei as paisagens
onde nasci e chegarei mesmo ao despudor de gritar
que o Alentejo é o mais lindo país do mundo,
que uma papoila vermelha floresce diariamente
nos dedos dos que trabalham a terra.

Provavelmente
deixarei nas margens deste recado essoutros que em Marços
e Setembros saíram para a rua agarrados à estrela da manhã
para com ela (somente com ela) defenderem a liberdade.

Provavelmente
não saberei pronunciar os nomes das crianças
que num mês de Abril inventaram novos símbolos,
debruaram de cravos as redacções escolares, as paredes dos jardins,
os troncos dos abetos, e inundaram com as aguarelas da ternura
os olhos dos homens cansados.

Provavelmente
e porque não? direi que vi soldados vestindo a farda que o povo usa,
essa camisa lavada e branca dos nossos irmãos operários,
camponeses, trabalhadores de todos os misteres.

Provavelmente
trocarei as notas à melodia que semeou o luar, desvirtuarei
a cor da baioneta que defendeu o sol, não saberei agarrar
o espanto das mãos que seguravam o vento como quem
agarra essas bandeiras de carne a que chamamos filhos.

Provavelmente
não citarei nomes de capitães, dragonas de almirantes,
siglas dos partidos, as multidões dos comícios, as cores
dos panfletos, o eco dos gritos que rebentaram a veia tensa
deste quase meio século que sufocou o pulmão
da nossa Pátria sempre adiada.

Provavelmente
só vos falarei dum Homem com rosto de homem, palavra
de homem, o gesto simples do Homem simples e sincero
que todos esperámos na lonjura da esperança,
como o Criador esperou o nascimento do mundo.

Provavelmente
escreverei: Vasco Gonçalves.

Provavelmente
acrescentarei: - Por aqui passou um Homem!

Eduardo Olímpio
(Fevereiro de 1976)

Sunday 1 August 2010

AO REVOLUCIONÁRIO VASCO GONÇALVES

Queria usar a língua em que escrevi
os versos mudos da poesia lírica
para o discurso prático
da revolução escrita.

Ninguém já entendia o vapor grave
e gasto da linguagem.
Durante a desejámos, canto enquanto
desejo, com o gasto
movimento dos versos. Quem entende
a voz da sua boca equivocada?

Desconheço o silêncio. Conheci-o
com o entendimento de quem vive.

Por isso este poema não é épico,
é um simples
poema em quadras íntimas:
um revolucionário
não cabe na política
mas cabe
nos metros úteis da poesia escrita.

Gastão Cruz

Friday 30 July 2010

NOME DE VASCO

A tua voz excessiva tornava-os mais pequenos.
Eles exigiam-te palavras untuosas,
as secas flores da jactância,
seu sono e alimento.
A verdade saía da tua boca iluminada
e eles tinham os ouvidos postos na mentira
no bocejo intrigante, na fala camuflada.
A tua voz recuada na origem não se perdia
nos afazeres verbais da litigância
não sabia a ganância.
Era o vento dos pobres sobre os metais do luxo.
Não te punhas a embalar o povo
como à criança que tarda a adormecer.
Atiravas-lhe à cara as palavras abruptas
um rosto incorruptível por marés de ferrugem
e gestos de morrer.

A tua fronte vasta tornava-os mais pequenos.
Nela despertava o susto das mães familiares,
o trigo parco dos homens nas tabernas
que te olhavam ingénuos vendo a seara crescer.
Ao colo dos pais os meninos sorriam
e os velhos viam coisas saltar dos teus cabelos.
Mas eras tu que soltavas a vida
amarrada a um poste como um burro de carga
a vida desavinda que os enraivecia
e que lhes dava um coice na pança saciada.

Aqui perde-se o tempo a trabalhar as lendas.
Mas o teu rosto não pode adormecer
sobre a toalha tépida que tece a tua ausência
onde derramo o choro e os outros vão beber.
Porque o teu pulso não suportava a febre
e erguia-se no ar como um pássaro agudo
que respirasse os ventos antes de partir.

Sobre o ladrar dos cães a tua voz alteia
como a papoula que o tempo não desfolha
a coluna de fogo que cai sobre a alcateia.
És o lagar imenso onde as uvas fermentam
sob os pés descalços e vivos da memória.
És a boca que a História utilizou por boca
o corredor onde o orvalho cresce entre a juventude
e os homens se passeiam com trigo na cintura.
Neste lugar de inverno lembramo-nos de ti
como quem desperta.
Ninguém aqui precisa de recuar no tempo
nem das sereias que engolem o nevoeiro.
Ninguém aqui suporta que tu voltes
como um Desejado
com o seu cortejo de rotas feiticeiras
que gritem pelo teu nome junto aos becos do mar
com as suas luas gordas de saudade e preguiça.
Teu nome está de pé como um mastro
de cal rubra.
Estás aqui, entre nós, no meio do teu País.
Connosco vais contigo porque o povo assim o quis.

Armando Silva Carvalho

Tuesday 27 July 2010

DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO

Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.

Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada

António Ramos Rosa

Saturday 24 July 2010

SER FIEL A UMA IDEIA


Ser fiel a uma ideia
custa mais do que parece.
Quem o é logo se enleia
nas próprias teias que tece.
Por isso há quem a afirmar
no que esconde não repara,
e quem só com perguntar
já a resposta põe clara.
Só quem não pensa não erra.
Erro não é falsidade.
Quanto mais perto da terra,
mais uma ideia é verdade.

Armindo Rodrigues

Wednesday 21 July 2010

Remate

O que é obscuro
tentemos
elucidá-lo.

O que é complexo
tentemos
simplificá-lo.

O que é impuro
tentemos
purificá-lo.

Armindo Rodrigues

Sunday 18 July 2010

TENTAÇÃO VENCIDA

Venham deuses e polícias,
diabos, magos, banqueiros,
ofertar-me, alvissareiros,
o mando e as sua delícias.
Tratem-me com vis blandícias
ou com modos sobranceiros,
ou cheguem aos derradeiros
tratos das piores sevícias.
Venham anjos em milícias,
da ilusão mensageiros.
Não me venceis, embusteiros,
com cruzes nem com malícias.

Armindo Rodrigues

Thursday 15 July 2010

ENTRA-ME EM CASA...

Entra-me em casa o dia.
Entra-me em casa a noite.
Entra-me em casa o vento.
Entra-me em casa só
quem eu gosto que entre.

Armindo Rodrigues

Monday 12 July 2010

Guerra

Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama...
Os olhos que já não pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...

Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas... — e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
— tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

Cecília Meireles

Friday 9 July 2010

O amor antigo

O amor antigo vive de si mesmo
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza
Por aquelas mergulhas no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor...

Carlos Drummond de Andrade

Tuesday 6 July 2010

Fica proibido

Fica proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer,
Ter medo das tuas recordações

Fica proibido não sorrir ante os problemas,
Não lutar pelo que queres,
Abandonar tudo por medo,
Não transformar em realidade teus sonhos

Fica proibido não demonstrar o teu amor,
Fazer com que alguém pague pelas tuas dúvidas e pelo teu mau humor

Fica proibido deixar os teus amigos,
Não tentar compreender aquilo que viveram juntos,
Chamá-los somente quando precisa deles

Fica proibido não seres tu perante todos,
Fingir para as pessoas que não te importas,
Esquecer todos os que te querem

Fica proibido não fazeres as coisas para ti mesmo,
Não fazeres o teu destino,
Ter medo da vida e dos teus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse o último.


Pablo Neruda

Saturday 3 July 2010

**

"Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz..."

Miguel Torga

Thursday 1 July 2010

Soneto - XLVIX

É hoje: todo o ontem foi caindo
entre dedos de luz e olhos de sonho,
amanhã
chegará com passos verdes:
ninguém detém o rio da aurora.

Ninguém detém o rio de tuas mãos
os olhos de teu sonho, bem-amada,
és tremor do tempo que transcorre
entre luz vertical e sol sombrio,
e o céu fecha sobre ti suas asas
levando-te e trazendo-te a meus braços
com pontual, misteriosa cortesia:

por isso canto ao dia e à lua,
ao mar, ao tempo, a todos os planetas,
a tua voz diurna e a tua pele noturna.


PABLO NERUDA

Wednesday 30 June 2010

POEMA DE NATAL

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos

-Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos

-Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai

-Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte

De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

VINICIUS DE MORAES

Sunday 27 June 2010

NOCTURNO

Devagar, devagar... A noite dorme
e é preciso acordar sem sobressalto.
Sob um manto de sombra, denso, informe,
o mar adormeceu a sonhar alto.

Devagar, devagar... O rio dorme
sobre um leito de areias e basalto...
Malhada pela neve a serra enorme
parece um tigre a preparar o salto.

E dorme o vale em flor.
Dormem as casas.Nenhum rumor.
Nenhum frémito de asas.

Nada perturba a noite bela e calma.
E dormem os rosais, dormem os cravos...
Dormem abelhas sobre o mel dos favos
e dorme, na minha alma, a tua alma.


Fernanda de Castro

Thursday 24 June 2010

A PALAVRA MÁGICA

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

Monday 21 June 2010

ESTA NOITE O VENTO CEIFA OS BOSQUES


Esta noite o vento ceifa os bosques e
uma raiva sacode a terra. se a voz
do mar chamasse pelas velas, os estreitos
aguardariam um naufrágio. E se dissesses
o meu nome eu morreria de amor.

Devo, por isso, afastar-me de ti ― não
por ter medo de morrer (que é de já não
o ter que tenho medo), mas porque a chuva
que devora as esquinas é a única canção
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.

Maria do Rosário Pedreira

Friday 18 June 2010

***

Fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?
olhas-me e só tu sabes:ferros em brasa,
fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:amor
e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto in "A criança em ruínas"

Tuesday 15 June 2010

Monólogo de Orfeu

Mulher mais adorada!
Agora que não estás,deixa que rompa o meu peito em soluços
Te enrustiste em minha vida,e cada hora que passa
É mais por que te amar a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada.
E sabes de uma coisa?
Cada vez que o sofrimento vem,essa vontade de estar perto, se longe
ou estar mais perto se perto
Que é que eu sei?
Este sentir-se fraco,o peito extravasado
o mel correndo,essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu;
Tudo isso que é bem capaz
de confundir o espírito de um homem.
Nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga,
esse contentamento,
esse corpo
E me dizes essas coisas
que me dão essa força, esse orgulho de rei.
Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música.
Nunca fujas de mim.Sem ti, sou nada.
Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada.
Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! Criatura!
Quem poderia pensar que Orfeu,
Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres -que ele, Orfeu,
Ficasse assim rendido aos teus encantos?
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho
que eu vou te seguindo no pensamento
e aqui me deixo rente quando voltares,pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo.

Vinicius de Moraes

Saturday 12 June 2010

A DANÇA

Não te amo como se fosses uma rosa ou um topázio
Ou a flecha de cravos, que o fogo lança.
Amo-te como certas coisas escuras devem ser amadas,
Em segredo, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floresce e carrega,
Escondida dentro de si, a luz de todas as flores.
E, graças ao teu amor, escura no meu corpo
Vive a densa fragrância que cresce da terra.

Amo-te sem saber como ou quando ou de onde.
Amo-te tal como és, sem complexos nem orgulhos.
Amo-te assim porque não sei outro caminho além deste
Onde não existo eu nem tu.

Tão perto que a tua mão no meu peito é a minha mão.
Tão perto que, quando fechas os olhos, adormeço.


PABLO NERUDA

Wednesday 9 June 2010

Gosto quando te calas

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longínquo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

Pablo Neruda

Sunday 6 June 2010

OS OLHOS DAS CRIANÇAS

Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem atrás das grades de silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Sidonio Muralha

Thursday 3 June 2010

Ariane

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

Miguel Torga

Tuesday 1 June 2010

Creio em amores lunares com piano ao fundo

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta m...ais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia

Sunday 30 May 2010

Mãos feridas na porta

Vida que às costas me levas
porque não dás um corpo às tuas trevas?

Porque não dás um som àquela voz
que quer rasgar o teu silêncio em nós?

Porque não dás à pálpebra que pede
aquele olhar que em ti se perde?

Porque não dás vestidos à nudez
que só tu vês?


Natália Correia

Thursday 27 May 2010

Segredo

Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

David Mourão Ferreira

Monday 24 May 2010

Os teus olhos

O Céu azul, não era
Dessa cor, antigamente;
Era branco como um lírio,
Ou como estrela cadente.

Um dia, fez Deus uns olhos
Tão azuis como esses teus,
Que olharam admirados
A taça branca dos céus.

Quando sentiu esse olhar:
“Que doçura, que primor!”
Disse o céu, e ciumento,
Tornou-se da mesma cor!

Florbela Espanca

Friday 21 May 2010

Não digas nada!

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa

Tuesday 18 May 2010

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

Saturday 15 May 2010

Bem, hoje que estou só e posso ver

Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,

Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.

Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.


Fernando Pessoa

Wednesday 12 May 2010

Segue teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver
só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe
a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Nuno Júdice

Sunday 9 May 2010

HÁ RATOEIRAS!

Quando vierem, como feiticeiros,
tirar-te o espírito do corpo,
obstina-te, irmão!
Não,
não
e não!,
seja qual for a habilidade
e a humanidade
da encantação.

Lembra-te dum cortiço!
O que ferve lá dentro e dá favos de mel,
é que presta.

Mas se querem a festa
da tua morte,
então,
que levem tudo no caixão:
a alma e o suporte!

Miguel Torga

Thursday 6 May 2010

O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em Fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.


Maria do Rosário Pedreira
de A Casa e o Cheiro dos Livros

Monday 3 May 2010

O horizonte das palavras

Sem direcção, sem caminho
escrevo esta página que não tem alma dentro.
Se conseguir chegar à substância de um muro
acenderei a lâmpada de pedra na montanha.
E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou enuncio as simples reiterações da terra,
as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.
Tentarei construir a consistência num adágio
de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
E na substância entra a mão, o balbucio branco
de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um organismo verde aberto sobre o mar,
as teclas do verão, as indústrias da água.
Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com arcos, colinas e com árvores.
Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O impronunciável é o horizonte do que é dito.

António Ramos Rosa

Saturday 1 May 2010

Hora

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Friday 30 April 2010

Venturosa de sonhar-te

Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

-Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.

-Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso

Cecília Meireles

Tuesday 27 April 2010

Uma Voz na Pedra

Não sei
se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Saturday 24 April 2010

Quase um poema de amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor

Miguel Torga

Wednesday 21 April 2010

Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.


Sophia de Mello Breyner

Sunday 18 April 2010

CREPÚSCULO DE OUTONO

O crepúsculo cai, manso como uma benção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo...
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Manuel Bandeira

Thursday 15 April 2010

Nunca mais

Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Monday 12 April 2010

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill

Friday 9 April 2010

As nossas madrugadas

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciume
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de foça
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lenços que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuires de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

Tuesday 6 April 2010

Quem Sabe um Dia

Quem
sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida!

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois

Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois

Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois

Mário Quintana

Saturday 3 April 2010

Poema destinado a haver Domingo

Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor dum navio em movimento
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio de cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama de um Domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.

Natália Correia

Thursday 1 April 2010

Mas que sei eu

Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha

Ruy Belo

Tuesday 30 March 2010

Tudo na mesma parede

Portinari não morreu.
A morte é o mármore, o silêncio, o frio
e sobretudo o esquecimento.
Porque estamos vivos, tu e eu,
Portinari não morreu
e é ele que sopra o vento
e que faz correr um rio
no nosso pensamento.

Será teu companheiro se tu partires
o Portinari da eternidade
que pinta no balouço do arco-íris
as sete cores da amizade.

Foi ele que deu à parede
toda a força de um gesto
e que fechou numa rede
tudo isto e tudo o resto
- barco, ondas e conchas do mar,
água para matar a sede
e um homem a gritar
(tudo na mesma parede
e coberto de luar).

De luar ou do cristal das alvoradas,
lá no alto abrem-se vidraças
e crianças de todas as raças
avançam no asfalto, de mãos dadas.

Meninos dançam, e as cores
de Portinari são as mesmas do Brasil
- venham, senhoras e senhores,
ver dançar à volta das flores
os homens do ano dois mil.


Sidónio Muralha
(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

Saturday 27 March 2010

Telegrama ao Poeta

Poeta, mantém o estado de vigília,
está atento, não adormeças.
Quando os pássaros dormem
as plumas são fofas
mas o canto é ausente
as asas inúteis

e as cabeças decapitadas.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Wednesday 24 March 2010

As crianças e os monstros

A criança entrou numa casa de brinquedos e perguntou:
- Tem carícias para vender?
E o homem respondeu: - essas coisas não temos,
mas vendemos revólveres, metralhadoras
e canhões para crianças subdesenvolvidas,
e bombas atómicas em miniatura
para meninos de fino trato,
pagáveis em dez prestações
e com entrega mensal
de um monstro mais ou menos domesticado
ao cliente
que tiver praticado o crime atómico
em miniatura
mais horrível do mundo.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Sunday 21 March 2010

SONETO DO DIFÍCIL RETORNO (2)

Não. Este mar não é o que me dava
búzios que ressoavam ventanias
nas manhãs de coral e rola brava
- as horas que me dava eram macias

e macias as conchas que entregava
nas mãos que esvoaçavam alegrias,
enquanto a rola brava esvoaçava
nas manhãs de coral desses meus dias.

Não. Este mar é outro, mas às vezes
arrasta a nostalgia e os reveses
e lembra a minha praia de criança.

Suave praia, tu não estás perdida
pois nada está perdido enquanto há vida

- enxuga os olhos, pátria, tem confiança.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Thursday 18 March 2010

SONETO DO DIFÍCIL RETORNO (1)

Se fores a Portugal, um dia, se
pisares aquele chão, diz-lhe que aguarde
o difícil retorno deste que
nunca pensou voltar assim tão tarde.

Mas houve temporais e lutas e
se a batalha foi ganha sem alarde,
nunca foi sem alarde a raiva de
um inimigo oculto, hostil, cobarde.

Atravessei os mares e os continentes,
conheci outras línguas, outras gentes,
mas a minha poesia é lá que vive.

É lá que sou poeta e na verdade
a minha volta é só formalidade.

- Voltar não voltarei. Sempre lá estive.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» 1971)

Monday 15 March 2010

As férias

Deixei o anzol em casa
e a isca, nem tive tempo de pensar,
mas o dia tem uma brandura de asa
- vou pescar.

Pesca sem anzol nem isca.
Ter férias, tem, quem sente
a vida que mordisca
a linha negligente.

Ao pescador que se deixe
a tarefa de pescar.
Ter férias é deixar o peixe
ter suas férias no mar.

Hoje a suavidade
da areia e do sol.
Amanhã, a cidade
e o anzol.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Friday 12 March 2010

Os apaziguadores

A tribo é indócil.
Os apaziguadores são boas pessoas.
Eles cantam a paz
na boca das armas.
Eles desarmam as bocas
quando cantam a paz.
Só não desarmam as armas
porque a paz desarmada
passaria a ser paz
e eles ficariam desempregados
porque não há apaziguadores
em tempo de paz.

O medo tocou os apaziguadores.
O medo tocou o gatilho das armas,
e os indóceis ficaram apaziguados,
definitivamente apaziguados,
horizontalmente apaziguados.

E os apaziguadores voltaram aos lares
e com gestos medidos e apaziguados
guardaram as armas, lavaram as mãos,
e distribuíram beijos pacificamente
a toda a família.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Tuesday 9 March 2010

Manual do perfeito mendigo

Gesto pedindo clemência
cansa.
Modernizem a desgraça.
Ser pedinte com eficiência
é alugar uma criança
e arremessá-la aos olhos de quem passa.

Quem fala de caridade
usa a velha ferramenta
e compromete o seu papel.
Para comover a cidade
preguiçosa e sonolenta
só a criança de aluguel.

Só a criança. De baixo custo.
É pitoresca ou inefável,
sabe chorar, sabe sorrir,
exprime o pavor, o medo, o susto,
é facilmente transportável
e faz o drama explodir.

Pagam os homens comprometidos
para não verem na sua frente
os meninos alugados,
que falsas mães, de olhos doridos,
silenciosas, mostram à gente,
como brinquedos mutilados.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Saturday 6 March 2010

Mágica

O poeta é um prestidigitador.
Tira coelhos da cartola,
sim senhor.
Num gesto, cria pássaros vermelhos.
dizem que não faz parte de uma escola
quando em vez de tirar coelhos da cartola
passa a tirar cartolas dos coelhos.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Wednesday 3 March 2010

Ângulos diferentes

A diferença
entre cavalgar
e ser cavalgado
é pesada
contundente
crucial.

Cavalgando, o cavaleiro exclama:
- é épico.
Cavalgado, o cavalo constata:
- é hípico.

Frases de pouca monta
totalmente desmontadas
quando é o cavalo que monta
o cavaleiro.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Monday 1 March 2010

Profecia

Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto - indigesto

- voltará implacável como um «boomerang»
e ninguém escapará a essa lei.


Sidónio Muralha
(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Saturday 27 February 2010

Prelúdio

Reteso as cordas desta velha lira,
tonta viola que de mão em mão
se afina e desafina, e donde ninguém tira
senão acordes de inquietação.

Chegou a minha vez, e não hesito:
quero ao menos falhar em tom agudo.
Cada som como um grito
que no seu desespero diga tudo.

E arrepelo a cítara divina.
Agora ou nunca - meu refrão antigo.
O destino destina,
mas o resto é comigo.


Miguel Torga

Wednesday 24 February 2010

Não passarão

Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
entre o sangue vertido
e o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
de traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
as forças que te querem jugular
não poderão passar
sobre a dor infinita desse não
que a terra inteira ouviu
e repetiu:
Não passarão!


Miguel Torga

Sunday 21 February 2010

Depoiamento

Deponho no processo do meu crime.
(Sou testemunha
e réu
e vítima
e juiz).
Juro
que havia um muro,
e na face do muro uma palavra a giz.
Merda! - lembro-me bem...
- Crianças... - disse alguém
que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletrar
o vocábulo indecente,
e de repente,
como quem adivinha,
numa tristeza já de penitente,
vi que a letra era minha...

Miguel Torga

Thursday 18 February 2010

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
e reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
o mar...
(Só nos é concedida
esta vida
que temos;
e é nela que é preciso
procurar
o velho paraíso
que perdemos).

Prestes, larguei a vela
e disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
a revolta imensidão
transforma dia a dia a embarcação
numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
o que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga

Monday 15 February 2010

Algumas perguntas a um "Homem bom"

Bom, mas para quê?
Sim, não és venal, mas o raio
que sobre a casa cai também
não é venal.
Nunca renegas o que disseste.
Mas que disseste?
És de boa fé, dás a tua opinião.
Que opinião?

Tens coragem.
Contra quem?
És cheio de sabedoria.
Para quem?
Não olhas aos teus interesses.
Aos de quem olhas?
És um bom amigo.
Sê-lo-ás do bom povo?

Escuta pois: nós sabemos
que és nosso inimigo.
Por isso vamos
encostar-te ao paredão.
Mas em consideração
dos teus méritos e das tuas qualidades
escolhemos um bom paredão
e vamos fuzilar-te com boas balas
atiradas por bons fuzis
e enterrar-te com uma boa pá
debaixo da terra boa.

Bertold Brecht

Friday 12 February 2010

HOSSANA!

Junquem de flores o chão do velho mundo:
vem o futuro aí!
Desejado por todos os poetas
e profetas
da vida,
deixou a sua ermida
e meteu-se a caminho.
Ninguém o viu ainda, mas é belo.
É o futuro...

Ponham pois rosmaninho
em cada rua,
em cada porta,
em cada muro,
e tenham confiança nos milagres
desse Messias que renova o tempo.
O passado passou.
O presente agoniza.
Cubram de flores a única verdade
que se eterniza!

Miguel Torga

Tuesday 9 February 2010

PICASSO


Outro pintor das grutas de Altamira
solta os bisontes da imaginação.
Com as mãos selvagens de Vulcano, atira
raios e setas de renovação.

Outro filho da Ibéria
restitui a matéria
às suas formas simples, virginais.
Formas da infância que se não perdeu
neste chão europeu
de velhos e cansados rituais.

Miguel Torga

Saturday 6 February 2010

Prospecção

Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
universal riqueza
do homem que resolve a solidão:
o tesoiro sagrado
de nenhuma certeza,
soterrado
por mil certezas de aluvião.

Cavo,
lavo,
peneiro,
mas só quero a fortuna
de me encontrar.
Poeta antes dos versos,
e sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.


Miguel Torga

Wednesday 3 February 2010

VOSSOS NOMES


No chumbo, no terror, na morte, com sangue escrevo,
Alfredo e Catarina,
vossos nomes.

Na pedra, no ácido, neste branco muro escrevo,
Humberto e Militão,
vossos nomes.

Nas trevas, no medo, na raiz da aurora, escrevo,
Maria e Lourenço,
vossos nomes.

No sonho, nos ventos, na flor do trigo escrevo,
Pedro e Guilherme,
vossos nomes.

No aço das duras tarefas, no relâmpago escrevo,
Álvaro e Rui,
vossos nomes.

No amor, na cólera, na fome desta ave escrevo,
Virgínia e António,
vossos nomes.

No sol que levamos, na verde esperança escrevo,
Paula e Dinis,
vossos nomes.

No riso, nas lágrimas, no coração da pátria escrevo
e semeio
vossos nomes.

No ventre em flor da minha amada semeio, escrevo
e multiplico
vossos nomes.
Papiniano Carlos

Monday 1 February 2010

Ameaça de morte

Não basta ter-me dado nos meus versos:
pedem a carne e a pele, os inimigos.
Os olhos, dois postigos
de olhar o mundo sem ninguém me ver,
querem-nos entaipados;
e quebrados
os braços, que eram ramos a crescer.

Luto, digo que não, peço socorro,
mas saiu-me ao caminho uma alcateia.
Lobos da liberdade alheia
que me seguem os passos hora a hora,
sem que eu possa sequer adivinhar,
na paisagem de medo tumular,
qual deles salta primeiro e me devora.


Miguel Torga

Saturday 30 January 2010

O que uma criança tem de gramar

Os olhos de Deus vêem todas as vias.
Faz as tuas economias para o pior dos dias.
O mandrião nada de bom deixa em herança.
Muito ler os olhos cansa.
Carregar carvão desenvolve a musculatura.
O belo tempo da infância que tão pouco dura.
Não te rias dos enfermos.
Com os adultos não se discuta e têm-se termos.
Quando à mesa te fores sentar nunca te sirvas em primeiro lugar.
Passear ao domingo é muito salutar.
Um velho respeito merece.
Não é com bombons que um menino cresce.
Mas são do que as batatas não há nada.
Criança educada deve saber estar calada.


Bertold Brecht

Wednesday 27 January 2010

QUANDO O TAMBOR COMEÇAR A SUA GUERRA

Quando o tambor começar a sua guerra
deveis vós continuar a vossa guerra.
Verá à sua frente inimigos, mas
quando olhar em volta, há-de
ver inimigos também atrás de si:
quando ele começar a sua guerra
há-de ver à sua volta só inimigos.
O que ali marcha
empurrado pelos seus das SS
há-de marchar contra ele.

As botas serão más, mas mesmo
que sejam do melhor coiro, hão-de
marchar nelas os seus inimigos.
As vossas rações serão escassas, mas mesmo que sejam fartas
não vos hão-de saber bem.

Os seus das SS não hã-de poder dormir.
Terão de ver bem se cada bala
está ou não carregada. E ele terá de
examinar se cada examinador examina.

Tudo o que a ele se destina, deve ser destruído, e tudo
o que dele vem deve ser usado contra ele.

Valente será quem contra ele lutar.
Inteligente, quem frustrar os seus planos.
Só quem o vencer salvará a Alemanha.


Bertold Brecht

Sunday 24 January 2010

Exaltação

Venha!
Venha uma pura alegria
que não tenha
nem a senha
nem o dia!

Abra-se a porta da vida
sem se perguntar quem é!
E cada qual que decida
se quer a alma aquecida
no lume da nova fé.

Venha!
Venha um sol que ninguém tenha
no seu coração gelado!
Venha
uma fogueira da lenha
de todo o tempo passado!


Miguel Torga

Thursday 21 January 2010

Desespero

Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o espermen que te dou, o desespero.

Ary dos Santos

Monday 18 January 2010

Sonata de Outono

Inverno não ainda mas Outono
a sonata que bate no meu peito
poeta distraído cão sem dono
até na própria cama em que me deito.

Acordar é a forma de ter sono
o presente o pretérito imperfeito
mesmo eu de mim próprio me abandono
se o rigor que me devo não respeito.

Morro de pé, mas morro devagar.
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.

Não me deixo ficar. Não pode ser.
Peço meças ao Sol, ao céu, ao mar
pois viver é também acontecer.

José Carlos Ary dos Santos

Friday 15 January 2010

Esperança

E depois talvez venha
o anjo da visita e do poema,
e traga o lume e a lenha
do incêndio pedido.
Talvez venha,
de ritmos vestido.

Talvez... E, como outrora,
ponha sobre a cabeça
do poeta de agora
os versos que ele mereça.

Em forma de grinalda,
inocente e florida,
talvez o faça ungido
dum grito a mais na vida
inútil e dorido...


Miguel Torga

Tuesday 12 January 2010

Perenidade

Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que passou.
Cada fruto que vem cria e promete
uma doçura que ninguém provou.

Mas a vida deseja
em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
pelas ruas floridas do jardim.

Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
o luxo eterno que ela te concede.


Miguel Torga

Saturday 9 January 2010

A VIDA

Povo sem outro nome à flor do seu destino;
povo substantivo masculino,
seara humana à mesma intensa luz;
povo vasco, andaluz,
galego, asturiano,
catalão, português:
o caminho é saibroso e franciscano
do berço à sepultura;
mas a grande aventura
não é rasgar os pés
e chegar morto ao fim;
é nunca, por nenhuma razão,
descrer do chão
duro e ruim!


Miguel Torga

Wednesday 6 January 2010

Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto, pintado
em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão

Sunday 3 January 2010

Hino de Caxias

Longos corredores nas trevas percorremos
sob o olhar feroz dos carcereiros
mas nem a luz dos olhos que perdemos
nos faz perder a fé nos companheiros.

Vá camarada mais um passo
que já uma estrela se levanta
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Cortam o sol por sobre os nossos olhos
muros e grades encerram horizontes
mas nós sabemos onde a vida passa
e a nossa esperança é o mais alto dos montes.

Vá camarada mais um passo
que já uma estrela se levanta
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Podem rasgar meu corpo à chicotada
podem calar meu grito enrouquecido
que para viver de alma ajoelhada
vale bem mais morrer de rosto erguido.

Vá camarada mais um passo
que já uma estrela se levanta
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Friday 1 January 2010

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade