Friday 30 October 2020

Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill

Tuesday 27 October 2020

Uma lição de poesia, uma lição de moral

À memória de Paul Éluard

Estudaste a bondade aprendeste a alegria
iluminaste a noite com a estrela
e o desejo com a necessidade

Comunicativo bom inteligente
soubeste sofrer sem destruir a vida
sem chamar pela morte

Soubeste vencer o íntimo lazer
as absurdas manias que a solidão instala
no coração virado na cabeça perdida

Soubeste mostrar o mais secreto amor
numa alegria feroz perfeita pública
capaz de provocar o ódio e a ternura

Em todas as frentes que por ti passavam
contra-atacaste repelindo o mal
com pesadas perdas para o inimigo

E na miséria que subia aos rostos
puseste a nu a resistência a esperança
e um futuro sorriso

Enquanto velhas feridas se fechavam
tua poesia abriu-se e hoje é comum
e transparente como os olhos das crianças

Hoje é o pão o sangue e o direito à esperança
à esperança que é «um boi a lavrar um campo»
e que é «um facho a lavrar o olhar»

Andaste triste mas não foste a tristeza
sofreste muito mas não foste a dor
amaste imenso e eras o amor

Cantaste a beleza proferiste a verdade
enconstraste não uma mas a razão de ser
compreendeste a palavra felicidade

E numa extrema juventude e sob o peso
precioso da simplicidade
tudo disseste

Disseste o que devias dizer.

Alexandre O'Neill

Saturday 24 October 2020

PORTUGAL


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

* 
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill

Wednesday 21 October 2020

A PATA SOBRE A ESFERA


A propriedade privada
ameaça para a estrada
com dois leões de pedra
postos à entrada.

Preferível decerto...
Arrogância na pedra...
o leão da Metro!
desmazelo na terra...

Mas agora já estou longe,
a um tiro de espingarda...

Alexandre O'Neill

Sunday 18 October 2020

DOMINGO

Hoje é domingo.
Pela primeira vez, hoje
deixaram-me sair ao sol,
e eu,
pela primeira vez na vida,
espantado de o ver tão longe
tão azul
tão vasto,
imóvel olhei o céu.
A seguir sentei-me na terra, com respeito,
encostei-me à parede branca.
Nesse instante, nada de ideias.
Nesse instante, nem luta, nem liberdade, nem mulher.
A terra, o sol e eu.
Sou feliz.

Nazim Hikmet
(Poemas da Prisão e do Exílio)

Thursday 15 October 2020

ELES

Eles que são inúmeros
como as formigas na terra,
os peixes na água,
as aves no céu,
eles que são poltrões,
corajosos,
ignorantes
e sábios,
eles que são crianças,
eles que fazem tábua rasa
e eles que criam,
serão, com as suas aventuras, o objecto único deste livro.

Eles que, deixando-se enredar nas teias do traidor,
atiram com o chapéu
e, abandonando a arena ao inimigo,
correm a fechar-se em casa,
e eles ainda que trespassam o traidor à punhalada,
eles que riem como a árvore jovem,
eles que choram prematuramente,
eles que injuriam pai e mãe,
serão, com as suas aventuras, o objecto único deste livro.

E o ferro
e o carvão
e o açúcar
e o cobre vermelho
e os tecidos
e cada um dos ramos da indústria
e o amor
e a tirania
e a vida
e o céu
e a planície
e o oceano azul
e as melancólicas vias fluviais
e a terra lavrada e as cidades,
um dia tudo muda de feição,
quando manhã cedo, nos confins das trevas,
apoiando no chão as mãos calosas e pesadas
eles se levantarem.

São eles que reflectem
nos espelhos mais sábios
as imagens mais coloridas.
No nosso século, eles venceram,
eles foram vencidos.
Deles muita coisa se disse
e para eles foi dito
que não tinham nada a perder
a não ser as grilhetas.

Nazim Hikmet

Monday 12 October 2020

Da Morte

Entrem lá, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.
Já sei, entraram pela janela da cela enquanto eu dormia
não deixaram cair nem a garrafa de gargalo fino
nem a caixa vermelha de medicamentos.
Aí estão todos de mãos dadas à minha cabeceira
com uma palidez de estrela nos rostos.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
e como não creio em Deus nem no além
lamentava não lhes ter ainda
oferecido uma pitada de tabaco.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
Venham pois, meus amigos, sentem-se
sejam benvindos, trazem-me alegria.

Hachim, filho de Osman,
porque me olhas com ar de caso?
Hachim, filho de Osman,
como é estranho
não tinhas morrido, meu irmão,
em Istambul, no porto,
durante um carregamento de carvão para um barco estrangeiro?
Caíste com o balde no fundo do porão
foi o cabrestante do cargueiro a içar-te
e antes de ires repousar para sempre
o teu sangue, muito vermelho, lavou a tua cabeça negra.
Quem sabe aquilo que sofreste.

Não fiquem de pé, sentem-se,
pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
com uma palidez de estrela nos rostos
Sejam benvindos, trazem-me alegria.

Yakup, da aldeia de Kayalar,
olá, velhote,
não estavas morto, também tu?
Não tinhas ido para o cemitério sem árvores
deixando aos filhos a malária e a fome?
Fazia um calor horrível nesse dia
Então, não estavas morto?

E tu Ahmed Djemil, o Escritor?
Vi com os meus próprios olhos
o teu caixão descer à terra
creio mesmo estar lembrado
que o teu caixão era pequeno demais para o teu tamanho.
Deixa, Ahmed Djemil,
vejo que ainda conservas o velho hábito,
uma garrafa de medicamento, não de raki,
bebias dessa maneira
para poderes fazer cinquenta piastras por dia
e para poderes esquecer o mundo na tua solidão.

Pensava que estavam mortos, meus amigos,
afinal estão à minha cabeceira de mãos dadas
Sentem-se, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.

A morte é justa, diz um poeta persa,
ceifa o pobre e o xá com igual majestade.
Hachim, porque te espantas?
nunca ouviste falar de um xá
morto no porão de um navio com um balde na mão?
A morte é justa, diz um poeta persa.

Yakup,
como ficas belo quando ris, querido velho,
nunca te vi rir assim
quando estavas vivo...
Mas espera que eu acabe
A morte é justa, diz um poeta persa...

Deixa essa garrafa, Ahmed Djemil,
não vale a pena zangares-te, eu compreendo-te
Para que a morte seja justa
é preciso que a vida seja justa.

O poeta persa...

Porquê, meus amigos, porque me deixam assim sozinho?
Onde vão vocês?

Nazim Hikmet

Friday 9 October 2020

A PROPÓSITO DO MONTE ULUDAG

Faz sete anos que nos olhamos
olhos nos olhos
esta montanha e eu
e ninguém arreda pé
nem ela nem eu.
Contudo, já nos conhecemos bem.
Ela sabe rir e zangar-se
como tudo o que leva a vida a sério.

Porém
sobretudo no Inverno
sobretudo à noite
sobretudo quando o vento sopra do sul
com os picos nevados
as florestas de pinheiros
as pastagens
os lagos gelados,
ela move-se ao de leve no sono
e o eremita que vive lá no cimo
com a barba comprida e descuidada
e a túnica ao vento
desce até à planície a ulular
a ulular à frente do vento.

E às vezes
sobretudo em Maio, de manhã cedo
toda azul, sem quaisquer limites,
imensa, feliz livre
ela eleva-se, semelhante a um mundo novo.

E há dias em que por vezes
se assemelha à sua imagem nas garrafas de limonada...

E calculo que num hotel que nunca vi
as esquiadoras passam bons momentos
a beber conhaque com os esquiadores.

E há dias
em que um desses serranos de sobrancelhas negras
e calças de burel, amarelas e largas,
por ter sacrificado o vizinho no altar da sacrossanta propriedade
vem, como nosso hóspede,
passar quinze anos na cela colectiva número dezassete...

Nazim Hikmet

Tuesday 6 October 2020

ANGINA DE PEITO

Se metade do meu coração está aqui, doutor,
a outra metade está na China,
no exército que desce em direcção ao Rio Amarelo.

E depois, todas as manhãs, doutor,
o meu coração é fuzilado na Grécia.

E depois, quando os prisioneiros mergulham no sono,
quando a calma regressa à enfermaria,
o meu coração parte, doutor,
todas as noites
parte para uma casa
velha de madeira em Tchamlidja.

E depois, faz dez anos, doutor,
que nada tenho nas mãos para oferecer ao meu pobre povo,
só uma maçã,
uma maçã vermelha: o meu coração.

É por isso, doutor,
e não por causa da arteriosclerose, da nicotina, da prisão,
que tenho esta angina de peito.

Olho à noite por entre as grades
e apesar de todas as paredes que me pesam no peito,
o meu coração bate ao ritmo da estrela mais longínqua.

Nazim Hikmet

Saturday 3 October 2020

Abro o aparelho de rádio e ouço a emissão de Moscovo, muito abafada, por causa dos vizinhos

A voz quente
na boca desta mulher, húmida de bandeiras,
entoa na rádio a apoteose do Futuro
para além do letargo da lucidez dos dias...

Mas tudo em redor
nos brilhos concretos
do cansaço da noite
me insinua um futuro sem esplendor
onde nunca se chega por estradas rectas,
mas só por atalhos
pardacentos de cardos e desvios
a ocultarem-nos a beleza directa do destino...

José Gomes Ferreira

Thursday 1 October 2020

Estalinegrado. Juramentos colectivos: «Desde este momento juramos não recuar um passo»

I 
E dos corações dos soldados
saíram raízes de pedra
para cumprir os juramentos dados
que os prenderam ao chão.

Só é difícil morrer
em imaginação.

II 
Entretanto
no fundo da treva
da Noite dos Escombros
um Homem e uma Mulher
continuam de mãos dadas,
no rancor de prolongar a vida,
de pele em pele,
de sangue em sangue,
de saliva em saliva,
de estertor em estertor.

E que importa ver o mundo a arder
com ódio, com frio, com monstro!

Arde, mundo! Arde,
coração de amor.

José Gomes Ferreira