Monday 30 September 2013

A HISTÓRIA DA MORAL



Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo,
outra quem está a montá-lo.

Alexandre O'Neill

Friday 27 September 2013

EFICÁCIA


Um comunista nunca fala de ódio.
Palavras que não leva para casa:
vingança, violência, lucro, promoção,
destruição, solidão, desprezo, ira.

Por simples eficácia:
nada de peso inútil sobre os ombros.


Mário Castrim

Tuesday 24 September 2013

NOCTURNO


Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral, o espinho de uma rosa brava...

Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era, no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy...
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...


David Mourão-Ferreira

Saturday 21 September 2013

NATUREZA MORTA


As bombas destruíram todas as casas menos uma,
as casas onde viviam os homens que não tinham cor nenhuma.

Por entre os escombros
alguns milhões de cadáveres contavam anedotas e encolhiam os ombros.

Quando já não havia mais homens para matar,
nem pedras por calcinar,
nem searas por destruir,
foi só então que as bombas cessaram de cair.

Sobre a mesa vermelha
uma verde maçã e uma garrafa amarela e torta.
Natureza morta.

Felizmente as bombas destruíram todas as casas menos uma,
as casas em que viviam os homens que não tinham cor nenhuma.

Aí, com perícia esmerada,
os sábios reconstituíram um corpo, tão perfeito como se fosse vivo.
A casa, essa, foi reservada
para museu e arquivo.

António Gedeão

Wednesday 18 September 2013

TU, PIEDADE


(Os jornais e os filmes divulgam, com terror sinistro, a existência dos campos de concentração hitlerianos. Montes de esqueletos.)

Tu, piedade,
que vens lá do fundo
da raiz do instinto
e és capaz de incendiar o mundo
para aquecer um faminto.

Tu que me embalas
com a voz rouca
da cólera do amor
que deixa na boca
o frio das balas
e todo o amargor
da outra sede
que só se sufoca
com pus e suor
- e os dedos sangrentos
na cal da parede
dos fuzilamentos.

Tu que me afagas
como quem estrangula
com mãos de bandido...
E beijas as chagas
com lábios de gula
e chumbo derretido.

Tu que só amas
a dor com esgares
nos gritos das chamas,
nas cordas dos potros,
na cruz do Rabi
~para assim chorares,
através dos outros,
o que dói em ti.

Tu que me levas
de rastos na estrada
ao fundo da rampa
onde só há trevas
- raiz misturada
de estrelas e trampa.

Tu que descobres
toda a secura
de cinza nos frutos
que há na ternura
de chorar os pobres
de olhos enxutos.

Tu, piedade,
mãe de todas as mães
e de todos os vícios,
que lambes como os cães
oe vergões dos cilícios.

Dá-me lágrimas reais
na cara a correr
como se a pele sangrasse...
Dessas que deixam sinais
e fazem doer
por dentro da face.

Dá-me lágrimas geladas
como dedos nos gatilhos
em noite de lobos...
Que eu quero baptizar com elas
todos os filhos
da fúria das cadelas,
dos réprobos e das ladras,
de estrupos e de roubos.

Dá-me o ódio frio
que vem lá do fundo
do bafio das prisões
- ódio que há-de salvar o mundo
num dia de lágrimas nos olhos,
quentes como corações.

José Gomes Ferreira

Sunday 15 September 2013

CANÇÃO


Na fome verde das searas roxas
passeava sorrindo Catarina.
Na fome verde das searas roxas
ai a papoila cresce na campina!

Na fome roxa das searas negras
que levas, Catarina, em tua fronte?
Na fome roxa das searas negras
ai devoravam corvos o horizonte!

Na fome negra das searas rubras
ai da papoila, ai de Catarina!
Na fome negra das searas rubras
trinta balas soaram na campina.


Trinta balas
te mataram a fome, Catarina.

Papiniano Carlos

Thursday 12 September 2013

O SONHO


Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama

Monday 9 September 2013

É OBRIGATÓRIO


É obrigatório ter mitos
e eu desobedeço de bom grado,
de bom grado bruno as minhas blusas
quando me sobra o tempo
porque prefiro conversar com os amigos.

É obrigatório mostrar-se bem vestido,
com boas obras - já interessa menos -,
é obrigatório não assomar à janela
porque é preciso estar vivo se fizerem a guerra.

É obrigatório não divulgar que há tumultos
porque podem mandar-te embora do trabalho
e por cantar verdades dar-te-ão uma cela
e preparam-te o pranto porque é obrigatório:
sofrer sendo racional,
guardar rancor,
adular o pedante,
entrar de meias na igreja,
ter bastantes filhos
voltar amanhã,
possuir inimigos...

Tudo isto é absolutamente obrigatório
e, além do mais, é proibido cuspir no chão.

Glória Fuertes

Friday 6 September 2013

DOIS CAMINHOS


Há um silêncio imposto e outro de repouso.
Um é nocturno e estreito e o outro um dia aberto.
Num, apenas a medo o sonho é um débil gozo.
No outro, o sonho cabe após dele desperto.
Num, o que é certo e necessário é enganoso.
No outro, mesmo o engano é necessário e certo.

Armindo Rodrigues

Tuesday 3 September 2013

Manhã de Junho

 
Talvez, talvez sejam os últimos
dias. Se for assim, são um esplendor.
Apesar dos aviões da Nato despejarem
bombas e bombas no Kosovo, a perfeição
mora neste muro branco
onde o escarlate
da flor da buganvília sobe ao encontro
da luz fresca da manhã de Junho.
A beleza (não há outra palavra
para dizê-lo), desta manhã
é terrível: persiste, domina –
apesar dos aviões, mesmo com
bombas a cair e crianças a morrer.
 
Eugénio de Andrade

Sunday 1 September 2013

NÃO POSSO ADIAR O AMOR


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora intensa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa