Friday 30 March 2018

Vem, não te atrases


Quando te apressas
E me confessas
Que está na hora,
Eu não te digo
Que é um castigo
Ver-te ir embora

Finjo que a dor
Que sei de cor
Pouco me importa
Mas, mal me deixas,
Sinto que fechas
Para sempre a porta

Vem, não te atrases
O que fazes
Sem mim, a esta hora?
Volta para os meus braços,
Eu já esperei demais
Vem, não te atrases,
Eu perdoo-te a demora
Se morares nos meus abraços
E nunca mais me deixares

Quando tu partes,
Faltam-me as artes
Para te prender
Mas, se não estás,
Não sou capaz
De adormecer

Acendo estrelas
Pelas janelas
Da casa fria
Mas, se não chegas,
Sinto-me às cegas
Até ser dia.

Maria do Rosário Pedreira

Tuesday 27 March 2018

Anda, vem...


Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha --- rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
--- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!

António Botto

Saturday 24 March 2018

Parolagem da Vida


Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.

Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.

Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!

Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 21 March 2018

*


É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.


Eugénio de Andrade,
in "Os sulcos da sede"

Sunday 18 March 2018

Pele


Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser a pele da minha pele?

Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras

Diante do teu ventre
como não dizer “sempre”
novamente.

Ó lâmina e bainha
de outra espada ainda
Tua língua
Ruge. Reprende. Arrasa
Desde que sempre o faças
com as asas

Vem dos arcanos de outro tempo
ou dos anéis de outra galáxia
esta espessura transparente
que só na cama as almas ganham.

David Mourão-Ferreira
(Pequenos Poemas)

Thursday 15 March 2018

Fado da pedrada


quis fazer do amor um charro
quis que ardesse em minha posse
mas fumado não o agarro
talvez fosse do cigarro:
fez-me tosse, fez-me tosse

e um dia que estava só,
tão só que não vou contá-lo,
só sei que metia dó,
quis o amor desfeito em pó
e pus-me então a snifá-lo

noutra noite vil de luto
após triste despedida
preparei um crack em bruto
e do amor levei um chuto
que me deu cabo da vida

e o meu ser assim se joga
numa contínua desordem
pobre amor, em mim és droga,
que me pedra e perde e afoga,
não me acordem, não me acordem.

Vasco Graça Moura

Monday 12 March 2018

Quase Um Anjo / Fado Vadio (Má Fama)


Sei que já foste gaivota
És tão antiga a voar
Sabes da ilha remota
Que só se encontra no mar
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

Sei que já foste gaivota
Candeia de um pescador
Amante de caravela
Aquele voo incolor
És um anjo sem andor
À procura de uma estrela
Quase nada, quase dor
Quase vão de uma janela

Sei que já foste gaivota
Sei de cor por onde andaste
Sei de cor todos os mapas
Do coração que traçaste
Leva-me ave do destino
Faz de mim o teu poente
Tu que és quase, quase um anjo
Faz-me perto de ser gente

- - - - - - - - - - - - - - - - - - -

já andei pelos telhados
para me vingar do céu
abri feridas na lua
mas de todos os pecados
aquele que me perdeu
foi demorar a ser tua

fui de viela em viela
bebi água da chuva
dormi onde me acolhiam
tive casas sem janela
mais de mil vezes viúva
dos amores que me morriam

já marquei homens dos tais
roguei pragas a quem passa
ganhei fama de vadia
como os gatos dos quintais
fui caçadora e fui caça
mas só queria companhia.

João Monge

Friday 9 March 2018

Soneto de Mal Amar


Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

José Carlos Ary dos Santos

Tuesday 6 March 2018

PORQUINHO-DA-ÍNDIA


Quando eu tinha seis anos
ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração eu tinha
porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra a sala
pra os lugares mais bonitos e mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...


- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.

Manuel Bandeira

Saturday 3 March 2018

CAMARADA


Camarada é uma palavra bonita. Sempre. E assume particular beleza e significado quando utilizada pelos militantes comunistas.
O camarada é o companheiro de luta - da luta de todos os dias, à qual dá o conteúdo de futuro, transformador e revolucionário que está na razão da existência de qualquer partido comunista.
O camarada é aquele que, na base de uma específica e concreta opção política, ideológica, de classe, tomou partido - e que sabe que o seu lugar é o do seu partido, que a sua ideologia é a da classe pela qual optou.
O camarada é aquele com cujo apoio solidário contamos em todos os momentos - seja qual for o ponto da trincheira que ocupemos e sejam quais forem as dificuldades e os perigos com que deparamos.
O camarada é aquele que nos ajuda a superar as falhas e os erros individuais - criticando-nos com uma severidade do tamanho da fraternidade contida nessa crítica.
O camarada é aquele que, olhando à sua volta, não vê espelhos...: vê o colectivo - e sabe que, sem ter perdido a sua individualidade, integra uma outra nova e criativa individualidade, soma de múltiplas individualidades.
O camarada é aquele que, vendo a sua opinião minoritária ou isolada, mas julgando-a certa, não desiste de lutar por ela - e que trava essa luta no espaço exacto em que ela deve ser travada: o espaço democrático, amplo, fraterno e solidário, da camaradagem.
O camarada é aquele que, tão naturalmente como respira, faz da fraternidade um caminho, uma maneira de ser e de estar - e que, por isso mesmo, não necessita de a apregoar e jamais a invoca em vão.
O camarada é aquele que olhamos nos olhos sabendo, de antemão, que lá iremos encontrar solicitude, camaradagem, lealdade - e sabemos que esse olhar é uma fonte de força revolucionária.
O camarada é aquele a cuja porta não necessitamos de bater - porque a sabemos sempre aberta à camaradagem.
O camarada é aquele que jamais hesita entre o amigo e o inimigo - seja qual for a situação, seja qual for o erro cometido pelo amigo, seja qual for a razão do inimigo.
O camarada é o que traz consigo, sempre, a palavra amiga, a voz fraterna, o sorriso solidário - e que sabe que a amizade, a fraternidade, a solidariedade, são valores humanos intrínsecos ao ideal comunista.
O camarada é aquele que é revolucionário - e que não desiste de o ser mesmo que todos os dias lhe digam que o tempo que vivemos é coveiro das revoluções.

Camarada é uma palavra bonita - é uma palavra colectiva: é tu, eu, nós: é o Partido. O nosso. O Partido Comunista Português.

José Casanova
in Avante!, 20.6.2002

Thursday 1 March 2018

Daqui desta Lisboa

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Alexandre O'Neill