Tuesday 30 January 2024

as duas faces dos anjos

 

apenas à noite.
o branco revela a sua verdadeira cor
e é negra.

como as asas alvas de um anjo,
tingidas pela vida escura dos mortos,
da qual caem penas de breu, lenta e inexoravelmente
como de uma ferida aberta o sangue.

Miguel Tiago

Saturday 27 January 2024

*

 

nada é mais turvo que o ego
que tolda a vista de nós próprios

Miguel Tiago

Wednesday 24 January 2024

os poetas dos meus dias

 

o verdadeiro poeta dos meus dias
escolhe as palavras como um crivo
dentre as páginas imensas do dicionário,

o verdadeiro poeta dos meus dias
faz dos versos flores vazias
tanto quanto as rosas eternas que ornam um campanário,

o verdadeiro poeta dos meus dias
usa o mais inaudito e inescrito verbo
e mascara assim o ego ordinário,

o verdadeiro poeta dos meus dias
matou as torrentes, calou os ventos,
e vive nesse estreito gabinete de ar condicionado,
à espera que as palavras lhe surjam caras,
requintadas, despojadas de ira, amor ou ironia.

o verdadeiro poeta dos meus dias
versa em rimas sobre os clássicos,
brada aos céus, ou aos amores,
menos à terra, terrena e rente
como uma erva daninha, feia e raquítica.

o verdadeiro poeta dos meus dias
silenciou os choros e os gritos,
trouxe hipérboles mestástases sinédoques metonímias
e outras ilusões.

e eis que na busca pretensiosa de o não ser,
me infectam os poetas de hoje,
me contagiam os versos,
e os pulmões.

Miguel Tiago

Sunday 21 January 2024

as minhas palavras são a sombra da poesia

as árvores vigiam-me o caminho,
retorcidas, verdejantes
com os líquenes sobre os braços
debruçados, contorcidos.

as árvores se fossem versos,
seriam certamente poesia,
e apenas na sua sombra
as minhas palavras viveriam.

Miguel Tiago

Thursday 18 January 2024

Pavana para uma burguesa defunta

 
A cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi  ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim i não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto  se não fosse a gordura
o retrato na sala  o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga  minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
– não me limpaste o pó  a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca  resolve-se na fome
Do senhor que a devora em sua santa glória.
 
Ary dos Santos 

Monday 15 January 2024

dialéctica da natureza


se o caminho não fosse duro e difícil, as nossas mãos não seriam tão fortes.

Miguel Tiago

Friday 12 January 2024

lagoa do fogo

da água nasce fogo,
quando os deuses dos nossos sonhos,
deixam sobre as ilhas o sublime toque
do vento que esculpe a terra e o mar.

Miguel Tiago

Tuesday 9 January 2024

uivo

o espelho é o meu inimigo mortal
a aparição, minha infiel revelação,
o espírito turvo, a madrugada revolta.
espera-me sempre o dia de amanhã
quando a noite começa.
nunca a noite dura a vida que devia
para poder cantar à lua infinita
as canções de amor,
em tom de lobo,
de uivo.

Miguel Tiago

Saturday 6 January 2024

gotas de chuva

se me perguntares, um dia
se te desejo aqui sempre
apenas te poderei dizer, entre a respiração e a lágrima,
que mesmo que a chuva chore
sobre o meu corpo caído
numa rua sem nome, escondida na noite,
e que o frio do inverno
me cubra da pele tremente aos ossos,
cada gota de chuva seria amar-te ainda mais.

Miguel Tiago

Wednesday 3 January 2024

A velha juventude

Não caio, mesmo que as forças me faltem,
cruzo-me com a tarde e com o assombro do mar
onde o meu coração aguardará a noite como as aves
nos ninhos construídos no interior da falésia.
Será uma noite surpreendente, uma noite sem ti,
porque será mais noite ainda, sem aquele brilho azul
que só as nossas noites tinham. E eu sinto-me vazio
como uma criança que fugiu de casa e não sabe voltar.
O meu olhar é uma pedra acesa na tua recordação,
a minha carne sente a falta da tua, e nas minhas mãos
o sol deixa os últimos raios de âmbar, as tímidas marcas
que os meus dentes costumavam gravar na tua pele.
Quando a noite vier fechar as suas portas,
lembrar-me-ei do interior da nossa casa, quando
esperava por ti, doente de esperar, mas fascinado
como só poderia sentir-se um amante faminto.
Caminho e não caio, mesmo que me faltem
as forças que me trouxeram para longe de ti. Sou
esse velho amante cheio de juventude, a quem a vida
não quis renovar mais que os próprios versos.
Joaquim Pessoa

Monday 1 January 2024

NA RUA

O homem exibia o cartaz
como um anúncio,
dizendo:
“Ajudem-me”.
Na cabeça de todos
os que por ele passavam,
havia
um invisível cartaz pedindo
a mesma coisa.
Joaquim Pessoa