Saturday 30 January 2010

O que uma criança tem de gramar

Os olhos de Deus vêem todas as vias.
Faz as tuas economias para o pior dos dias.
O mandrião nada de bom deixa em herança.
Muito ler os olhos cansa.
Carregar carvão desenvolve a musculatura.
O belo tempo da infância que tão pouco dura.
Não te rias dos enfermos.
Com os adultos não se discuta e têm-se termos.
Quando à mesa te fores sentar nunca te sirvas em primeiro lugar.
Passear ao domingo é muito salutar.
Um velho respeito merece.
Não é com bombons que um menino cresce.
Mas são do que as batatas não há nada.
Criança educada deve saber estar calada.


Bertold Brecht

Wednesday 27 January 2010

QUANDO O TAMBOR COMEÇAR A SUA GUERRA

Quando o tambor começar a sua guerra
deveis vós continuar a vossa guerra.
Verá à sua frente inimigos, mas
quando olhar em volta, há-de
ver inimigos também atrás de si:
quando ele começar a sua guerra
há-de ver à sua volta só inimigos.
O que ali marcha
empurrado pelos seus das SS
há-de marchar contra ele.

As botas serão más, mas mesmo
que sejam do melhor coiro, hão-de
marchar nelas os seus inimigos.
As vossas rações serão escassas, mas mesmo que sejam fartas
não vos hão-de saber bem.

Os seus das SS não hã-de poder dormir.
Terão de ver bem se cada bala
está ou não carregada. E ele terá de
examinar se cada examinador examina.

Tudo o que a ele se destina, deve ser destruído, e tudo
o que dele vem deve ser usado contra ele.

Valente será quem contra ele lutar.
Inteligente, quem frustrar os seus planos.
Só quem o vencer salvará a Alemanha.


Bertold Brecht

Sunday 24 January 2010

Exaltação

Venha!
Venha uma pura alegria
que não tenha
nem a senha
nem o dia!

Abra-se a porta da vida
sem se perguntar quem é!
E cada qual que decida
se quer a alma aquecida
no lume da nova fé.

Venha!
Venha um sol que ninguém tenha
no seu coração gelado!
Venha
uma fogueira da lenha
de todo o tempo passado!


Miguel Torga

Thursday 21 January 2010

Desespero

Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o espermen que te dou, o desespero.

Ary dos Santos

Monday 18 January 2010

Sonata de Outono

Inverno não ainda mas Outono
a sonata que bate no meu peito
poeta distraído cão sem dono
até na própria cama em que me deito.

Acordar é a forma de ter sono
o presente o pretérito imperfeito
mesmo eu de mim próprio me abandono
se o rigor que me devo não respeito.

Morro de pé, mas morro devagar.
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.

Não me deixo ficar. Não pode ser.
Peço meças ao Sol, ao céu, ao mar
pois viver é também acontecer.

José Carlos Ary dos Santos

Friday 15 January 2010

Esperança

E depois talvez venha
o anjo da visita e do poema,
e traga o lume e a lenha
do incêndio pedido.
Talvez venha,
de ritmos vestido.

Talvez... E, como outrora,
ponha sobre a cabeça
do poeta de agora
os versos que ele mereça.

Em forma de grinalda,
inocente e florida,
talvez o faça ungido
dum grito a mais na vida
inútil e dorido...


Miguel Torga

Tuesday 12 January 2010

Perenidade

Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que passou.
Cada fruto que vem cria e promete
uma doçura que ninguém provou.

Mas a vida deseja
em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
pelas ruas floridas do jardim.

Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
o luxo eterno que ela te concede.


Miguel Torga

Saturday 9 January 2010

A VIDA

Povo sem outro nome à flor do seu destino;
povo substantivo masculino,
seara humana à mesma intensa luz;
povo vasco, andaluz,
galego, asturiano,
catalão, português:
o caminho é saibroso e franciscano
do berço à sepultura;
mas a grande aventura
não é rasgar os pés
e chegar morto ao fim;
é nunca, por nenhuma razão,
descrer do chão
duro e ruim!


Miguel Torga

Wednesday 6 January 2010

Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto, pintado
em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão

Sunday 3 January 2010

Hino de Caxias

Longos corredores nas trevas percorremos
sob o olhar feroz dos carcereiros
mas nem a luz dos olhos que perdemos
nos faz perder a fé nos companheiros.

Vá camarada mais um passo
que já uma estrela se levanta
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Cortam o sol por sobre os nossos olhos
muros e grades encerram horizontes
mas nós sabemos onde a vida passa
e a nossa esperança é o mais alto dos montes.

Vá camarada mais um passo
que já uma estrela se levanta
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Podem rasgar meu corpo à chicotada
podem calar meu grito enrouquecido
que para viver de alma ajoelhada
vale bem mais morrer de rosto erguido.

Vá camarada mais um passo
que já uma estrela se levanta
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Friday 1 January 2010

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade